Restaurante

Restaurante

 

Eu já devia estar saindo do restaurante. Jéssica, em sua mania de me fazer enlouquecer, enchera a caixa do meu celular de mensagens com imposições absurdas. Era cansativo, mas eu teria que engolir mais esta, afinal eu era a gerente do lugar e ela a proprietária. O encontro era de negócios e eu não podia reclamar. Naquela manhã as faturas me pareciam manuscritos encontrados no Mar Morto: incompreensíveis. A batida na porta me fez ter calafrios. Que não fosse nenhum problema. Abri apressada e Raquel, meu braço direito no estabelecimento, entrou com um sorriso que me dizia claramente: PROBLEMA!

— Maria não suporta mais… Não sozinha… Temos que contratar mais uma copeira ou vamos ter sérios PROBLEMAS!

— Não! Contrate! Veja os currículos que temos.

— Calista, os que temos são do ano passado. Olhe, tem uma moça esperando lá embaixo… Procura emprego…

Fui até o vidro que mostrava quase toda a área do restaurante, principalmente onde ficavam as mesas. Avistei uma mulher pequena de cabelos loiros e curtos, muito finos. O pescoço era alongado dando-lhe uma elegância nata. Parecia muito nervosa ao massacrar as mãos uma com a outra. De repente o olhar extremamente verde dela me fitou diretamente. O susto que tive foi tão grande que me fez afastar subitamente da vidraça.

— Você está bem? Que foi? Viu fantasma?

Sim, eu tinha visto um fantasma. Não me lembrei de que o vidro especial me escondia da visão lá embaixo. Como ela poderia ter olhado para mim? Voltei a atenção para os papéis e disse sem muito interesse.

— Ela trouxe currículo? Tem algum problema que a impeça de alongar horários quando precisarmos? Tem nível escolar suficiente para o cargo?

A todas estas perguntas, recebi respostas afirmativas.

— Contrate. — organizei as notas na pasta e me preparei para sair. — Jéssica está me esperando. Fique de olho aqui para mim. Vou tentar não ficar muito tempo fora.

Ouvi a risadinha de deboche de Raquel.

— Mesmo? Quer apostar comigo? — o semblante dela ficou sério de repente. — Tem que acabar com isso de uma vez, Calista. Tenho um pressentimento muito ruim a respeito…

Raquel me olhou com preocupação. Era minha amiga há mais de quinze anos. Eu ainda era ajudante de cozinha e tinha sido ela que me arranjara o emprego. Sem querer pensar no que ela me dizia, abracei-a forte e me despedi. Ao passar pelo salão, dei mais uma olhada na moça sentada em uma das mesas. Vi quando Raquel lhe falava e o alívio em seu rosto quando soube que estava contratada. Vi a luz que tomou conta daquele ser tão incomum. Mas o que era aquilo? Era uma mulher como todas as outras. No entanto havia me dado uma das melhores sensações que tive na vida: um baque assustador no coração.

UM MÊS DEPOIS…

 

— Me traga os cardápios e os livros de reserva. — pedi a Raquel ao entrar no restaurante com o celular no ouvido, conversando com Jéssica. — Você tem que prestar atenção ou vai perder muito dinheiro! — recebi o solicitado e continuei a falar. — Não vai valer à pena se ele não cobrir as dívidas!

Quando olhei em volta estaquei imediatamente. Afinal o que tinha acontecido com o restaurante? Desliguei o celular me despedindo apressada da maluca e olhei atentamente cada detalhe do lugar. As mesas tinham sido remanejadas de uma forma tradicional como pedia o estilo, mas as colocações haviam conseguido mais espaço para circulação e ficaram propriamente mais aconchegantes e menos expostas ao janelão que rodeava a frente do estabelecimento.  Alguns spots que iluminavam as mesas foram redirecionados sem que se perdesse a claridade. Os clientes reclamavam algumas vezes que a iluminação causava certo calor. Tinha pensado em fazer esta reforma há tempos, mas ali estava tudo o que eu queria. E veio do nada?

— Gostou? — a voz de Raquel era entusiasta e seu rosto mostrava um sorriso satisfeito. — E não é só isso. Preste atenção nas toalhas e guarnições da mesa. Simples, otimizando nosso tempo em prepará-las, mas sem deixar de ser elegante… Mais que as antigas…

Um sorriso veio aos meus lábios e foi para Raquel que eu o enviei.

— Oh, não, não… — ela mexia as mãos em negatividade. — Não é para mim que tem que dar este sorriso. Isso tudo foi ideia de Leila, nossa copeira arquiteta! A menina tem um dom!

E meu coração, já acostumado a sentir aquele baque cada vez que via ou ouvia falar na nova copeira, não decepcionou. Bateu como um louco e calou sem saber o que dizer.

— Sei que o restaurante abre em dez minutos, mas preciso falar com o Chef Lunardi. Diga que venha falar comigo antes de iniciar a preparação dos cardápios. — saí sob o olhar atento de minha funcionária e amiga.

 

Depois de duas horas de trabalho contínuo na organização de um enorme evento que o restaurante recepcionaria dali a uma semana, ouvi a porta se abrir sem cerimônia e o perfume tão usual invadir o ambiente… Jéssica. Jogou-se em meu colo já tomando minha boca em um beijo dominante, quase rude.

— Amei a surpresa, coração!! Ficou tudo lindo e chique como eu gosto!! Por isso quero você como minha sócia!

E tentou me beijar mais uma vez ao que eu recusei me levantando de supetão quase a derrubando ao chão. Fui até o banheiro que ficava no próprio escritório e lavei a boca tentando retirar o batom importado. Voltei e encontrei-a sentada em minha cadeira fingindo ler alguns papéis. Sorri debochada. Ela nunca lia nada sobre o restaurante.

— Então, será que vamos à bancarrota? — cruzei os braços e fiquei em pé diante da mesa.

Ela levantou-se e deu a volta até ficar bem em frente a mim. Baixou um pouco a cabeça, mas quando a levantou, reconheci imediatamente aquele olhar faminto.

— Fico feliz que tenha conseguido o arquiteto perfeito. Ficou melhor que as expectativas. Pode me dar o contato dele? Estou pensando em redecorar o apartamento do Leblon. — avançou um pouco mais para perto. — Sei que não gosta de se expor aqui no restaurante… — ergueu a mão até o primeiro botão de minha blusa um pouco entreaberta. — Mas sabe que fico louca quando você me surpreende com sua imensa competência… — enfiou o dedo entre meus seios e ficou subindo e descendo bem devagar.

Fiquei observando aquela mulher que havia me ensinado tantas coisas sobre… Sexo. Era sexo… Para ela… E, agora, para mim. Mas no começo eu era uma apaixonada. Uma menina deslumbrada, apaixonada pela mulher mais linda que eu já tinha visto… Muito de perto. O pensamento me fez dar um sorriso imperceptível, porque ela foi a primeira que eu tinha visto de perto, pois eu era recém-saída do interior e, pela graça da boa vontade de uma mulher, amiga e fiel, Raquel, eu conseguira o primeiro emprego. Segurei a mão dela com força e a fiz parar em um segundo.

— Quanto ao arquiteto, não posso te dar o contato. — aproveitei para pegar minha cadeira de volta.

— Como não? Ele fez um trabalho perfeito!

— ELA fez um trabalho perfeito.

Os olhos azuis, muito expressivos, ficaram perigosamente brilhantes, remexendo no cabelo preto e liso. Eu sabia muito bem o que se passava na cabecinha oca. O ciúme.

— Ela?… Está me dizendo que foi uma arquiteta e que não pode me dar o contato dela?

— Porque não fui eu quem a contratou. Aliás, ninguém a contratou… — sorri por dentro vendo-a se corroer de curiosidade.

— O que está me dizendo? Que não sabe quem meteu a mão no meu restaurante?!!!

Levantei-me exasperada com a falta de senso daquela mulher que um dia pensei ter amado.

— Não! Estou lhe dizendo que não foi contratada! Ela já trabalha aqui! É a nova copeira!!

A palidez no rosto dela me assustou absurdamente.

— Está… Me… Dizendo… Que uma copeira… Uma CO-PEI-RA!!! Modificou o meu restaurante sem minha ou sua autorização?!! Quem ela pensa que é? Está demitida!!! DE-MI-TI-DA!!! Entendeu?!!!

Eu realmente estava no meu limite na relação com ela. Ainda me lembro de quando a vi chegar à cozinha do restaurante. Parecia nem pisar no chão. O olhar fazia questão de filtrar quem não interessava. Ao passar por mim, pensei que não me enxergaria, mas quem não enxergaria uma mulher de 1,85m, ruiva, agachada, tentando limpar o molho de tomate que tinha sido derrubado uns segundos atrás? Tremi quando ela me olhou dos pés, digo, às mãos, pois era tudo que ela via, porque eu fazia questão de esconder-me daquele olhar desaprovador.

