Reencontro

Reencontro

– Você nunca vai saber o que é isso, Alexis, tenho pena de você. Afirmou à queima-roupa enquanto acariciava o cabelo do filho caçula, um rapazola de cinco anos que me olhava curioso. Fiz uma careta para o menino antes de responder com uma evasiva. Mas mulheres não se satisfazem de forma tão simples, não é? Então voltou à carga. Tenho pena de você, nunca saberá o que é formar uma família, construir uma nova vida.

Sorri amistosamente.

– Nem todas as pessoas anseiam por uma família. Eu, por exemplo, sempre tive outros planos pra mim mesma.

Beijou a testa do garoto e o mandou procurar o pai. Observou a corrida do moleque e só quando viu o marido pegá-lo no colo é que continuou.

– Você é doente.

– Por não querer o mesmo que você?

Não deixou a peteca cair. Pelo contrário, acelerou o discurso. Não prestei atenção a nenhuma das baboseiras preconceituosas que sua metralhadora girou em minha direção. Mas quando chegou a como meu estilo de vida é anormal e pervertido, não contive mais a língua.

– Você bem que gostava. Tanto do estilo de vida quanto do sexo. Garanto que seu marido não é tão bom de cama quanto eu.

Dei dois passos em sua direção. Camélia corou, desviou o olhar, cuspiu um palavrão e se afastou irritada. Pensei que estava livre. Agarrei um copo de uísque da bandeja de um garçom e me perdi pela festa. Gente bonita e papo interessante. Por que perder tempo com o passado? Justo eu que nem tenho memória e amo o presente! Mas a festa foi entrando pela noite, a bebida rodava generosa e não fui a única a beber desmedidamente.

Inspirei profundamente o ar fresco e recostei na balaustrada da varanda vazia. Abaixo de mim um grupo brincava em torno da piscina. Acima a lua exibia-se despudoradamente cheia. Pensei que talvez fosse hora de ir embora. Sentia meu corpo balançar suavemente mesmo estando parada. Sinal inequívoco de que estava na hora de ir.

– O passado está enterrado, Alexis, e você não devia falar nele.

Assustei-me. Não esperava que falassem comigo. Olhei a lua, respirei fundo pedindo aos céus uma dose extra de paciência e, sem me virar, respondi que era ela quem perseguia o passado.

Riu debochadamente, como fizera tantas vezes no tempo em que vivíamos juntas.

– Procurando? Mas se estou tropeçando em você desde o começo da noite! De onde você saiu, Alexis? Porque não ficou quietinha lá na nossa juventude, que era o seu lugar?

A voz pastosa deixava claro o estado em que se encontrava. Não falei nada. Se ficasse quieta talvez fosse embora, quem sabe…

Ao contrário, encostou-se à balaustrada a meu lado, seu braço roçando levemente o meu. Não se parecia em nada com a senhora austera que conversara comigo horas antes.

– Onde estão seus filhos?

A pergunta era uma mudança de foco, um retorno ao presente. Camélia  deu de ombros.

– Em casa, voltaram com o pai.

– Você não devia ter voltado com eles? Não é isso o que se espera de uma mãe de família?

Minha provocação não era inocente. Ainda estava ferida pelos desaforos que ouvira cedo. Mas minha ex-mulher não pareceu atingida.

– Não me julgue, éramos muito jovens, disse num tom monótono.

– Onde quer chegar com isso, perguntei depois de minutos de silêncio. Não vá insinuar que não sabia o que estava fazendo porque não vai colar.

– Saber talvez soubesse, respondeu imediatamente, mas estava perdida. Cresci em uma família sem estrutura, o que mais se pode esperar de uma jovem assim?

Minha irritação aumentou. Respirei fundo. Como uma pessoa pode negar sua própria identidade com tanta frieza? As palavras subiram ásperas pela minha garganta, mas me obriguei a engoli-las. Ao invés disso comentei, em tom sarcástico, que ela provavelmente esperava dar um ambiente melhor aos filhos. Camélia  começou então a listar as qualidades do marido, começando com a doçura do temperamento, a firmeza do caráter até desaguar no tamanho da conta bancária.

– E a pica?

Soltei a pergunta como um insulto, sem nenhuma educação. Olhou-me nervosa pela primeira vez.

– Você sempre sem modos, rosnou agressiva.

– O tamanho da pica importa mais do que a conta bancária, respondi com sarcasmo. Ah, claro, você não se interessa muito por picas, emendei um segundo depois.

Camélia  me olhou com raiva.

– Quem você pensa que é pra saber do que gosto?

– Alguém que te comeu infinitas vezes, respondi cafajestemente, e colei meu rosto ao dela. Afastou-se e ameaçou ir embora. Mas deu meia volta e retornou. Não conseguia me evitar.

– Você continua a mesma, Alexis. Se acha a maioral, não é?

