Ravena

Ravena

— Ravena!

O trovão anunciado pela voz grossa de meu pai arruinara a minha milionésima tentativa de fazer de minhas formigas excelentes soldados. Todas se agitaram com o barulho e meu movimento brusco diante do tanque que eu criara minuciosamente para as atividades cotidianas delas… Era meu exército.

 

Não sabia o porquê de a lembrança vir justo em uma hora como aquela. A febre talvez trouxesse antigos fantasmas de minha infância não muito fácil. Um sorriso forçado de uma ironia muito comum aflorava em meu rosto cansado e doente. Talvez eu estivesse certa de que o fim, meu fim, estivesse mais próximo do que eu gostaria. Mas por que raios tinha que lembrar-me de uma fase pífia de minha vida naquela situação trágica? Nesse exato momento senti o odor putrefato da ferida em meu tórax causada por uma faca envenenada, artifício de terroristas que enfrentei na última batalha. Matei friamente umas dezenas, mas fui ferida por um pirralho que mal tinha saído das fraldas. Triste coincidência, ele parecia ter a idade de minha filha, Andressa…

 

— Que diabos está fazendo?– A voz enérgica me paralisou imediatamente. — Malditas formigas!!! — chutou o tanque que se espatifou perto da janela, libertando meus soldados da caserna. — Quantas vezes já lhe adverti sobre isso?!! E as aulas de piano?!! De culinária??!! Você é uma menina!!! Tem que fazer coisas de menina!!! Se preparar para ser uma boa esposa!!! Ai de você, Ravena Lunardi… — pegava-me o braço com brutalidade e nestas horas seria capaz de matá-lo se não tivesse apenas nove anos. –… Se não se transformar na mulher ideal para o marido que escolherei pra você!!…

Soltava-me e alisava o cavanhaque ruivo insistentemente antes de sair de meu quarto pisando duro com as botas incrivelmente engraxadas que compunham a sua farda de coronel do exército americano. Eu as cobiçava.

 

Levantei-me da poltrona e sentei-me à mesa onde os mapas e papéis da missão me aguardavam. Precisava pensar antes que a dor me atormentasse irreversivelmente. Eu tinha trinta oficiais da infantaria americana sob minha proteção e a ordem era entregá-los ao resgate em dois dias. Estávamos em zona de conflito afegão. Não sabíamos quem era amigo ou inimigo, mal podíamos contar com suprimento ou munição. Estávamos irremediavelmente por nossa conta, exceto ao cumprimento das ordens superiores. Revisei pela enésima vez todos os detalhes da operação antes de devolver minha carcaça à velha poltrona de couro velho. Num fechar de olhos, os fantasmas se mostraram cada vez mais fortes.

Reuni meus esforços todos para retomar a reconstrução de minha tropa. Durante a operação, vejo minha preceptora alemã e também governanta, fraulein Josephine.

— Schatzie! O que andas a fazer? Estou esperando-te para as aulas de culinária… Teu pai já me passou o pito agora mesmo!

 

“Schatzie”… Tesourinho… Fechei os olhos e imaginei que estava num lugar onde lembranças não existiam, mas vinham aos borbotões e a imagem daquela mulher ainda me parecia clara demais. Mesmo eu tendo a percepção de minha pouca estatura, deduzia sua altura como “enorme”. Os cabelos galegos como uma plantação de trigo. Tinha umas “cadeiras” largas e tornozelos grossos. Bebia com meu pai e, vez ou outra, fumava charuto. Conversavam por longas horas. Meu pai era aficionado por um alemão histórico, que agora identifico como um tal de Adolf. Na maior parte da conversa, nada entendia, apenas quando falavam na nossa língua. Em algumas dessas horas mamãe aparecia. Eu me eriçava toda, escondida no vão da escada que dava para os aposentos superiores. Ela era linda. Meu coração vinha à boca e meu olhar dirigia-se única e exclusivamente para ela…

 

— “Liebling!!” Que está fazendo acordada a estas horas? — meu pai levantava-se e, cortês, beijava-lhe as mãos.