— Você!

Meu corpo gelou. A primeira coisa que me veio à cabeça era: estou demitida! Bem devagar fui me erguendo, enxugando as mãos no macacão que usava no trabalho. Quando tomei coragem de fitá-la nos olhos aconteceu a coisa mais extraordinária do mundo em minha pobre vida… Ela sorriu tão amistosamente que nem parecia a mesma pessoa que tinha entrado naquela cozinha.

— Qual o seu nome, menina?

Os olhos extremamente azuis da mulher mais velha, acho que uns dez anos mais que eu, me fixavam com ardor. Os meus, castanhos bem claros, muitas vezes confundidos com verdes, mergulharam naquele mundo. E eu, com apenas vinte anos, me perdi.

— Calista… — foi o que me lembro de ter respondido.

 

— Está me ouvindo, Calista?!!! Quero esta mulher fora de meu restaurante!!!

A histeria dela tinha sido uma de minhas descobertas, quando a “paixão” começava a dar sinais de que tinha ido embora. Não me importava mais se ela gostava ou não do que acontecia no restaurante. Não me importava mais o que ela sentia. Nada mais importava. Toda uma vida ao lado dela tinha me esgotado de tudo.

— Você acabou de me passar seu atestado de satisfação!! E ninguém me diz o que fazer no restaurante que administro há mais de dez anos… Se quiser comandar seu negócio, fique à vontade! Não precisa mais de meus serviços!

Vi seu semblante se modificar em milésimos de segundos, e sua voz macia entoar uma ladainha antiga.

— Meu coração, não foi isso que quis dizer… O restaurante é seu, você sabe disso… E será oficial quando você disser uma simples palavrinha: sim.

— O problema é que esse “sim” é duplo… Digo sim à sociedade… E sim a nossa união estável. Eu não tenho escolha.

— Por que tem que escolher? Você é minha… Sócia e amante… Unimos o útil ao agradável…

Quando foi que eu descobri, finalmente, o que ela queria de mim? Foi na primeira vez que ela me deixou sozinha em um quarto de hotel, no nosso primeiro aniversário de namoro. Voltou dois dias depois como se nada tivesse acontecido. O engraçado é que não me faltou nada enquanto ela estava sumida. O secretário mor grudou-se a mim como carrapato. Levou-me a passeios, pagou todas as despesas. Compreendi imediatamente que ela tinha sucumbido a sua vida fútil de ter o que queria… Sempre. Deu-me a gerência de seu restaurante para que os “outros” não soubessem que se relacionava com uma simples ajudante de cozinha, mas surpreendeu-se com minha brilhante competência. Durante minha gestão, o grupo abriu mais três restaurantes, incluindo um no Distrito Federal onde a cúpula da política nacional se reunia para encontros importantes. Ela tinha tudo o que queria. A amante perfeita… E a gestora perfeita. Agora tinha orgulho de me ter do jeito que queria. Revistas da área e jornais de economia cercavam sua grande preciosidade: eu. Perguntava-me se ela não me tinha apenas como uma botija, o pote de ouro no fim do arco-íris… A galinha dos ovos de ouro. Lembrei-me das palavras de Raquel. Precisava me livrar de Jéssica antes que ela conseguisse o que realmente queria… Escravizar minha alma.

— Já conversamos sobre isso e seu prazo está se esgotando. Com certeza gostaria de ser sua sócia… SUA SÓCIA! Nenhum outro contrato agregado. Amo o que faço, mas não permito que controle minha vida!

Ouvi o suspiro longo. Ela sempre fazia isso. Dava tempo para encontrar mais uma saída para adiar a decisão, para pensar… Tramar, eu diria. Olhou para o relógio e falou com certa impaciência.

— Sinto muito, meu coração, mas agora tenho que me encontrar com Joceline, minha terapeuta. Falamos à noite… Te pego às onze. — saiu apressada.

Que convincente. Sentei-me na poltrona exaurida.

 

xxxx

 

O meu telefone não parava de tocar. Olhei para o lado e não encontrei Jéssica. Suspirei entediada concluindo pela enésima vez que ela estava cansada de mim. Atendi aborrecida.

— Seja o que for pode ficar para amanhã! — gritei sem nem saber quem era.

— Bom dia pra você também, chefinha!

Era a voz de Raquel e, para ela ter ligado, mesmo sabendo que eu odiava ser incomodada no meu dia de folga, o assunto deveria ser grave. Suspirei mais uma vez e sabia que ela desembucharia logo em seguida.

— É a Leila… Ela precisa de um empréstimo urgente…

— Sabe muito bem da política da empresa sobre esse assunto… — interrompi ainda irritada.

— Desde quando você se importa com a política da empresa quando o problema é grave?! O filho dela está no hospital e precisa ser operado de urgência… Sabe como funciona… Sem dinheiro, sem vida!

Ela estava certa. Mesmo a política sendo de não fazer empréstimo a funcionário eu nunca negava um.

— Tudo bem Raquel… Faça como achar que deve… Mas não me aborreça mais com este tipo de problema durante minha folga!!

Bati o telefone com força. Era incrível como eu fugia de qualquer aproximação com aquela garota. Nunca havia tratado um funcionário com tanta indiferença. Isso não queria dizer que eu não me preocupasse, muito pelo contrário, trataria de dar a melhor assistência ao menino, mas ela nunca saberia de mim.

 

CINCO MESES DEPOIS

 

Dia ruim. Jéssica não me deixava em paz. Os fantasmas não me deixavam em paz. Uma copeira loura e arquiteta não me deixava em paz. Nunca precisei tanto de respirar… De esquecer quem eu sou. O restaurante estava fechado. Um dos últimos a sair era o ajudante chefe da cozinha.

— Chefa? — esperou que eu o olhasse. — Estou indo… A cozinha está em ordem… A chefa não vai também?

A voz afetada não me irritava. Era um bom homem. Um pouco velho para o serviço, mas excelente como se tivesse quinze anos.

— Não se preocupe Jonas… Você é o último? — fingi olhar para os papéis.

— Não, senhora. Leila ainda arruma tudo para amanhã. Disse que termina logo e Raquel está terminando de contar o estoque.

— Boa noite. — foi tudo o que respondi.

Abri a gaveta e de lá retirei uma velha fotografia. Tão velha que quase não se via quem estava retratado nela. Mas eu via. Via o que eu pensei ser meu futuro… O amor que me abandonara sem prévia há quinze anos.

 

RAQUEL.

 

Minha preocupação com Calista aumentava a cada dia. Como ela não percebia que estava se matando? Matando o que ela tem de mais especial: a alma. Jéssica era uma vampira nata. Eu conhecia bem suas estratégias. Calista era o brinquedo que estava durando mais, mas não seria para sempre e eu sentia que o fim se aproximava. E um fim trágico, pois ela estava visivelmente cansada da “brincadeira”. Calista ficaria sem nada. Abri as caixas de guardanapo sem muita concentração e acabei por derrubá-la no chão espalhando pacotes por todo o lado.

— Puta que pariu!!! — soltei com toda a força de meu pulmão.

A porta da dispensa abriu-se repentinamente me deixando ver uma galega esbaforida, acho que pela carreira que deve ter dado até aqui.

— Raquel, que foi?!!! Você está bem?!!! — perguntou me apalpando toda.

Eu comecei a rir do nada. Que menina estranha era aquela. Não parei de gargalhar deixando-a com uma cor avermelhada que me indicava o limite do bom humor. Parei assim que ela fechou a cara.

— Não fica assim, galeguinha… — puxei-a para um abraço — Sua amiga só está um pouco estressada, nada demais… Desculpe… — beijei-lhe a testa com carinho.

Carinho… Era o que aquela moça de modos finos nos remetia. Uma vontade de proteger de tudo. Era uma criança perfeita. Atenciosa, gentil, inteligente. Era o sonho de amor de qualquer pessoa. Poderia muito bem ser o sonho de amor de… Suspendi os pensamentos imediatamente, pois uma dor enorme me envolveu ao lembrar-me de alguém exatamente assim. Ela percebeu minha mudança.

— Que foi? Tá tudo bem, eu não estou chateada não… — sua preocupação aumentou quando grossas lágrimas caíram de meus olhos. — Quel… Por favor, não chora… — ela mesma já chorava, se agarrando em mim.

Achei que tinha esquecido, mas não. As lembranças estavam lá… Minhas e de minha amiga Calista.

— Estou ficando velha… — larguei o corpinho frágil sorrindo e ela me acompanhou, mas ainda com olhar preocupado. — Sabe, menina… A vida às vezes parece nos pregar peças… — disse apanhando os pacotes do chão com sua ajuda — Você é uma destas peças… Peça boa… Muito boa… Talvez você esteja aqui por um propósito que só Deus sabe. Espero que tenha sido para salvar… — calei antes de entregar minhas intenções.