Talvez sim, talvez não. Mas aquela conversa estava me irritando. Camélia  estava certa em uma coisa: aquilo tudo pertencia ao passado. Mas meu destino de ser curva de rio faz com que o inesperado me aconteça muitas vezes. Era melhor acabar logo com aquilo. Como uma garota doida feito Camélia  havia se transformado naquela dondoca insuportável? Não conseguia imaginá-la em minha cama. Na verdade, não a queria dentro de minha casa, fuxicando minhas coisas.

– E você, Camélia? Mudou tanto assim? Já esqueceu o que meu toque consegue fazer com seu corpo?

Fez cara de nojo. Afastou-se mais uma vez e de novo não conseguiu ir embora. Deu a volta em meu corpo e parou do outro lado. Próxima, muito próxima. Senti seu hálito alcoólico quando falou.

– Nem só de sexo se vive, sabe? Hoje tenho coisas mais sólidas do que o prazer fugidio que você me dava.

– Imagino a solidez das coisas que você tenha hoje, respondi de imediato. Quase consigo ver o carro importado, a casa enorme…

– Apartamento de cobertura, ela me interrompeu, e olhou para a lua como se falasse de forma casual. Tinha o cabelo tingido de ruivo e cortado à Chanel. Devia ter pago uma fortuna ao cabeleireiro, mas nela aquilo parecia tão fora de moda…

– Foda-se seu apartamento de cobertura. Se sexo realmente não importasse nada você não estaria aqui enchendo meu saco! Levei a mão aos bolsos e só depois lembrei que parei de fumar. Parei de fumar há anos! Mas Camélia estava me tirando do sério.

A pessoa que há pouco forçara uma expressão de nojo colocou de leve suas mãos em meu peito, os dedos brincando ora com a ponta da gola, ora com os botões do colarinho.

– Se estou lhe incomodando por que você não vai embora?

– Era o que estava me preparando pra fazer quando você chegou.

– E aí você ficou…

Seu rosto quase colou ao meu, as mãos nervosas passeando por meu colo.

– Mas estou indo.

Com a mesma decisão com que falei, retirei suas mãos de mim. Não consegui me afastar, entretanto. Camélia me puxou pelo braço, enroscou-se no pescoço, se atirou em minha boca. Sedenta.

Continuava gostosa, a filha da puta, e o corpo reagiu mais do que eu esperava. A pele se arrepiou na lembrança de um prazer antigo e deixei as mãos passearem por ela. Conhecia seus caminhos de cor. Estava com saudades daquelas curvas?

A verdade é que aquilo era caso antigo, de antes de conhecer meu destino. Da época em que acreditava no amor. Amor que perdi de forma doída. Ferida antiga, já cicatrizada. Mas sabe como é, quando ainda fica casquinha basta um esbarrão pra sangrar tudo de novo.

Por isso eu ainda permanecia na festa e meus beijos eram ávidos. As generosas doses do melhor uísque importado foram desculpa para a permanência. Mas era nas voltas pelo salão, nos olhares trocados furtivamente, que residia o motivo real por ainda estar naquela festa tão chata. Tão burguesa. Tão a cara dela, mas nem um pouco a minha.

A nova cara dela vale ressaltar. Nunca me conformei de tomar um pé na bunda de uma mulher que se rendera aos encantos da confortável e careta vida burguesa. Uma garota que vivera sua juventude em nome dos prazeres – dos sórdidos aos mais pueris.

Foi por ela que vim a essa festa de gente metida. Por ela eu escorregava, vez ou outra, pelos salões chiques da sociedade, na esperança vã de encontrá-la. Esperança nunca perdida, ao longo de dez anos. E que hoje se mostrava bem fundamentada.

E era bom – muito bom mesmo – perceber que meu coração não balançou sozinho. Camélia não me esquecera. Nossos corpos morriam de saudade um do outro. Com certeza não foram poucas as noites em que se saciou pensando em mim, da mesma forma que meu prazer solitário tão constantemente procurava por ela. Meu desejo virou combustão na potência de todo o álcool ingerido. Lá embaixo os gritos na piscina nos tiravam a ilusão da solidão. Mas a varanda aqui em cima estava escura e deserta. Os poucos convivas da festa preferiam a música e o movimento do andar debaixo. Prendi o corpo dela contra a balaustrada, dentes cravados em seu pescoço, e puxei com força a saia do vestido longo. O tecido subiu fácil.

Desembaracei-me dos panos para achar suas coxas grossas e ainda tão firmes.

– Puta! Não acredito que me trocou por esse vara mole!

– A vida é mais do que sexo, Alexis.

– Então por que está aqui agora?

– Porque a vida é sexo também.

Cravei os dentes em sua carne e chupei com volúpia. Camélia gritou. Pensei na marca que ficaria no pescoço, em como a piranha ia explicar aquilo ao marido, e senti mais tesão. Ela, por sua vez, não parecia preocupada. Segurou a saia, afastou as pernas, incitou-me ao ato.