–Madam… É “zeit” de seus remédios… Não devia vir em baixo… — eu achava engraçado a fraulein ficar toda sem dedos diante de minha mãe, sendo capaz de errar seu português tão perfeito com o alemão jamais esquecido.

— Estou cansada de ficar no quarto o tempo todo, Teófilo…

— Ordens médicas, “meine lieb”… — a tosse da esposa o irritou surpreendentemente. — É disso que falo! O ar está impregnado de fumaça de charuto! Sabe bem que seu pulmão não suporta mais este ar!!

O acesso de tosse se estendia até que fraulein convencia o patrão a deixar a “madam”, minha mãe, dormir no quarto de hóspedes para não cansar-se demasiadamente. E isto, além de minha teimosia, era o que o deixava extremamente irritado.

 

Ouvi o batido na minha barraca e me preparei para disfarçar qualquer indício de minha enfermidade. Pedi firmemente que entrasse e ela surgiu sem cerimônias.

— Comandante, permissão para falar. — batia continência sem olhar para mim, que fingia examinar uns mapas e, sem nenhum interesse, permiti.

— Seja breve, primeiro tenente… — continuei com os olhos nos mapas.

— Precisamos rever as ordens do comando maior.

Então pus os olhos na mulher a minha frente e recostei-me bem devagar na cadeira sentindo a dor dos tártaros me abduzir momentaneamente do lugar onde eu estava. Os olhos castanhos claros me encararam preocupados, mas nem por um segundo ela se moveu ou comentou o acontecido.

— Do que exatamente está falando, Parker?

Não perdi o brilho do olhar que denotava a irritação pelo sobrenome cuspido com escárnio de minha parte. O nome do “papai”, secretário de Estado, ainda lhe incomodava e eu me divertia com isso. Tínhamos tido um passado atípico e eu queria feri-la tanto quanto o fui por ter sido enganada sobre sua identidade real. Ao continuar encarando aquele corpo perfeito foi que notei o quanto a camiseta regata estava úmida e as gotículas de suor que enfeitavam lábios grossos e rubros.

— Fiz um reconhecimento pessoal por treze quilômetros da trilha principal e encontrei indícios de emboscada. Vamos seguir pela trilha secundária…

— Isso está fora de cogitação! — ao enfatizar a frase, soltei o gemido revelador. — Vamos seguir as ordens do comando maior… — me amaldiçoei pela voz fraca que denotava minha fragilidade física.

— Não ouviu bem o que disse, coronel Lunardi…

Um passo adiante e mãos de dedos longos e largos se apoiaram sobre minha mesa me encarando firmemente e, não fosse eu uma oficial há mais de vinte anos, teria me intimidado pelo gesto.

— Não estou sugerindo… Estou comunicando. O comando maior será informado e as novas ordens serão acatadas.

Olhei-a meio que grogue. Minha visão embaralhava-se entre o passado e o presente. Podia ver nitidamente os olhos de meu pai, o rosto de minha mãe, o cheiro de Josephine…

 

Era 4 de julho. Data tão especial que eu a aguardava o ano inteiro, mais até que o Natal quando ganhava muitos presentes. Neste dia papai vinha para casa no final da tarde para levar-nos ao parque defronte a um imenso lago onde era realizada a queima de fogos e o hino nacional era executado pela banda do exército. Uma brigada soltava uma rajada de tiros de fuzil ao final e essa parte excitava-me ao extremo. Tudo era comandado com maestria pelo Coronel Teófilo Lunardi. As formigas, digo, meu batalhão era largado de lado, não tinha pensamento algum que não fosse pelo fim da tarde. Só uma coisa me deixava intrigada naquele dia: a visita de um primo chamado Luigi. Ele vinha, ficava trancado com meu pai por mais ou menos uma hora, depois, quando eu e fraulein estávamos no jardim nas aulas de bordado, ele aparecia com seu terno escuro de gravata borboleta e óculos de grau forte. Olhava-me por alguns minutos a cochichar com meu pai. Eu não entendia bem sobre o que falavam e olhavam tanto para mim. Sabia que o primo era italiano e tinha seus vinte anos. Era meio encurvado como que a se esquivar de qualquer ataque. Era magro, mas tinha altura. O que mais me dava angustia era o olhar gélido e apático que ele me infringia. Parecia calcular ou me estudar, não sabia decifrar. Eu só relaxava quando ele se ia sem nem mesmo me dirigir a palavra.