— Está preocupada com a chefa?

Terminei de colocar os pacotes na caixa e franzi a testa, curiosa pelo fato da perspicácia da garota. Quis saber até onde ela sabia e dei corda.

— Por que acha isso?

— Seu olhar cada vez que está com ela… Ou quando ela está com… Com a chefona… — baixou os olhos encabulada.

O que ela sabia das duas? Por que ficou constrangida? Como que adivinhando minhas dúvidas, acabou emendando.

— O pessoal diz que as duas… Elas… Bem… Têm um caso… — a vermelhidão tomou conta completamente daquele rosto angelical.

— Esse assunto é terminantemente proibido no restaurante!! — as fofocas me tiravam do sério.

Ela olhou o chão mais uma vez para depois me olhar muito sinceramente.

— Acho que está preocupada porque acha que o relacionamento é antinatural e tem medo que a chefa sofra…

Se eu não estivesse tão deprê e nervosa tinha lhe dado outra gargalhada na fuça, mas não foi esse meu sentimento. Meu sentimento foi de repúdio. Estava cansada da mente podre das pessoas em relação ao homossexualismo.

— Leila… — cheguei bem pertinho dela e encarei aqueles olhos azuis límpidos. –… Sabe o que é antinatural? Milhões de africanos morrerem de fome enquanto o desperdício de comida no mundo é palpável!! Antinatural é a família execrar uma menina que engravidou por ignorância dos próprios pais… Antinatural é uma população de miseráveis serem castigados todos os anos pela enchente e o governo dar a mesma desculpa de sempre para o problema… Antinatural é um homem largar mulher e filho ao Deus dará, desaparecer no mundo e depois de quatro anos voltar para pedir dinheiro!!!!!

Nesta última observação quis imensamente ter mordido a língua. A palidez dela me assustou. Usei seu segredo mais doloroso. Pisei em seu coração sem dó apenas para defender Calista. A vergonha me tomou por completo quando ela, gentilmente, pegou minha mão e apertou com delicadeza antes de sair sem dizer nenhuma palavra.

 

LEILA

 

Na rua eu percebi a ausência de seres humanos. Em outros momentos eu teria medo e andaria às pressas até o ponto de ônibus. Não tinha pressa… Para quê? Filho e mãe já adormecidos. Suas lembranças amargas de uma vida mal construída. As palavras de Raquel foram duras, mas… Ela estava certa. Quando soube da chefa, que ela era lésbica, eu relembrei antigas feridas. No ensino médio uma garota havia me atacado no banheiro e peguei uma fobia imensa de estar a sós com outra garota.  Mantive uma fobia quase que doentia do assunto homossexualismo ou de pessoas “assim”. Levou um tempo para me livrar disso. Acho que foi quando conheci Guilherme, meu único homem. Foi meu namorado e marido… O único. Eu estava segura e podia encarar tudo reconhecendo que eu era normal.

Avistei um bar logo na esquina. O garçom atendia um casal. Sentei-me e pedi uma bebida. Olhando em volta tive a sensação da maior solidão do mundo. Revirei toda a minha vida para encontrar um momento em que não me sentisse assim. Nem mesmo a existência de Carlos, meu filho, tirava o vazio que existia em mim desde sempre. Revi meu casamento e me odiei por ter confiado em alguém como ele. Namoramos durante três longos anos. Depois de muita insistência minha, de minha mãe e de seus pais, finalmente ele aceitou se casar. No começo tudo era maravilhoso. Todos os dias ele me surpreendia com uma coisa nova, e eu me sentia a esposa mais feliz da face da terra, mas a lua-de-mel durou pouco, o exato tempo de eu engravidar. Foi o dia mais terrível de minha vida, não pela gravidez, mas pela maneira como fui tratada por ele. Eu me sentia pior que nada. Ele passava o fim de semana bêbado, saia e voltava no outro dia sem dar maiores explicações. Até que Carlos nasceu e ele sumiu. Quatro anos.

— Mais alguma coisa, senhorita? — o garçom colocou o copo de uísque com gelo na mesa e aguardou a resposta.

— Não… Por enquanto…

Ele se foi e eu continuei minha peregrinação pelo passado.

 

xxxx

 

— O que está fazendo aqui ainda?

A voz de Raquel me trouxe de volta ao presente. O tempo congelara enquanto eu admirava a foto em minhas mãos. Vi que ela percebera o que eu estava fazendo.

— Quando vai parar de sofrer essa amargura, Calista? ELA SE FOI!! Quando vai parar de remoer essa mágoa dentro de você?!!

— Quando eu souber o que aconteceu de verdade!!! Quando eu tirar de minha cabeça que ela me abandonou sozinha numa cidade grande depois de ter me prometido o céu!!! Maldita hora em que eu aceitei conhecê-la!!! Maldita internet!!! Maldito site de conto lésbico!!! Maldita seja minha mania de escrever besteiras!!!

Vi os olhos de minha amiga se estreitar perigosamente, e sabia muito bem o que aconteceria depois disso.

— Muito bem… — a voz macia escondia o tumulto interior que lhe consumia. –… Juro por Deus que eu tentei… — disse olhando pra cima como se falasse com alguém. Voltou a me olhar. –… Você acha que ela foi embora como uma sacana qualquer e é a única pessoa que sofreu e sofre nesta vida… Como está enganada, menina! Anya te amava mais que tudo nesta vida e te deu a maior prova de amor que alguém é capaz de dar a outro…

— Uma vadia que me trouxe para este inferno e, depois que aproveitou muito, me largou como uma indigente!!

— CHEGA!!!! CHEGA!!! — ela gritou vindo furiosamente em minha direção. — As únicas vadias que conheço são você e sua patroa perua!!!! Lave sua boca nojenta com sabão antes de falar de Anya!!!! Ela não te abandonou, sua pretensiosa metida à merda!!!! Ela se retirou para morrer!!!! PARA MORRER!!! Ela te poupou da coisa mais triste que já presenciei em minha vida!!!!!

— Morrer?… Mas… Mas… — eu não conseguia pensar direito sobre o que ela estava falando.

Sentou-se na cadeira em minha frente.

— Prometi a ela que nunca te contaria… — a voz trêmula denotou a emoção que ela tentava conter. — Quando ela trouxe você para cá eu nunca a tinha visto tão feliz… Apesar de toda minha campanha contra, fiquei satisfeita com a felicidade que via em seus olhos quando falava de você… Apesar de meus ciúmes… — disse a última frase em tom baixo. –… Eu a amava desde os tempos de colégio e sua amizade para mim era o maior tesouro… Então ela surgiu com a novidade de que conheceu uma escritora maravilhosa na internet, mas tinha medo porque era uma criança… Dezoito anos contra os seus trinta e dois. Achei a maior loucura… Tivemos brigas homéricas e, muitas vezes, saí machucada delas. Pensei em desistir da amizade, mas sentia a transformação naquele rosto quando o assunto era “sua menina escritora”… Não via mais a solidão em seus olhos, nem o jeito triste de encarar a vida. A primeira vez que vi sua foto, Calista, eu entendi porque ela se apaixonara tão rapidamente. Você era um anjo. Então entendi que eu nunca teria chance com ela. Trazer você para a cidade e começar uma nova vida era seu único sonho. Os pais lhe deixaram uma herança boa e ela se sentia forte o suficiente para encarar a vida com uma menina do interior; então, dias antes de você chegar, ela teve um mal súbito. Foi o pior dia de minha vida. Levei-a ao hospital e lá ficamos sabendo da doença… — as lágrimas dela eram as minhas. –… Ela… Ela… Murchou como uma delicada flor bem diante de meus olhos… — ela se condoia pelos meus soluços apertando minha mão fortemente. — Ela te amava tanto, Calista… Mesmo sabendo que teria pouco tempo, resolveu te trazer assim mesmo… Contestei sua decisão, mas ela disse que sabia o que estava fazendo, que não podia deixar você lá, escondida, sofrendo com uma família incompreensiva que te tolhia todo o talento e me fez o doloroso pedido de cuidar de você quando ela se fosse… E nunca contar o que tinha acontecido… Perdão, Anya… Perdão…

Os olhos da mulher com expressão cansada apertou-se em aflição, enquanto segurava a mão da patroa.

— Por que ela me escondeu isso, Raquel? Por que você me escondeu isso?!! Por que me deixou odiá-la este tempo todo?

— Para ela não ter que cuspir na sua cara cada vez que a doença atacava! Para não ter que te obrigar, uma menina de dezenove anos, a trocar suas fraldas quando nem mesmo ir ao banheiro ela conseguia! Para que não visse o corpo dela secar e encolher como uma uva passa… Meu Deus… — colocou as mãos no rosto em desespero.