– Mete! Sonho com você dentro de mim. Todas as noites. Sempre. É sempre você que está dentro de mim. Quero ser sua, Alê. Quero agora, como fui tantas vezes. Lembra? As loucuras que a gente fazia?

Quente, molhada, louca como nos velhos tempos. A pele ainda tinha aquele cheiro de maresia, de quem cresceu à beira mar. Venci a roupa íntima e entrei sem cerimônia provocando um grito que, com certeza, foi ouvido da piscina e de todos os lugares. Foda-se! Quem tinha que manter a pose de madame era ela.

– Mais grosso, mais fundo, ela gemeu. Atendi com a satisfação de quem pode se adequar ao desejo da mulher amada. O velhaco do marido nunca faria do jeito que faço. Recordando agora parece tão pouco! Mas naquela hora era tudo. Só queria fazê-la gozar como ninguém mais – jamais! – faria. Êta orgulho besta!

– Vamos pra sua casa? Não foi fácil me livrar do Henrique, quero aproveitar tudo o que tenho direito.

– Não.

Fechou a perna, no susto, a madame indignada. Como assim, não?

– Se quiser vai dar pra mim aqui e agora. É isso ou nada.

Posso viver mais mil, um milhão de anos. A expressão atônita de Camélia nunca sairá de minha memória. E a cada vez sentirei o prazer exato que senti naquele momento. A infeliz não disse nada. Então lambi meus dedos, acintosamente, e girei o corpo no sentido do salão que, parecia, estava completamente vazio.

Ela, madame no salto alto, tão arrogante no reencontro horas antes, atirou-se sobre mim, faminta, as mãos bagunçando minha camisa.

– Você não vai fazer isso, Alê! Não vai me deixar aqui, desse jeito!

– De que jeito?

– Como de que jeito? Alê…

– Diz.

Tenho certeza de que a raiva e o desejo cintilavam meus olhos. Nem eu sabia ao certo de onde me vinham aquelas ideias. Meus sonhos de vingança chocavam-se com os de desejo e a química que produziam poderia me levar à loucura. Era como se, aparecendo a oportunidade, ódio e amor duelassem em mim, cada um querendo abocanhar a maior parte do quinhão naquela briga.

– Com tesão.

– Só?

– Louca por você.

Fiz um muxoxo indignado.

– Achei que você estivesse sentindo mais do que isso.

Camélia não soube o que dizer. Tenho certeza de que não soube, porque calou a boca. Mas não perdeu os argumentos. Minha ex-mulher é do tipo que só desiste de uma briga se estiver morta. Bêbada, sem coordenação para se livrar do vestido que, na verdade, era daqueles de fecho nas costas do qual uma mulher sozinha dificilmente escapa, ergueu a saia e se jogou no chão, pernas abertas, oferecendo-se, entregando-se.

– Aqui, Alê, me come aqui, me come onde você quiser, amor. Mas me tira dessa miséria! 

Sim, foi ali. Mas não deitada. Foi a meu modo: deixei-a de quatro na varanda daquele rico casarão que abrigava uma das mais imponentes casas de festas da cidade. Lambi, meti dedos e língua, matei a saudade dela por dentro e saciei, não tanto minhas vontades, mas as dela. Perdeu o senso. Gritou pra que na festa todos ouvissem. Tenho certeza que sim, que ouviram. E é essa certeza que até hoje me enche de tesão e me faz gozar tudo o que, na hora, não gozei nela.

Um revival, não mais que isso. Camélia ficou no chão, animal saciado. Ajeitei roupa e cara o melhor que pude e fui saindo. Não era nada importante. Na manhã seguinte empurraria aquilo para o fundo de minha memória como se nunca tivesse acontecido. Minha vida era uma eterna roda de sexo casual. Para isso eu nascera. Para ser o desvio na rota das outras pessoas. Não na minha. Que eu não tinha rota, seguia ao sabor do vento.

– Meu celular é o mesmo, Alê.

Parei no limbo. Metade de mim era a luz do salão. A outra metade perdia-se na escuridão daquela – veja só que ironia – noite de lua cheia.

– Mantive o número. Sempre tive esperança de que você me procurasse. Você vai me procurar, não vai?

Retomei o passo, invadi a luz. O salão estava arrumado. Ao fundo dois garçons carregavam bandejas para o andar debaixo. Gargalhadas, um grito de desafio e em seguida o inconfundível barulho de um corpo caindo na água. A caminho da escada alguns sussurros ganharam meus ouvidos. Em outros pontos remotos, outros casais aproveitavam a festa como desculpa libidinosa. O ar estava fresco quando cheguei à rua. Voltei para casa a pé, as mãos metidas nos bolsos da calça. A caminhada não demoraria mais do que meia hora. Olhei a lua. Esotéricos, poetas e amantes dizem que interfere em nosso juízo. Provavelmente era isso. Culpa da lua.



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