O dia passava muito rápido e me deixava ainda mais ansiosa pelo que estava por vir… Se eu soubesse o que estava para acontecer, desejaria que o 4 de julho nunca existisse.

— Vamos lá, schatzie… Hora do cochilo reparador ou perderá a melhor parte da festa.

Josephine segurava meus ombros com carinho. O perfume de rosas não era forte, mas marcava sua presença de maneira peculiar. Levava-me ao quarto, trocava minhas roupas e me deixava confortável sob as cobertas após depositar um beijo suave em minha testa. Muitas vezes me pegava pensando em como ela tratava mamãe. Quando meu pai estava em casa era cheia de mesuras, na ausência dele era mais espontânea, até dava risadas. Muitas vezes interrompia as aulas de culinária e íamos para o jardim onde mamãe tomava um pouco de sol, apesar das ordens expressas de papai para que me mantivesse afastada por causa da doença dela. Ele dizia que eu poderia cansá-la mais que o habitual e isso poderia prejudicar o tratamento. Eu gostava, afinal era o pouco tempo que tinha na companhia daquela mulher delicada, de mãos macias de grandes olhos azuis tão parecidos com os meus. O cabelo negro caía-lhe em cascatas pelas costas. A pele alva e branquinha dava-lhe ainda mais um aspecto frágil. Perto dela, fraulein parecia um gigante, tanto que, algumas vezes em que ela sentia-se mal, era a alemã forte que a carregava para o quarto sem nenhum esforço.

Mas aquela tarde me parecia diferente. Havia um clima no ar que eu não sabia reconhecer. Instinto aguçado? Hoje eu tenho certeza que sim. Meu instinto militar me dizia que o dia era especial, mas minha inocência não permitia entender. Era comum eu logo me encontrar nos braços de Morfeu e ser acordada pela voz suave de mamãe, que o fazia aquela única vez o ano todo. Mas não foi o que aconteceu. Desavisadamente, eu iria quebrar a rotina daquele dia… Iria quebrar muito mais que isso. Rapidamente coloquei a roupa do passeio que estava preparada sobre a poltrona de meu quarto. Embonequei-me… Não… Tratei o traje como minha “farda” imponente que tinha de estar impreterivelmente impecável. Meus sapatos brilhavam. Minhas meias tinham que estar mais que brancas e as dobras da saia de meu vestido sem nenhum amasso. Estava pronta. Abri a porta com cuidado para não fazer barulho. Como um bom soldado, verifiquei se o “inimigo” não estava à espreita e segui meu caminho. No entanto um ruído me fez parar antes que eu alcançasse a escada. Vinha do quarto de mamãe…

 

— Entendeu, comandante?

Os olhos da mulher estavam brilhando mais que o normal. Debilmente fiquei a acompanhar o vai e vem de sua plaqueta de identificação dependurada como um pêndulo. Minha boca estava seca e a garganta ardia… Eu toda ardia… Ergui a mão para segurar o pingente e nem sabia por que o estava fazendo.

— Evelyn… Aqui não tem esse nome… Mas… — eu ria — foi esse nome que você me deu naquela noite… Faltava mais informação, não é mesmo?