Fui até ela e a aninhei em meus braços. Agora eu entendia tudo. Como eu tinha sido egoísta com minha amiga. Agora entendia seus dias de cão quando comecei a trabalhar no restaurante. Suas lágrimas furtivas durante o expediente. As faltas… As olheiras profundas quando retornava. E eu só me preocupava com minha dor, com meu ego ferido. Anya tinha sido meu primeiro amor. Por ela eu tinha modificado meus planos de morte para vida plena. Saí de meu mundo de trevas e encarei a luz do sol sem medo de ficar cega. Passamos meses maravilhosos em uma praia paradisíaca, até que, um dia, acordei só na cama. Uma carta estava ao meu lado. De alguma maneira eu sabia que ela tinha me deixado. Abri e as palavras calaram fundo em minha alma…

Acredito que tudo na vida tem um propósito. O propósito de nos conhecermos foi você me fazer conhecer a felicidade pelo menos por um tempo, e eu de te fazer crescer como mulher… A mulher mais maravilhosa que já conheci na vida. Agora a minha retirada terá outro propósito que, um dia, eu sei, você descobrirá. Não se preocupe… Não estará sozinha… Uma amiga muito querida está indo te buscar. Ela cuidará de você e fará por você o que eu faria se pudesse. Eu te amo, Calista… Nunca se esqueça… Beijos e… Seja feliz…”

 

LEILA

 

O trinado estridente do telefone me assustou. A cabeça rodava e doía incessantemente. Aterrorizada, percebi que não estava em casa. Sentei-me na cama rápido demais e a tontura quase me fez deitar novamente. Atendi e falei com o recepcionista me avisando que foi instruído a me acordar naquele horário. As lembranças da noite passada iam e vinham. Lembrei-me da conversa com Raquel na dispensa e de como fiquei triste com ela. Lembro que entrei num bar e pedi uísque, e… Mais nada. Passei a mão pelo cabelo preocupada, olhando tudo a minha volta. Conclui que era um quarto de hotel quando vi na cabeceira um cartão com o logotipo… “Não tenha pressa em sair se estiver passando mal. As diárias já estão pagas. Espero que fique bem.” Não estava assinado e a letra era de forma. Ao lado do cartão estava um copo com água e um efervescente. Tomei-o e rumei para casa, atordoada com o acontecido.

Minha mãe estava no jardim pequeno de nossa casa humilde. Não me parecia preocupada ou nervosa. Surpreendentemente, sorria para as plantas numa alegria incomum. Quando ouviu o barulho do portão se abrir, logo veio até mim me abraçando.

— Filha, como você está? Dormiu bem?

Olhei-a invocada e perguntei:

— O que foi, Dona Gertrudes? Ganhou na loteria? Que alegria é essa?

A mão calosa, mas extremamente gentil me alisou o rosto.

— Fico feliz de saber que está se divertindo, minha filha… Saindo com quem sabe cuidar de você… ELE foi muito cavalheiro em ligar me tranqüilizando sobre seu paradeiro…

— Ele quem mãe? — mais estupefata fiquei com o que ela acabava de me dizer.

— Minha filha, não fique com vergonha de sua mãe… Faz tempo que você não sai com alguém…

— Mãe…

— Deixe pra lá, não precisa me explicar nada… Você parece muito cansada. Tem almoço pronto no microondas e seu suco preferido na geladeira, agora eu tenho que terminar aqui antes de pegar o Carlinhos na creche.

 

CALISTA

 

Abri a porta olhando para o relógio que marcava meio-dia. Que noite! Meus olhos pareciam estar cheios de areia e minhas costas queimavam como labaredas. Fazia tempo que chegar em casa não me dava tanto prazer. Depois da conversa tardia com Raquel, eu me permiti uma coisa que fazia tempo não me permitia: me perdoar. Tive sempre a impressão de que eu tinha feito algo de errado para Anya. Não via outra explicação para ter sido abandonada do jeito que fui. Um peso saíra de minhas costas e me senti enormemente aliviada com isso. Saber que ela me amava ao ponto de ter feito o sacrifício de morrer longe de mim, me fazia sentir especial… Amada. Fechei os olhos e pedi perdão a ela intimamente. Ouvi um barulho esquisito vindo do quarto. Olhei mais uma vez para o relógio. Não poderia ser Jéssica, ela tinha me dito que não dormiria em casa ontem. Andei devagar até o cômodo e os ruídos foram se decodificando em minha mente. Reconheci os gemidos, os arfados, os roçados de corpos… O som do sexo. Ao abrir a porta do quarto, o grito de gozo explodiu em meus ouvidos como a sentença inevitável. A cara da menina estava lambuzada do orgasmo poderoso de Jéssica. Lembrei-me da minha que, muitas vezes, fora banhada por ele. Me vi no lugar daquela pobre criatura enredada na teia cruel de uma ninfomaníaca e enjoei. Entendi imediatamente porque Raquel insistia no meu afastamento da “bruxa”. Logo fui percebida pela jovem que, instintivamente tentava se cobrir envergonhada. Jéssica me olhou com um brilho diferente no olhar. Não parecia assustada, nem surpresa. Estava à vontade como se tivesse planejado tudo.

— Que bom que chegou, coração… Esta é Nádia… Uma “provável” amiga nossa… Que tal termos nossa primeira “conversa”? Ainda estou cheia de tesão… — puxou a criatura assustada para si num abraço enredado de posse e libido.

Era o fim e minha participação nele, o desfecho doloroso e sinistro. Diante dos brilhos intensos dos olhares desejosos, me vi tirando a roupa como um autômato. Minha mente estava vazia de mim e de tudo que restara daquele relacionamento.

 

LEILA

 

O comentário de minha mãe não me saia da cabeça. Que homem teria ligado para cá e a tranquilizado quanto ao meu paradeiro na noite de ontem? Enquanto eu me despia para entrar no chuveiro, flashes dos acontecimentos vinham incertos. O garçom era uma das figuras que apareciam. Lembro-me dele ter me perguntado se eu gostaria de ligar para alguém, mas não me lembro de minha resposta. A imagem sumia cada vez que eu forçava a memória. Quando a água me atingiu em cheio a cabeça, outro momento flashback surgiu nitidamente. Me vi em um banheiro e, com certeza, não era esse que eu usava agora. Mãos firmes me mantinham debaixo do jato, enquanto eu xingava horrores. Podia ouvir a voz segura no comando de minhas ações, mas não conseguia distingui-la.  Absurdo era eu me sentir imensamente protegida com alguém de quem nem me lembrava. Pior foi reconhecer o quanto fui imprudente em tomar um porre sem companhia. Pela milésima vez a conversa com Raquel invadiu meus pensamentos. O jeito como ela colocou minha atitude para com a chefa calou minha alma e recordações dolorosas retornaram com força. Não que eu tivesse algo contra o fato de Calista ter um relacionamento amoroso com a proprietária do restaurante, mas a falta de tato e de costume de falar sobre o assunto me fez escorregar e passar uma imagem de preconceito, o que não era, definitivamente, minha intenção. Agradecia todos os dias pela confiança que a chefa demonstrou quando permitiu o empréstimo para pagar o hospital para Carlinhos. Observava-a de longe algumas vezes e percebi o quanto era compenetrada no trabalho. Tratava a todos com consideração e respeito, mas o que mais me chamava atenção nela era o olhar. Uma profundidade impressionante como que atraísse para dentro de si. Havia também uma tristeza disfarçada na seriedade, como se tivesse sofrido demais. Eu entendia muito bem que sentimento era aquele. O mundo fica distante, as pessoas são afastadas e as emoções são trancadas a sete chaves. Era assim que eu me sentia depois da decepção com o casamento. Foi durante estes anos de solidão que me dei conta do quanto fui imatura ao aceitar casar-me tão nova e sem estrutura para suportar uma inevitável separação. O que era mais estranho é que tinha tomado a decisão impelida pelo medo. Senti uma taquicardia forte ao relembrar o episódio no banheiro da escola. Uma mulher me tocando como um homem e, apesar da ojeriza no momento, confessei intimamente que o fato me atormentava não pela quase violência do ato, mas a sensação de que se tivesse sido menos traumático eu não me importaria de ceder às carícias. Por muito tempo quis crer que odiei a ideia de uma mulher me tocando pelo simples preconceito de não aceitar o homossexualismo. Acabei por concluir que apenas a maneira tosca como fui abordada é que tinha me irritado de verdade. Depois do ocorrido comecei a ter sonhos estranhos e todos eles envolviam o contato sexual com uma mulher. Acordava em pânico e desesperada. Acreditava piamente que eu estava doente. Foi quando ficou insuportável e tive a terrível obsessão de casar-me o mais rápido possível como se isso pudesse de alguma forma aliviar meus temores. Não estava pronta para Guilherme. Achava-o imaturo demais, deslumbrado demais com as coisas mundanas, ou seja, era um “galinha” disfarçado de bom menino para não perder as regalias que o pai rico oferecia. Ele, o pai, insistia para que se casasse e formasse família para assumir seus negócios. Ainda assim, Guilherme resistia, mesmo querendo imensamente por as mãos no dinheiro do “velho”. Insistências, pressões, interesses, esse conjunto levou o gajo ao altar em três tempos. Surpreendentemente, no começo, ele se tornou uma pessoa a qual eu desconheci completamente. Atencioso, compreensivo, um autêntico marido amoroso. Meu alívio foi imenso, mesmo a noite de núpcias tendo sido uma decepção que ele jogou nas costas da bebida e do cansaço do dia. Foi quase rude e privou-me do prazer de ter meu primeiro orgasmo. Meu sorriso triste apareceu para constatar a grande verdade: eu nunca tive um orgasmo com ele. Às vezes o conseguia nos momentos de solidão em minha cama imaginando um verdadeiro amor. Foi com este último pensamento que despertei para a vida e para o atraso iminente para voltar ao trabalho. Troquei de roupa e me preparei para sair. Não toquei no almoço que mamãe preparou, primeiro por que estava em cima da hora e, segundo, porque meu estômago revoltava-se cada vez que pensava em comida. Trabalhar no restaurante hoje seria uma tortura.

