Retrato em Branco e Preto

1. Retrato em Branco e Preto

  Fotografia é o retrato de um côncavo,

de uma falta,de uma ausência.

(Clarice Lispector)

            A primeira vez que a vi foi através da lente da câmera. Era uma tarde em que caía uma garoa fina e chata, daquelas que chegam só para deixar o cabelo desalinhado e a roupa com cheiro de cachorro molhado.

            Eu estava começando a expandir meus horizontes fotográficos, de um período tirando fotos de natureza havia saltado para a fotografia de rua, ansiava estar no meio das pessoas, de tirar retratos de expressões e situações humanas. E para isso, não há lugar melhor do que o centro da cidade com sua variedade de tipos. E foi para lá que me dirigi, apesar do céu acinzentado que começava a se formar sobre a minha cabeça.

            Saltei do ônibus no ponto que ficava atrás do prédio da faculdade de Direito e  subi pela Rua São Francisco. Como queria tirar retratos em branco e preto, achei que seria uma boa opção visitar o centro histórico, poderia dar um clima noir  para as fotos.

            As calçadas de paralelepípedo, as igrejinhas do século XVII, as fachadas antigas me inspiraram mais do que as figuras que encontrei pelo caminho, um padre franciscano, dois cães e seus donos, um bêbado deitado na porta do museu de arte sacra esperando pelo caridade alheia.

            Desci uma escadaria e passei por uma galeria que tinha um teatro e uma lojinha de artesanato, e quando estava configurando a camêra para captar a pouca luz da galeria e tirar uma foto do teatro e seus bonecos gigantes  a vi saindo por uma das portas.

            Seu rosto era perfeito para um retrato em branco e preto, era de um desenho clássico e suave, parecia com uma foto que eu havia visto há muito tempo, de uma mulher irlandesa, do final do século XIX, fiando, e foi a lembrança dessa foto que me fez segui-la quando ela fechou a porta atrás de si e subiu a escadaria rumo ao calçadão que ficava atrás da catedral. Não me deixei ser vista, não queria que ela perdesse a espontaneidade de movimentos,  era alta e magra como a mulher da foto, e como esta tinha os cabelos negros e os olhos azuis. Não sei quantas fotos tirei até que ela se virou e olhou direto para a lente, eu havia sido descoberta.

A última imagem que captei foi seu rosto olhando para mim e sorrindo, depois disso abaixei minha camêra, que me servia de escudo, e esperei até que ela viesse falar comigo. Toda sua postura, seu jeito de andar, o movimento de sua cabeça, tudo me inspirava naquele momento, tudo exalava sensualidade, e eu, que não esperava por aquela emoção que tomou conta de mim de uma forma tão rápida, a queria.

Sem nenhum pudor ela se apresentou e perguntou se eu a estava seguindo por algum motivo especial. “Não, só achei que você era a modelo perfeita para meus retratos em branco e preto.” Ela riu de mim, como faria várias vezes nos meses seguintes, e seu jeito de balançar os cabelos quando ria me desconcertou, como sempre desconcertaria.

Me convidou para um café e depois, sem a menor cerimônia, para a sua casa, e eu fui. Era um apartamento na rua do canal, em um edifício antigo, no qual já tinha estado uma vez em casa da namorada de uma amiga, numa festinha que só me rendeu dor de cabeça. Subimos a escada do predinho sem dizer nada, e foi sem uma palavra sequer que ela abriu a porta, tirou a camiseta e me jogou no sofá que ficava logo na entrada da sala.

Foi com um tanto de eto que senti o quanto ela era ativa, senti sua perna se enroscar no meio das minhas e me apertar, seu movimento em cima de mim, a textura da suas costas e o seu cheiro foram tomando conta de mim e deixei que ela me levasse para a dimensão que bem quisesse.

Depois de praticarmos todas as nuances e brincadeiras que só ato do amor permite, de senti-la dentro de mim, me fodendo com força, percebi meu prazer aumentando cada vez mais e quando ela me susurrou ao ouvido “goza em mim”, eu me entreguei como nunca havia feito antes, eu estava ali, completa e abertamente para recebê-la e para dar para ela.

E foi assim, sem uma explicação do porquê, sem nem um motivo que justificasse tudo aquilo, que eu cai de amor por ela, e dessa vez nem o meu escudo fotográfico conseguiu me salvar.

Nos meses seguintes, ela passou a me receber toda semana e a posar para mim, foi dela os meus melhores retratos em branco e preto, foi com ela ao lado da janela a melhor exposição de luz que consegui captar, foi nela que minha lente ajustou o melhor foco. Foi ela que, finalmente, me fez voltar às fotografias em cores.

Foi em dezembro, que chegou trazendo todo o seu calor, luz e magnificência, que ela sumiu da minha vida sem deixar nenhum rastro, adeus e boa sorte para você também. Numa das minhas visitas encontrei o apartamento despido de tudo o que tocamos nas nossas tardes de amor, nem seu nome estava mais no escaninho do prédio, nem o vizinho a tinha visto partir, nem as contas chegavam mais. Procurei-a em todos os lugares onde poderia encontrá-la, no teatro em que trabalhava, no Dolores Nervosa, o bar que frequentávamos, nas esquinas em que fizemos muitas das nossas fotos.

Ela simplesmente desaparecera me deixando apenas as memórias, seu cheiro que não desgrudava de mim e os retratos em branco e preto.

Mas o tempo, que pode tanto nos consolar quanto nos abater em pleno voo, agiu sobre mim,  fazendo com que depois de um período de solidão seguido de outro de solitude eu retomasse minha vida e retornasse aos meus retratos em branco e preto. E foi numa tarde de um Sol de inverno que ardia em mim, quando saí para fotografar, que vi uma garota parecida com uma foto antiga saindo do teatro de bonecos que ficava perto do Largo da Ordem.



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