Soltei a placa e, instantaneamente, tentei me erguer sobre as pernas, surpreendendo minha imediata. Não sentia mais meu corpo e não me importava se ele caísse ou não. O passado me tomou de volta para si sem que eu tivesse a resposta para isso.

Meu coração era de menina e eu dei graças a Deus por isso, pois ouvia nitidamente minha mãe urrar. Como um bom soldado, pus-me em direção ao perigo. Mamãe era doente, deveria estar precisando urgente de ajuda. O quarto de fraulein ficava no térreo e ela jamais poderia estar ouvindo, ainda assim, minha cautela me fez seguir devagar, passo a passo. Minhas ordens eram de nunca chegar perto daquele quarto. Ordens expressas de meu oficial maior. Mas eu me sentia como em uma das histórias de guerra que havia lido sem a permissão de papai. Um soldado destemido sempre se tornava um herói… Mais um urro e quase desço para chamar Josephine, pois minhas pernas tremiam. Recriminei-me por isso, afinal eu queria e muito ser uma heroína. Aproximei-me devagar da porta e o medo ainda me consumia. O bom soldado averigua bem o local de batalha. Era minha mente me dizendo o que fazer. Gemidos abafados eram o que meus ouvidos podiam detectar agora que eu encostava meu ouvido sobre a porta grossa de madeira cara. Meus olhos capturaram um feixe de luz pequeno. Queria, naquele momento, ser uma de minhas formigas, mas outra ideia me surgiu como um raio. Agachei-me bem devagar e pus minha retina esquerda na abertura da chave que, misteriosamente, estava desimpedida.  Havia um abismo entre aquele segundo e a minha aflição depois dele. Foram momentos entre uma dimensão e outra de minha vida, e tudo culminava nas mãos rudes de meu pai atirando-me contra a parede em um átmo de tempo.

— Vagabundas!!!!

A porta era aberta e as mulheres nuas, que eu conseguia ver entre um espasmo de dor e outro, confundiam-me o juízo.

— Vadias!!!

A voz de meu pai soava como granada e ao meu redor o campo de guerra era aterrorizante. Via corpos sendo violentados, objetos voavam com facilidade e eu, como um bom soldado, tentava me esquivar deles. O inimigo era forte. Mas eu tinha que prosseguir. Mas não estava no campo de batalha…

— Eu vou matá-la!!! Vou matá-la!! — direcionou-se a minha mãe.

— Trauen Sie ihrem Schicksal werden die gleichen sein (Atreva-se e sua sorte será a mesma)!!!!

Eram as palavras de ordem do inimigo. Fraulein respondia ao meu pai de maneira corajosa. Eu podia ver o corpo grande a proteger minha mãe daquela ira incontrolável, enquanto a vestia com rapidez. Fazia o mesmo enquanto meu pai só conseguia olhá-las. Achei que ele atiraria nelas. Estava armado, pois era o seu traje para o evento.

— Quero vocês fora daqui agora… Com a roupa do corpo!!! Não levarão nada daqui!!!

Minha mãe soluçou na hora. Atirou-se aos pés do homem prostrado como um poste.

— Minha filha… Deixe-me levar minha filha!

O rosto de pedra não se comoveu com a cena. Olhou-a como quem olha um verme. Repeliu-a deixando-a cair ao chão sem nenhum sentimento. Proferiu as palavras como uma profecia mal acabada.

— Que filha?!! Você não me deu nenhuma filha!! Não me deu um filho!! Não me deu nada além dessa sua doença podre!!! Suma de minha vida!!! E, saiba, estou te dando muito mais do que você merece!!!

Quando meu pai saiu do quarto achei que poderia correr para os braços de minha mãe, mas ele me levou junto, com suas mãos de ferro. Carregou-me escada abaixo e manteve-se do lado de fora da casa, segurando-me brutalmente para que eu visse as duas mulheres abandonarem a casa.

— Eu te amo, minha filha… Nunca se esqueça disso!!! — minha mãe bradava aos prantos.