Na saída dei de cara com um “capetinha” loiro se jogando em meus braços assim que me viu.

— Mamãe!! Não vai trabalhar hoje, ebaaa!!!

Meus olhos se encheram de lágrimas. Depois que comecei a trabalhar no restaurante tinha perdido o contato com meu filho. Os horários das escalas quase nunca combinavam com os horários dele. Minha mãe era quem supria esta falta, mas não era a mesma coisa.

— Mamãe vai ter que ir trabalhar, meu amor, mas prometo que acho uma brecha esta semana para levá-lo ao parque ou aonde você quiser…

Os olhinhos azuis iguais aos seus entristeceram-se, mas logo ganharam vida quando falou rápido:

— A gente pode ir pro parque pra você conhecer a Maria! Ela me dá presentes quase todos os dias e lê histórias! Muuuiiitas histórias!!!

Aquela era nova. Minha mãe nunca tinha mencionado essa Maria, mas não tinha tempo para questionar isso agora. Estava atrasada. Apertei meu menino nos braços e parti.

 

CALISTA

 

Meus olhos ardiam. A pele enrugada dizia do tempo que eu estava de molho naquela banheira. A escuridão trancava meus sentimentos e tudo doía profundamente. Um sufocamento me agitava o corpo inteiro. Nenhuma lágrima se atrevia a ser testemunha de tudo o que ocorrera naquele quarto entre eu e aquelas mulheres, apenas um soluço preso, a respiração falha e a impressão que desfaleceria a qualquer momento. As marcas em meus braços, em meu ventre, possivelmente em minhas costas pela ardência e dores sentidas a cada movimento mais forte. Meus lábios estavam doloridos… Principalmente os de minha intimidade. Fechei os olhos numa tentativa tola de parar o que não poderia mais ser evitado. Eu me entreguei… O corpo foi dado em sacrifício em prol de um final consistente e indissolúvel. Eu estava livre. Com muita dificuldade me ergui e, me apoiando na parede, consegui pegar a toalha. Olhei para a porta com nojo de passar por ela. As duas ainda estavam na cama, num sono profundo de quem “trabalhou” e muito. A muito custo me vesti e arrumei uma pequena valise com alguns objetos pessoais e roupas. Não ficaria ali nem mais um minuto. Não me via mais como o brinquedinho de luxo de uma mulher mimada. Ela saberia como agir quando acordasse. Eu tremia muito e sentia que desmaiaria a qualquer momento. Enquanto arrumava minha bolsa olhei para o celular e conferi as várias ligações de Raquel. Olhei para o telefone fixo fora do gancho… Coisas de Jéssica. Suspirei profundamente e pedi perdão a ela por não poder falar-lhe agora. Precisava me esconder um pouco. Tive uma lembrança leve, apaziguadora de meu terror íntimo… A noite passada… Deixei as chaves da casa em cima do criado mudo e saí depressa, pois o táxi que havia chamado já estava na porta e, em hipótese nenhuma, eu deixaria que ele buzinasse me alertando.

 

NO RESTAURANTE…  RAQUEL.

 

— Leila! Que bom que chegou! — abracei a menina loura que entrava desprevenida no salão.

— Raquel, que aconteceu?

A assustada criatura perguntou, preocupada com meu desespero. Comedi minha palavra para não deixá-la mais apavorada do que eu percebia.

— Você entende de administração não é? — comecei devagar.

— S-sim… Trabalhei dois anos… Numa empresa de arquitetura…

O titubeio dela me deixou nervosa, mas não tinha outra saída: ela tinha que me salvar.

— Venha! Quero que olhe umas faturas. Um fornecedor muito importante vai chegar e quer checar todas as compras que fizemos no mês para providenciarmos os pagamentos… Eu não entendo bulhufas disso e Calista simplesmente não atende ao telefone!

Saí rebocando a lourinha para o escritório e, apesar da cara de susto dela, não ofereceu resistência. Entreguei-lhe as pastas e esperei que me dissesse alguma coisa. Ela olhou com atenção cada papel que estava contido nelas. Demorou-se em alguns e me pediu outros que ela teve de adivinhar onde estavam, quando lhe entreguei todas as pastas que eu via pela frente. Depois de muito tempo não suportei mais o silêncio e aquela feição compenetrada.

— Então? O que acha?

Ela deu um sorriso tranquilo me deixando aliviada. Ainda mais quando declarou sincera.

— A chefa é muito organizada. Está tudo pronto aqui nestas duas pastas. Entradas e saídas, prazos de pagamento e recebimento. Dentro delas estão as planilhas com todos os valores e datas. Não temos com o que nos preocupar.

Ao dizer isto um dos funcionários bate a porta anunciando a chegada do representante do fornecedor. Olhei para Leila implorando para que ela fizesse o contato. Eu não tinha jeito para lidar com aquilo.

— Fica tranqüila, Quel… Eu falo com ele. Acho que nada pode dar errado. Está tudo muito bem anotado.

Dei-lhe um abraço agradecido e desci dando passagem para o tal do fornecedor.

 

Minha preocupação com a reunião me fazia ir de quando em quando ao salão para saber se tinha acabado. Na quarta vez em que o fiz, vi Leila descendo a escada sorridente, da mesma maneira que o representante que apertava-lhe a mão entusiasmado e satisfeito. Quando ele saiu do restaurante eu corri para ela.

— Como foi? O que ele disse? Tá tudo certo?

— Calma, Quel! Está tudo em ordem. As contas são pagas no débito automático, ele só veio conferir as faturas, nada demais… O que será que aconteceu com a chefa? Será que ela esqueceu o compromisso?

Meu semblante anuviou-se na hora. Tinha a impressão de que tudo tinha a ver com Jéssica. Em mais de dez anos trabalhando com Calista nunca a vi se atrasar para nenhum compromisso, principalmente quando se tratava de dinheiro. Isso me dava a ideia de que algo muito incomum acontecera. Leila parecia perceber minha inquietação.

— Posso fazer mais alguma coisa para ajudar?

Voltei à noite anterior e relembrei as palavras que tinha dito aquele ser tão amável por causa de Calista.

— Sim, tem… — segurei as mãozinhas finas e macias. –… Me perdoe pelas palavras amargas de ontem…

Ela baixou a cabeça talvez envergonhada de ter expressado algum tipo de preconceito.

— Eu que peço desculpas, Quel… Não foi minha intenção fazer qualquer tipo de comentário preconceituoso… Sou muito grata a esta empresa pelo benefício que salvou meu filho…

Ergui seu rosto pelo queixo e dei-lhe um sorriso de compreensão que a fez encher os olhos de lágrimas.

— Menina… Sei que este coração é enorme e que as palavras que usou é de uma menina inexperiente em relação à vida… — continuei com as mãos dela nas minhas vendo as lágrimas caírem uma a uma. — Você tem é que desculpar esta mulher que está beirando a melhor idade e se esquece de que já foi jovem… No mais, minha preocupação com Calista me deixa nos cascos com qualquer um que se atreva a ofendê-la… Esquece tudo… — enxuguei algumas gotas que rolavam com meus dedos. — Então que tal eu pagar uma biritinha hoje à noite para conversarmos um pouco?

Fiquei estática quando, ao terminar a frase, ela caiu numa gargalhada desenfreada. Quando ia pedir explicações meu celular vibrou.

— Calista! Onde diabos se meteu?!  — abrandei a voz quando debochadamente me respondeu que estava bem e agradeceu pela preocupação. — O que houve? Onde você está? — enquanto falava com ela notei a atenção que a loirinha dava ao diálogo e me parecia bem preocupada. — Tudo bem… Não, não se preocupe, Leila resolveu o problema… Calista? Ainda está aí? — indaguei quando o silêncio dela persistiu. — Sim, eu já agradeci. Amanhã? Claro… Quando você volta? Tudo bem… — recebi outra resposta debochada. — Desculpe… Não…Eu falo com ela… Tudo bem, mas… Calista? Calista? — ela tinha desligado.

