Quase Nada

1. Quase Nada

Em que momento o amor se instala com toda a sua bagagem dentro de nós? Ou será que é aos poucos que ele vem se insinuando? Primeiro, deixa a escova de dente, depois uma camiseta e quando nos damos conta ele está ali, requerendo direito adquirido sobre o nosso coração.

            Eram estas as questões que dominavam o pensamento de Duda enquanto ela equilibrava o copo ensaboado entre as mãos, tarefas prosaicas como lavar a louça do jantar podem conduzir, e facilmente, a mente a questionamentos que de prosaicos não têm nada.

            E de tanto refletir sobre o amor e sua chegada, acabou deixando o copo escapar e se espatifar dentro da pia. Sentiu uma fisgada no dedo anular e viu o sangue manchar de vermelho o azulejo. Enrolou o pano de prato na mão e correu para o banheiro. Não conseguia achar a caixinha de primeiros-socorros, provavelmente Alma a tinha, de novo, mudado do lugar.

            Achou-a, depois de muita procura, dentro do armário de toalhas. Colocou o dedo debaixo da torneira  e deixou a água correr, sentou-se no vaso sanitário e começou a enfaixar a mão, o corte tinha sido grande. Alma e sua mania de arrumação, por que ela tinha de arrumar tudo sempre que vinha visitá-la?        Afinal, quando foi que  Alma entrou na sua vida, começou a frequentar sua casa com assiduidade e a trocar as coisas de lugar?

            Há sete meses, estava sentada na mesa de um bar com algumas amigas quando a viu entrando, não saíra com a intenção de procurar alguém, nem de sexo estava com vontade, queria só tomar um drink, ouvir música e rir um pouco. E foi entre uma risada, um gole e uma nota musical que viu Alma passar de mãos-dadas com o noivo bem na sua frente. Eram noivos?  Deviam ser, ela usava uma aliança na mão direita.      Sentaram-se na mesa em frente à sua, e a visão de Alma dominou o resto dos goles, das risadas, das notas musicais e da noite.

            Daquela noite para a frente o contato entre as duas passou a ser semanal, às vezes se encontravam duas vezes por semana, tudo dependia do quanto Alma conseguia ludibriar o noivo e escapar para a casa de Duda. Tudo era novidade entre elas, principalmente para Alma, e o acordo feito era o de aproveitar ao máximo os momentos que tinham, sem cobranças, sem expectativas, sem planos. Como membros do AA, viviam um dia de cada vez. Alma era sua amiga e amante, e nenhuma das duas queria que o sentimento passasse para outro nível, daria muito trabalho e, afinal, estava bom como tudo caminhava.

            Duda já havia enfrentado os escombros emocionais de uma separação e não tinha vontade nenhuma de passar por isso de novo, depois que se viu curada seu lema era: sexo e amizade, ou só sexo, ou só amizade. Se algo surgisse além do dueto sexo-amizade, era a hora de deixar o imbróglio de lado e partir para outra, ou para nenhuma.

            Porém, em algum ponto ao longo do caminho Duda errou a entrada, ou a saída, e deixou que o amor a ultrapassasse. Ele não só a ultrapassou como entrou em sua casa sem que ela nem se desse conta, e quando ela o notou  já estava sentado no sofá da sala,  com ares de dono do lugar, e o sapato de salto já se enfileirava junto aos seus tênis embaixo do guarda-roupa.

            O sangue não estancava e começou a gotejar no chão do banheiro, pelo jeito a faixa sozinha não daria conta de um corte tão profundo. Duda tirou a atadura e pôs, mais uma vez, a mão debaixo d’água. Como teria deixado aquilo acontecer? Como teria deixado o amor que tomava conta de seus poros provocar um corte tão grande, um corte que parecia não querer parar de sangrar? Fora assim tão descuidada?

            Jogou um tanto de povidine sobre o dedo e esperou que secasse, levantou os olhos e se viu no espelho que ficava em cima da pia. Precisava dar um corte novo no cabelo e pintá-lo com alguma outra cor que não a de sempre, passou a mão saudável pelo olho direito e puxou a pele da pálpebra, era jovem ainda, mas aquela pálpebra estava meio caída, o melhor talvez fosse procurar um médico para saber a opinião de um especialista sobre isso.

            Terminou de secar o dedo com um pedaço de algodão e começou a fazer um curativo decente. Quanta bobagem havia passado pela sua cabeça por causa desse corte, nunca pensara muito sobre cores e estilos de cabelo, a aparência nunca fora algo fundamental em sua vida. E o que fora aquilo sobre os olhos? Suas pálpebras eram como sempre foram, e nem por isso lhe causavam problemas. Por que essa vontade súbita de mudança? Seria isso mais uma das escaramuças do amor?

            O curativo, finalmente, tinha tomado forma. Limpou a sujeira do banheiro, talvez Alma aparecesse mais tarde, e ela tinha horror a bagunça, e foi para a cozinha tomar um analgésico, o corte começara a latejar. Pegou a garrafinha com suco de laranja, o comprimido azulado e sentou-se no sofá da sala.

            Àquela hora da noite, todo mundo estava voltando para casa, as ruas estavam cheias de carros e ônibus e pessoas indo e vindo, e era uma sexta-feira, os bares que ficavam na rua do prédio deviam estar lotados de gente bebendo seu chope, comendo sua porção de qualquer coisa, conversando e esperando. Esperando pelo quê? Por uma parceira ou um parceiro sexual para terminar a noite? Por alguém para conversar sobre tudo e nada? Por um amor que já passou? Por um amor que virá?

            E, de repente, no silêncio que se fez no meio daquele barulho todo, ela percebeu que ela também esperava. Esperava por Alma que, àquela altura, devia estar tentando se desvencilhar do noivo. Desde quando passara a esperar por ela? Muitas vezes, uma espera que era em vão.

            O corte latejava cada vez mais, Duda sentia uma pulsação mais forte tomando conta de toda a mão. Olhou o relógio na parede, quase 21hs, foi até o quarto pegou o celular que estava dentro da bolsa e chamou o número de Alma. Tocou até cair na caixa de recados, ouviu a voz fina do seu amor: “deixe seu recado, retorno quando puder.” Retorno quando puder, será que retornaria mesmo? A cada dia a situação se complicava mais, não por causa do noivo, este era um fator fácil de controlar, mas por causa do sentimento inesperado e indesejado que surgira dentro dela.

            Tudo o que era para ser, não fora. O caso sem preocupação com um futuro imediato, o caso sem planos, o caso que vivia o momento, o caso aberto a todas as possibilidades fora subornado pelo amor e aceitara, sem hesitar, a corrupção.

            Pegou novamente o celular e chamou Alma mais uma vez, quando atenderam ela ouviu a voz de um homem. Não, Alma não estava, tinha esquecido de levar o telefone, que deixasse o recado ele passaria a ela assim que chegasse. Não, não demoraria, tinha ido comprar um vinho e o jantar para os dois.

            Deixou o telefone cair sobre o sofá, o corte fazia ela latejar e tremer, sentiu a febre e a dor tomando conta de seu corpo todo, e ao olhar para mão ela gotejava sangue. Novamente.



Notas:



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