Eu não sentia a dor que a pressão dos dedos fortes de meu pai faziam sobre meu braço. Não sentia a dormência que isso causava. Apenas sentia meu coração congelar diante daquela cena deplorável. Ela ia embora… Preferia a companhia de fraulein que a arrastava, tentando consolá-la.

 

Minhas mãos tremiam e meus olhos me enganavam. Minhas pernas me traíram e eu achei que o chão seria minha melhor estadia. Mãos gélidas me acalentaram a queda. Eu as sentia congeladas, mas, com certeza, era meu corpo que ardia em febre por conta da infecção. Mesmo com todo o torpor eu percebi meu corpo ser levado com uma energia incrível para a minúscula cama que pertencia a meu alojamento. Por um segundo em que abri meus olhos, vi o mais penetrante olhar que já havia recebido na vida.

— Posso ver?

Não transmiti qualquer resposta, o que, talvez, tenha lhe dado maior confiança ao abrir minha jaqueta e encontrar a regata branca manchada de sangue a encobrir o ferimento.

Neste momento eu a examinei minuciosamente. Cada movimento, de cada músculo facial daquele rosto muito sério jamais me daria uma brecha do que pensava.

— Vamos lá, Eve… Crie coragem em seu coração de soldado para me dizer que essa chaga está necrofilando mais rápido que o esperado… Quanto tempo?

— Ainda está doendo, não está? — a voz grossa e meio irritada respondeu a contra gosto.

– Graças a Deus, não é? — senti a gaze com antisséptico passear pelo meu tórax, provocando a tão necessária dor.

No instante em que a mão que me limpava tentava fugir do contato, as prendi entre as minhas.

— Por que deixou o menino lhe atingir?!! Por que sempre deixa a dor tomar conta de você?!! Por que sempre a dor, Ravena???!!!

Ela gritava enraivecida. Na verdade, sempre achei que ela me odiava mais que me amava. Não tivemos um relacionamento convencional. Não sei se as injeções de antibióticos e analgésicos faziam efeito ou se era apenas meu escudo de proteção, mas caí em um sono profundo antes de lhe responder.

 

Ainda não podia me conter de ansiedade. Papai me trancara no quarto e me proibira de me mover de lá. Um pouco mais tarde me levou comida. Pão, doces, e outras coisas as quais estava desacostumada. Parecia que tudo tinha sido “confiscado” da dispensa sem cerimônia. Criança, eu amei o cardápio inesperado. Só hoje percebo a gravidade do que tudo tinha representado aquele dia.

 

Em meu sonho sedado, via o lugar onde eu a encontrei pela primeira vez… Eve. Pagava caro pelo “antro” que me permitia algumas perversões. Na verdade, só uma. O gordo me levava pelo corredor até um quarto imundo. Duas vezes por mês, o ritual que se fazia. Uma cadeira diante da porta… Uma abertura pouco visível… Meus olhos invadiam a intimidade de duas mulheres… Toda a cena da infância me invadia e eu não conseguia ficar mais que alguns segundos. Esperava que, naquele dia, fosse diferente… E foi.

— Ravena…

O impulso de abraçá-la foi mais forte que eu. Precisava senti-la novamente em meus braços, de sentir seu cheiro, mas ele se misturava com o odor da morte. Não me restava mais nada a não ser me entregar. Desvencilhei-me do contato bruscamente e balbuciei, com dificuldade, um pedido.

— Traga os oficiais Lunardi e Collins… Preciso passar o comando…

Ela não me olhava nos olhos, mas não demonstrava qualquer emoção em seus gestos.

— Creio que confia muito em seu irmão. Se verificar no manual de condutas, só o oficial de comando e seu imediato podem saber sobre a operação…

— O que está insinuando, primeiro tenente?!!! Ele esteve comigo em todas as operações que comandei!! Eu ensinei a ele tudo o que sei!! É meu irmão!