O olhar azul estava apreensivo, e eu sentia que podia confiar nele. Levei-a para sentarmo-nos numa mesa e desabafei.

— Não sei o porquê, menina… Mas confio em você e sei que nunca me decepcionará… — respirei fundo e continuei. — Calista está com problemas… Ela não quis me dizer o que era, mas desconfio que tenha a ver com Jéssica… A história delas é muito forte… Está disposta a escutar?

Investiguei bem aqueles olhinhos e, por uma fração de segundos, vi a dúvida pairando por ali, para logo depois ouvi-la falar…

— Quero… Preciso ajudá-la de alguma maneira… Ela foi muito compreensiva com meu problema financeiro…

Fiquei observando aqueles trejeitos meio nervosos, encabulados eu diria, e soltei na mesma hora…

— Tudo bem, vamos sair hoje à noite e conversar… Já disse e repito: este assunto não rola dentro da empresa…

— Mas sem biritinha, por favor… — disse e sorriu doce antes de se levantar e se encaminhar para a cozinha.

 

 

CALISTA

 

Chegar ao escritório não tinha sido tarefa fácil. Não consegui dirigir. Dores alternavam-se em lugares bem complicados de meu corpo. Com muita dificuldade consegui subir à minha sala e foi lá que a encontrei com um sorriso lindo olhando meus papéis.

 

NO DIA SEGUINTE… LEILA.

 

A conversa com Raquel fora longa e, apesar do cansaço pela ressaca, eu me vi interessada demais na longa história. Percebi em certos momentos a grande admiração que Raquel sentia pela chefa. Abri a porta do restaurante sentindo falta de vê-la muitas vezes numa mesa meio escondida com uma xícara de café observando o nada. Era uma imagem que perdurava durante um bom tempo na minha memória. Fiquei por alguns segundos olhando a mesa preferida quando Raquel me assustou mais uma vez.

— Também sinto falta dela nesta mesa…

— Como?

Tentei disfarçar o quanto pude, mas vi no sorrisinho de canto de boca a confirmação de que tinha sido pega em flagrante. O que eu estava dizendo? Que flagrante? Eu só estava pensando… Calei a conclusão da frase surpreendendo-me comigo mesma. Estava me importando demais com a vida de Calista e não era apenas gratidão.

— Preciso que olhe mais alguns papéis… Não sei quando ela vai voltar…

— Farei o que for possível, Quel… Não se preocupa…

 

Depois de deixar tudo encaminhado na copa subi ao escritório e comecei a olhar tudo. A organização que aquela mulher tinha era incrível. Não devia ser nada fácil controlar todos aqueles documentos e deixá-los tão simplificado que qualquer um poderia assumir imediatamente sem problemas. Talvez ela pensasse assim, que poderia faltar a qualquer momento e as coisas se complicariam. Esbocei um sorriso lembrando-me dela rondando a copa verificando tudo pessoalmente. Nesse momento deu de cara com um papel manuscrito… Reconheceu a letra, mas não sabia de onde.

— Espero que o sorriso de antes me diga que está tudo bem por aqui…

A voz forte, mas muito gentil causou-me uma taquicardia imediata e um filme inteiro sobre a noite da “biritinha” começou a se desenrolar nas minhas recordações.

 

CALISTA

 

Meus movimentos ainda eram dificultados pelas dores. Tentei disfarçar o andar, mas de repente uma vertigem me atacou e quase desmaiei no meio do escritório. Vi quando seu semblante ficou preocupado e o corpinho frágil voou em minha direção para evitar a possível queda. Em todo o lugar que ela tocava eu gemia o que foi lhe desesperando cada vez mais.

— O que aconteceu? Você foi atropelada? Te bateram? Vou chamar Raquel!!

Impedi-a de sair segurando-a pela mão. Nossos olhos se encontraram como se fosse a primeira vez. Acredito que pus neste olhar toda minha fragilidade e tristeza do momento num pedido de socorro sufocado.

— Estou bem, Leila… Apenas não comi nestas últimas vinte e quatro horas…

— Mas e… Seus gemidos… Parece estar toda machucada…

Eu não tinha percebido que a mão dela ainda estava na minha e nem eu nem ela tínhamos nos dado conta disso. Ficamos ainda a nos olhar profundamente. Eu encantada com o azul extremo daqueles olhos, e ela me decifrando, me invadindo como quisesse descobrir todo meu pensamento. Foi então que vimos Raquel entrar como uma desesperada na sala.

— Quando chegou?!! O que aquela vaca fez com você?!!

Quando Raquel segurou-me o braço inspecionando tudo, as marcas apareceram junto com o eto de Leila ao vê-las. Eu não tinha mais forças. Deixei que Raquel desvenda-se o mistério das dores. Ferimentos de unhas, chupões, grandes áreas roxas no colo. Vi as lágrimas de Leila uma a uma deslizarem pelo rosto pálido e horrorizado. Foi minha última visão antes de tudo escurecer ao meu redor.

 

Um leve toque no meu rosto despertou-me do esquecimento onde me encontrava até ali. Ao abrir os olhos, deparei-me com aquele rosto tão familiar e tão desconhecido ao mesmo tempo. Vi neles um carinho, uma ternura nunca vista antes. Talvez isso tenha contribuído para o meu choro silencioso.

— Vai ficar tudo bem… Eu vou cuidar de você…

A mão delicada continuava a acariciar a pele de meu rosto. Percebi que estava em um lugar diferente… Não era um hotel. Notando a minha curiosidade a lourinha tratou de dissipá-la dizendo que estava no apartamento de Raquel.

— Foi você que me ajudou naquela noite, não foi?

— Não aconteceu nada demais, Leila… Estava saindo do restaurante quando te vi sentada acompanhada de uma garrafa e um copo… Fiquei preocupada pela hora e por suas condições…

— Bêbada…

— Não quis te levar como estava para sua casa, mesmo porque você não conseguia articular muitas palavras e eu não sabia seu endereço… Te levei para um hotel e..

— Me deu banho… Café amargo e me pôs pra dormir depois de ouvir muitas besteiras… Me desculpe…

— Não gostaria de te ver de novo nesta situação, mas, se fosse preciso, faria tudo novamente…

Um clima se instalou de repente entre nós. Capturamos o olhar uma da outra e, quando tentei segurar-lhe a mão que repousava delicadamente ao lado da minha, nossa amiga em comum apareceu com uma bandeja de comida.

— Pode ir desfazendo essa cara de menina birrenta! Vai comer tudo, entendeu? Até o último pedaço! Loirinha, cuida dela pra mim… Vou voltar lá para o restaurante. E qualquer má criação me ligue e venho imediatamente! — olhou com braveza disfarçada para a amiga.

 

UMA SEMANA DEPOIS…

 

— Ainda vai demorar com isso?

Raquel me tirou da concentração nos papéis e de outras preocupações.

— Termino já… Está indo?

Ela me sorriu tranquila e suspirou.

— Sabe que horas são? — olhou-me divertida abanando a cabeça.

Olhei para o relógio do computador e me assustei. Tinha ficado quase seis horas analisando as contas, os contratos, enfim, tudo o que se referia ao restaurante. Ela me deu um tchau rápido e saiu. Recostei na poltrona e fechei os olhos. Ouvi a porta se abrir novamente.

— Tá bom, Raquel! Eu já vou embora também…

— Posso falar com você um minuto?

A voz calma de Leila me assustou mais do que devia. Ela percebeu meu nervosismo e se desculpou. Pedi que sentasse e ela iniciou nossa conversa.

— Tem uma coisa me incomodando muito, Calista… — respirou fundo e me invadiu com o azul cristalino daqueles olhos que eu queria pra sempre em mim. — Faz uma semana que não consigo mais pensar direito, nem me concentrar em nada que não seja… — aprofundou mais o olhar em mim. — Você sabe do que estou falando…

Vi o rosto delicado ficar rubro bem devagar, deixando notar a gradiente entre pálido e vermelho claro. Eu sabia do que ela estava falando. Eu também não conseguia mais evitar o pensamento no que tinha acontecido naquele dia e, desde então, tinha me afundado no trabalho numa tentativa de fugir daquele ser tão raro que estava em minha frente. Naquela noite, depois que Raquel tinha voltado para o restaurante e me deixado aos cuidados dela, começamos uma conversa agradável. Não sei em que momento nos vimos num beijo suave. Acredito que tenha sido a proximidade gritante quando ela tentou ajeitar os travesseiros em minhas costas. Não respirávamos e os breves segundos em que nossos lábios se tocaram tornou-se uma eternidade para mim. Quando nos afastamos ela deu uma desculpa e seguiu para a cozinha sem nenhum comentário.

— Preciso saber… O que significou para você… Preciso saber se eu não ultrapassei algum limite… Se…

Levantei-me rápida e, quando vi, já estava a seus pés, segurando-lhe as mãos delicadas.

— Em nenhum momento pense que eu fui leviana ou que… — parei me refazendo da emoção… — Não me tome como uma pessoa impulsiva… O que aconteceu tem muito a ver com nós duas…

Ela levantou-se constrangida. Deu-me as costas e demorou um século para depois se pronunciar.

— Estou pedindo minha demissão… — massageou a têmpora esquerda com exagero.

— Eu acho que…

Não tive tempo de terminar minha tentativa de fazê-la desistir da intenção de deixar o restaurante. Saiu antes que eu pudesse dizer-lhe de meus sentimentos. Demorei alguns segundos até entender que ela não poderia partir… Não daquele jeito. Alcancei-a na porta de saída.

— Preciso de você! — despejei meu desejo vendo-lhe o eto.

Ela me olhou confusa e desatou…

— Pode encontrar uma copeira melhor que eu, Calista! O restaurante não vai falir por causa disso!

— Não é o restaurante!! — gritei irritada. — Sou eu! EU vou falir se você me deixar!!

Dizendo isso a puxei para um beijo desejado há muito tempo. Beijo sem susto… Sem pressa… Descobrindo cada lugarzinho bom de sugar. E, da boca, meus lábios partiram para seu rosto, demorando-me no nariz afilado, mordendo-o com suavidade. Quando ia me pronunciar sobre o momento, surge Raquel como um fantasma…

— Me desculpe, Calista, mas… É a Jéssica…

Ao ouvir aquelas palavras, Leila escapou de meus braços e saiu. Fiquei a olhar para Raquel sem entender.

— Que se dane a Jéssica!!!!

— Ela sofreu um grave acidente de carro… Chama por você com insistência… Está morrendo, Calista…

 

O hospital exalava um cheiro de morte terrível. Enquanto esperava para poder ver Jéssica, muitos horrores eu via passar diante de meus olhos. Queimados… Esfaqueados… Fechei os olhos para não pensar em como estaria Jéssica quando a encontrasse, pois o que eu via era tenebroso demais para se imaginar. Lembrei-me de Leila. Pensei em ligar, mas meu espírito estava desconfortável demais com aquele desmembramento do destino. A mulher que aguardava minha presença merecia de mim este comportamento. Ela me fizera crescer como ser humano, mesmo agindo da maneira torpe que agiu. Quando eu ainda sofria por um amor naufragado foi ela que deu a paixão de volta me dizendo que eu estava viva. Agora não importava seus defeitos. Ela era parte de minha vida e eu não podia escapar disso.

— Me acompanhe…

A voz grave do médico me tirou daqueles pensamentos e eu o segui. Era um hospital de emergência. Jéssica tinha dinheiro o suficiente para ter a melhor assistência do mundo, mas aquele hospital era considerado o melhor na traumatologia, mesmo sendo um hospital público. Acompanhei seus passos até uma enfermaria. O medo de ver algo que eu jamais esqueceria tomou conta de mim. Avistei a cama que ela ocupava, não pela fisionomia dela, mas pelos detalhes do corpo… Corpo que fora meu muitas vezes.

— Ela não tem muito tempo… Recusou a UTI… Mesmo porquê, foi informada que de nada adiantaria… Só a dor seria amenizada e ela dormiria o tempo todo. Preferiu ficar consciente.

O homem se afastou e eu pude vê-la melhor. O rosto inchado e parcialmente coberto por curativos. Um olho ficou de fora e se abriu assim que me aproximei.

— Sabia… Que viria… Obrigada… — tentou erguer a mão sem sucesso deixando-a cair ao seu lado.

Imediatamente a segurei com a minha. Eu não sabia o que dizer. Simplesmente não sabia.

— Não… Precisa… Falar… Nada… Não quis… Ser tão má… Naquela noite… Mas… Queria livrá-la de mim… Estava… Te matando aos poucos… E a mim… — fechou os olhos por uns segundos. — Os restaurantes… São seus… Já… Providenciei… Meu advogado… Vai… — parou de falar e respirou com dificuldade. — … Tudo… Já… Estava… Em… Seu nome… — apertou minha mão com mais força. — Quero… Que saiba… Você… Foi… É… A melhor… Coisa… Que aconteceu… Em… Minha… Vida… — a pressão de sua mão na minha foi diminuindo até cessar.

Os alarmes das máquinas que monitoravam sua vida soaram mórbidos. Enfermeiros se aproximaram para constatar o óbito. Beijei-lhe o rosto… A mão… Agradeci-lhe a passagem por minha vida, porque foi ela quem me trouxe de volta para o mundo dos sentimentos. Fiquei um tempo a observá-la e senti uma tristeza imensa por ela ter tido este final. Uma mulher tão dona de si não poderia ter um fim mais infeliz. Depois dali providenciei todos os trâmites e dei-lhe um enterro digno. O pai apareceu apenas para calar a imprensa e manter seu nome ilibado. Jéssica sempre fora independente dele, principalmente quanto à dinheiro. Sim, usou de sua herança da mãe e investiu nos restaurantes. A soma de seu patrimônio ia além deles. O restante foi doado à caridade de crianças sem instrução. Assisti à leitura do testamento, muito emocionada. A mulher que estava morta se revelava a mim. Não sabia ela que, em morte, tinha me feito uma mulher muito feliz… Muito mais do que em vida.

 

UM MÊS DEPOIS…

 

— Onde ele está!!

Minha mãe me olhava com aflição. Eu simplesmente ignorei-a e interpelei ao médico mais próximo. A resposta foi vaga. Acidente comum, ele disse. Gostaria de saber se ele daria a mesma resposta se fosse o filho dele.

— Veja bem, poderia ter sido pior se ele não fosse socorrido com tamanha presteza. Muitas mães acham que uma queda é uma bobagem, mas a mãe logo percebeu que não foi uma simples queda… — o médico olhou-a confuso. — Quem é você? É da família? A mãe do menino foi resolver alguns assuntos burocráticos… E…

Larguei-o falando sozinho. Minha mãe estava tensa quando me aproximei para saber detalhes.

— O que está acontecendo aqui?!!

Mal terminei a frase e Raquel, saindo não sei de onde, me avisou eufórica e muito surpresa em me ver.

— Ele já está no quarto! O que você está fazendo aqui Leila? Calista te chamou?– disse uma Raquel esbaforida e confusa com a presença da sua galeguinha ali.

Eu estava tonta. O que Raquel fazia naquele hospital? O que estava acontecendo afinal?! Deixei perguntas para depois, o que importava é que Carlinhos estava bem. Entrei no quarto com o coração na boca. O meu “pirrototinho” ficava perdido na cama de hospital. Me aproximei devagar para não assustá-lo. Segurei sua mãozinha observando o gesso que ia até o cotovelo. Vi o rostinho arranhado. Não me contive e chorei. Seus olhinhos fechados me lembraram de quando ele era mais “pirrototinho” e eu queria proteger-lhe de tudo.

— Ma…ria…

Meus ouvidos demoraram em entender o que o pequeno falava.

— Maria… — a voz chorava em quase desespero.

Quando ia dizer-lhe que era eu quem estava ali, a porta se abre e Calista entra como furacão e se debruça sobre meu filho.

— Oi, meu amor… — as lágrimas caem em profusão. — Maria está aqui… E te amo muito, meu galego lindo… — e beijou-lhe o rosto todinho se demorando na pontinha do nariz… — Maria só foi um instantinho ali… E…

Meu filho voltou os olhos e me viu.

— Mamãe! — e elevou os braços pra mim.

Os olhos de Calista encontraram os meus muito surpreendidos. Vi que ficou estática, apenas observando meus movimentos. Fui abraçar meu filho que me chamava dengoso… Sempre fora.

— Meu pirrototinho… Mamãe te ama, meu filho…

Ele reclamou de dor, mas não levou mais que alguns segundos para adormecer em meus braços. Deixei-o repousar no travesseiro. Sabia que a presença de Calista ainda permanecia no recinto. Já fazia um mês que não nos víamos e, agora, frente a frente, eu me perguntava: como ela conhecia meu rebento?