— E em todas as situações você correu perigo extremo!!!

O que aquelas palavras queriam dizer, talvez eu já soubesse, desde quando meu pai havia me dado a guarda deste menino. Desde que pus os olhos nele.

 

Sete anos se passaram como o vento: sem novidades. Eu cada vez mais me inteirava das ações do exército sem que meu pai tivesse conhecimento. Por quatro anos andei por um colégio interno que só me deu subsídios para meu grande intento: ingressar na infantaria. Foi justamente quando eu voltava do “exílio” que recebi o grande presente de minha insípida vida…

— Vista-se a caráter! Nada de calças! Ou de qualquer outra coisa que possa me envergonhar hoje!! Entendeu?!

Não respondi. Meus dezesseis anos desafiavam a tudo e a todos e eu não tinha pressa. Estava feliz por estar em meu país. Eu tinha aprendido muitas coisas e me achava preparada para qualquer situação. Só não contava com aquele jantar, e não com os convidados de meu pai.

Depois de muito pensar, escolhi um vestido de minha mãe que, sem meu “velho” saber, livrei do destino trôpego de ser queimado com todas as coisas dela. Não havia me dado conta do quanto esta minha decisão seria inoportuna até que os olhos de meu pai me alcançaram quando eu descia a escada. As vozes se revelavam a cada degrau que eu superava. Ao final pude ver as fisionomias que me aguardavam.

— “Mein lieber…”

Antes destas palavras paternas pude identificar na expressão sempre tão austera, um quê emocionado pela visão. Mas fora apenas por uma fração de segundo. Logo o olhar petrificado me acolhia familiarmente.

— Esta é minha filha, Ravena. — os convidados olhavam-me curiosos. — Estes são os nossos convidados… Richard Weber e sua filha, Ingrid.

Os olhos verdes piscina da mulher queriam me engolir. Eu não era ingênua, não com minha idade e minha vocação para o conhecimento. Ali estava uma mulher perigosa.

Durante o jantar meu pai não poupava gestos de intimidade com a convidada e logo tornou públicas suas intenções. Limpou a garganta e, após ingerir um cálice de conhaque, abriu o verbo.

— Aproveitando a ocasião familiar, atrevo-me a deixar claro minhas intenções para com vossa filha, Senhor Weber… Se me permitir, gostaria de torná-la minha esposa o mais breve possível!

Não que a ideia de meu pai casar-se fosse, para mim, algo de absurdo, mas aquela situação não me deixava nada confortável, pois sabia da conveniência do ato apenas pelo olhar safado que a futura madrasta enviava para mim. Se ela tivesse pouco mais de vinte anos seria muito. O pai seguia a linha do meu: tudo pelo bom casamento. Meu pai oficial do exército com influências estatais e o senhor Weber, funcionário do alto escalão congressista. Tudo o que pediram a Deus.

A farsa não durou muito. Depois de quase um ano de casados, a tal Ingrid, sem aguentar todas as minhas recusas, aprontou-me das suas. Cercou-me, ofereceu-se, simplesmente agarrou-me sem controle e, ao perceber minha milionésima falta de interesse, rasgou-se inteira e bradou como louca atraindo a atenção de empregados e de quem mais lhe era esperado.

— Ravena!!! O que está acontecendo aqui?!!!

Aos olhos dele a cena por si já lhe entregava o relatório comprobatório de minha culpa.

— Amor… Me desculpa… — a atriz perfeita jogou-se nos braços de meu pai e finalizou o ato com palavras de autêntica dor. — Eu não queria!! Eu juro!! Ela insistiu loucamente!!! Que vergonha… Que vergonha, meu Deus!!!

Só com um olhar, meu pai ordenou aos empregados que cuidassem da “coitadinha” enquanto ele daria conta de mim. Meus olhos ardiam, mas meu coração parecia duro como o mármore. Dei-me conta de como eu me tornara fria como o gelo depois do acontecido com mamãe. Eu tinha planos. E, entre eles, não estava me submeter aos desmandos de meu pai.