 

CALISTA

 

Dia ruim… Mais um sem Leila. Lembrei-me de um compromisso prazeroso desde que entendi minha solidão na vida: hora de ir para o parque ver aquele galeguinho lindo que eu amava. Fazia isso há quase dois anos. Era um segredo meu que ninguém, nem mesmo Raquel, sabia. Era meu refúgio nas horas críticas, mas também nas horas boas. Tudo começou quando, numa de minhas crises, resolvi ler em um parque próximo a casa onde morava. Tudo estava muito bem. Sentei-me num banco sob a sombra de uma árvore e comecei minha leitura. Apesar do frio intenso, a chuva tinha cessado, deixando sua marca em poças espalhadas por todos os lados. De repente um grito desesperado de “cuidado” me alertou para o infortúnio… A bola tirou o livro de minha mão fazendo com que ele caísse, justamente, na poça de lama. Na hora pensei em mandar à merda o infeliz que causou a quebra de minha tranquilidade, mas, ao olhar para a criaturinha loira de olhos muito azuis me encarando com medo, desisti imediatamente de minha resposta. Vi ele se aproximar e, com uma inocência extrema, apanhar o volume da água imunda, limpando-o com a própria vestimenta numa tentativa de amenizar meu prejuízo. Uma mulher veio ao meu encontro toda preocupada falando em prejuízo e ressarcimento, mas eu só conseguia olhar para a figurinha que me olhava com olhos de céu.

— Não foi nada… — eu disse abobalhada com a criança. — Qual o nome dessa gostosura loira? — peguei-o no colo.

— Carlos… Chamamos de Carlinhos… Me desculpe mais uma vez… É a primeira vez que isso acontece, e…

— Quantos anos? — perguntei sem nem dar atenção à senhora, enquanto beijava o rostinho cheiroso e macio do menino.

— Três… Vai fazer daqui a um mês…

— Você é um menino muito lindo, viu?

Ao dizer isso a mãozinha pequena tocou meu rosto e senti um beijo babado me dar arrepios de felicidade… Uma felicidade que não me era normal. Depois disso o encontrava quase todos os dias. Dei o nome de Maria, que é o meu segundo nome, tentando me manter anônima. Quase três anos se passaram…

Fechei os olhos e respirei fundo. Sentei-me no banco habitual e esperei doida pra ver a cabeça quase branca de tão galega aparecer correndo para os meus braços. Meus pensamentos voaram para outros cabelos loiros… Leila havia se demitido. Fiz questão de pagá-la como se eu a tivesse demitindo. Um mês depois e eu ainda sentia seu gosto… Gosto de lábios ternos, tenros e doces como eu nunca havia provado antes. Muitas vezes pensei em insistir telefonar-lhe, mas ela deixou a entender que não queria tal relacionamento quando não atendeu a meus apelos. Voltei a escrever no site lésbico e me senti muito bem com isso. Contava histórias e, em todas elas, derramava meu desejo de tê-la em meus braços, imaginando-a na minha vida. Minhas divagações foram interrompidas por um grito de pavor. Um grito cuja voz eu sabia a quem pertencia. Assim que vi o menino estirado no chão próximo ao brinquedo que ele mais amava, a taquicardia quase me fez perder o fôlego. Corri até ele que já ensaiava levantar-se ao que impedi preocupada.

— Fica no chão meu amor… Não se meche…  — vi um fio de sangue escorrer pela nuca, e isso não era um bom sinal.

— Já chamei a ambulância! — disse uma jovem babá que vira toda a cena.

— Não podemos esperar! — decidi.

Num ímpeto ergui o menino com cuidado, principalmente com a cabeça. Pedi ajuda da avó que se desesperava a todo o momento e parti com eles para o hospital mais próximo.

Agora eu estava ali, vendo os meus amores reunidos. Mãe e filho. Vi Carlinhos adormecer e ela voltar-se para mim com olhos lacrimejantes.

— Não sei exatamente o que está acontecendo… Mas agradeço por tudo que fez pelo meu filho. Começou a enxugar as lágrimas que caiam sem controle. Eu me aproximei e a peguei num abraço forte e seguro.

— Morreria por ele, meu amor… Ele foi e é minha inspiração para ter continuado viva… Me salvou tantas vezes da tristeza que nem posso contar… — embalei-a com carinho, sentindo o coraçãozinho bater apressado. Ergui seu rosto para que me olhasse. — Não sabia que era seu… Mas sentia que ele tinha uma coisa muito especial… Você… Me apaixonei por você e por seu filho… Que eu gostaria muito que fosse meu… Se você quiser…

Ela soltou-se de meus braços e deu-me as costas.

— Posso ficar um minuto a sós com meu filho? — baixou a cabeça.

Meu coração veio à boca. Ela ainda me rejeitava. Respirei fundo, fui até Carlinhos e beijei-lhe a testa antes de sair.

 

A tarde quente me deixava um pouco preguiçosa para sair, mas tinha um galeguinho me esperando no parque. Era a primeira vez depois do acidente que eu iria encontrá-lo. Leila, depois de nossa conversa no hospital, me pedira um tempo. Eu não sabia, mas me sentia bem. Eu respirava e ansiava por ela, não importava que desfecho nossa história tivesse. Eu tinha planos para aqueles dois… Para nós três. Raquel era peça principal nestes meus planos. Aos poucos eu estava passando a gerência dos negócios para ela. Xingava, reclamava, se desesperava, mas no fundo eu sentia que ela estava adorando tudo aquilo. Em breve ela estaria segura para levar a administração dos restaurantes de olhos fechados e eu… Eu iria realizar meu sonho desde a adolescência… Escrever… Escrever muito. Esperava dona Diva trazer meu galego na hora certa, mas estava demorando mais que o habitual. Já ia ligar para ela quando ouço minha voz adoradinha atrás de mim.

— Maria!!!

Rapidamente me viro para receber-lhe o abraço e dou de cara com ela… O amor de minha vida carregando um sorriso lindo e tímido no rosto. Carlinhos me alcança primeiro e eu o coloco nos braços feliz da vida.

— Meu galeguinho lindo!! Que saudades! — apertei o corpinho magro nos braços. — Como você está, hein? Já curou os dodóis?– fiquei examinando ele enquanto olhos muito azuis me observavam. — Nada de traquinices, viu? Quase me matou do coração!!! — pus ele no solo.

— Vamos brincar de jogar bola? — pediu eriçado.

— Nem pensar, senhor Carlos! — a mãe reclamou. — Nada de correria ou de esforço maior… Lembra o que o médico disse?

O menino agarrou-se em minhas pernas contrariado como se pedisse minha intervenção imediata.

— Não ouse fazer-lhes as vontades ou iremos brigar muito por causa disso!

Um sorriso do tamanho do mundo se formou em meu rosto… Ela estava me aceitando? Por um momento eu achei que havia me precipitado, mas foi o que entendi.

— Se quer ser a mãe dele vai ter que aprender a se controlar… — falou baixinho só para nós ouvirmos.

Lembrei-me que estávamos num parque recheado de crianças e idosos, senão eu a agarraria imediatamente e lhe daria um beijo imenso.

— Não tem nada que eu queira mais na vida… A não ser os dois na minha vida… Eu te amo muito… — dizendo isso segurei-lhe a mão e a massageei com suavidade.

Ficamos assim: Carlinhos alheio ao que acontecia nos olhando ainda agarrado em minhas pernas e nossas mãos selando nosso compromisso com o futuro.

 

A noite agradável fazia parecer tudo muito mágico. Depois daquela tarde, Leila e eu começamos um namoro… Sim, namoro. Eu já era madura o suficiente para querer pular esta etapa, e surpreendentemente numa de nossas conversas íntimas, ela revelou também querer pular etapas, mas eu não quis. Jantares regados a muitos amassos… Cinemas… Passeios, muitos deles com a presença do galeguinho. E-mails apaixonados, telefonemas arrebatados de intenções. Meu coração acelerava a cada sinal de mensagem no celular. Olhares cúmplices de uma única vontade. Descobrimos diferenças e nos regozijamos com semelhanças gritantes. Ela confessou-me assídua de um site de contos lésbicos e, adivinha? Adorava ler meus contos. Rimos muito da coincidência absurda. E nos inteiramos de todas as coincidências que nos uniram daquela forma tão especial. Dois meses de espera e aquela era a nossa noite.

— Pensa no quê?

Abraçou-me por trás, recostando a cabecinha linda que eu amava em minhas costas. Virei-me e a abracei beijando-lhe a testa.

— Numa loirinha linda que me devolveu a vida… E num galeguinho lindo que a duplicou de felicidades…

Atrevi-me a apertá-la com mais sensualidade, escorregando a mão para sua nádega cheinha. O tremor dela não me passou despercebido, nem a respiração dificultada pela excitação.

— Não sei o que espera de mim… Eu… Eu nem sei…

Tomei-lhe os lábios com volúpia e deixei-a solta.

— Sou sua… Como nunca fui e nem serei de ninguém… Porque você não tem apenas meu corpo… Você tem minha alma… Não tenha pressa…

 

FIM

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para Restaurante

  1. Mirian parabéns pelo seu talento!
    Gostei muito da maneira como a história foi fluindo. Já estou ansiosa p iniciar a leitura de outra obra desta autora.

Deixe uma resposta

© 2015- 2016 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.