— Vadia… — a palavra espremida entre os dentes alvos não me amedrontou. –… Sua mãe tinha que me deixar este legado… Uma filha vagabunda como ela!!! — deu passos em minha direção até que eu pudesse sentir o cheiro de sua colônia máscula. — Vai aprender a me obedecer… — e antes que eu pudesse me defender, o golpe em meu rosto atirou-me ao chão. — Vai aprender!!!

Antes que ele me atingisse de novo, derrubei-o com um golpe de jiu-jítsu. Prendi suas mãos as costas e resfoleguei em seu ouvido com uma fúria há muito guardada.

— Não vai me bater, “pai”… Não sou minha mãe, não sou sua filha… Não sou seu filho… — larguei-lhe os braços e deixei que se erguesse.

Passamos alguns segundos nos enfrentando até que ele se pronunciou.

— Fora de minha casa… Fora de minha vida…

— Como quiser, “senhor”… — bati continência com ironia e subi para meu quarto a fim de arrumar minhas coisas.

 

Os dedos que sentia passear por meu rosto deram-me uma sensação de paz inacreditável. Por mim, aquele momento jamais terminaria. A realidade, enfim, era imperativa, e vidas dependiam do que eu decidiria naquele instante.

— Estamos aqui.

Evelyn ergueu-se e pude ver dois homens prostrados diante de mim. Um tinha a fisionomia conhecida, a mesma que tinha visto sempre no semblante de meu pai, o outro era do sargento Collins, homem de minha total confiança.

— Estou gravemente ferida e preciso passar o comando para a primeiro tenente Parker. As ordens anteriores foram modificadas… — vi no olhar de meu irmão a tensão pela notícia. Vi o suor se instalar em seu rosto e a palidez fazer parte do quadro. — Essas modificações estão sobre a guarda do novo comandante e será compartilhada com seu imediato se assim for de seu desejo… — mandei um mudo recado para Eve e, com certeza, ela o acatou de imediato. — Boa sorte a todos… Só mais uma coisa… Quero ficar aqui neste alojamento e ser resgatada assim que os oficiais estiverem a salvo…

Pela primeira vez vi o amor de minha vida sair de sua capa de frieza acompanhada de Collins que reagiu negativamente a minha solicitação. Olhei a fisionomia impassível do oficial Lunardi e conclui a grande verdade sobre ele. Em seu leito de morte, meu pai havia entregado os cuidados do único filho em minhas mãos. Repudiara a esposa infiel e interesseira. Havia descoberto suas falcatruas e a deserdado. O menino de seis anos, loiro e assustado, estava ali na minha frente e nem sequer tinha se preocupado com minha enfermidade.

— Nenhum soldado fica para trás nesta missão! Tenho certeza que se eu estivesse em seu lugar as atitudes a serem tomadas seriam as mesmas…

Sim… Ela me amava tanto quanto eu o sentia… O primeiro toque íntimo em meu corpo fora dado por ela… O primeiro orgasmo… A primeira sensação de desejo e de ser desejada… A primeira a ouvir minha confissão de guerra… Do estupro que tinha sofrido na primeira missão que tinha originado a minha filha… De minhas lembranças infantis… De tudo sobre mim.

 

Após dois meses do fim da missão, pedi minha aposentadoria para me dedicar a minha família. Michael Lunardi, meu irmão, e segundo tenente, fora investigado e reconhecido como traidor. Andressa, minha menina, agora morava comigo e estudava em uma escola pública perto de casa. Muitas vezes a tinha pego pesquisando sobre alistamento militar. Eu limitei-me a passar o tempo escrevendo crônicas num pequeno jornal local e aventurava-me num romance épico. Um sonho que eu e minha adorável esposa Evelyn Parker passamos a querer realizar.

FIM



Notas:



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