ROTINA DE UM AMOR IMPOSSÍVEL

Rotina de Um Amor Impossível


“Todo dia ela faz tudo sempre igual. Me sacode às seis horas da manhã. Me sorri um sorriso pontual. E me beija com a boca de hortelã. “

Cotidiano – Chico Buarque

O despertador tocava insistentemente. A negra olha para o aparelho tentando focalizar as horas. 055min. Com o corpo ainda sonolento levantava indo diretamente para o banheiro. Depois de dez minutos tentando abrir os olhos, a água gelada do chuveiro se fazia ouvir. Agora sim, Selena poderia dizer que acordou.

Saia enrolada na toalha com estampa da Mulher Maravilha, sua heroína preferida no alto dos seus 26 anos. Selena Silva Cardoso era uma mulher negra, gordinha, de estatura mediana tinha 1,63 cm e olhos amendoados expressivos e marcantes. Tudo que ela precisava transmitir era através do olhar. Havia terminado sua faculdade de Administração, mas por conta do mercado de trabalho não esta favorável acabou sendo contratada como secretaria de uma advogada que tinha o apelido pelos corredores do setor de Cruella Devill. Dispensava explicações.

Após terminar seu desjejum saiu sem fazer barulho para não acordar sua mãe, Vera. Uma senhora de 57 anos que estava adoentada e precisava de repouso. Desceu as escadas do prédio de quatro andares onde morava no bairro do Cabula na capital baiana.

Assim que saiu na avenida viu as sentinelas do chefe da área. Cumprimentou-os como fazia todos os dias e como habitual eles a levaram até o ponto retornando para seu posto. Nos últimos três anos acabaram desenvolvendo certo coleguismo com eles ao ponto de se permitirem brincadeiras sutis. Eles sabiam que ela não se envolveria com pessoas com a ficha deles então não tentavam ultrapassar os limites e a relação entre ambos os lados seguia.

Exatamente às 6 horas o ônibus que a levaria para o Escritório Barcelos E Advogados Associados no sexto andar do Edifício Torres da Lapa na Praça da Piedade parava em seu ponto já lotado de pessoas que assim como ela, também precisavam ganhar o pão de cada dia. O percurso de seu bairro até o ponto onde desceria na Estação da Lapa durava uma hora se houvesse pouco engarrafamento, quase sempre o engarrafamento começava na saída da Avenida Silveira Martins e estendia-se até a região da Estação Rodoviária do Iguatemi fazendo com que a jovem sempre chegasse uns minutos atrasada. Sua sorte era que sua chefa Ana Lara Caldera Barcelos só chegava depois das 9horas.

Passava pelos porteiros e seguranças sempre sorrindo. Gentileza era sua maior qualidade e todos a admiravam por ela conseguir suportar o humor nefasto de Ana Lara. Assim que chegava a sua sala providenciava um café forte para si e o suco de hortelã com abacaxi da sua chefa deixando-o em seu frigobar particular junto com água gaseificada sabor limão, refrigerante e uma barra do chocolate Diamante Negro.

Voltava a sua mesa e iniciava a agenda do dia com uma serie de ligações, recados a serem passados e instruções que Ana deixava anotado em sua mesa. Neste dia em especial, ela, Ana, havia deixado o recado para que sua subordinada comprasse um buque de rosas vermelhas e mandasse entregar em um endereço já conhecido pela jovem. Avenida Professor Pinto de Aguiar onde residia a mais nova distração de sua chefa.

Ana Lara era uma morena alta, tinha 1,78 cm, cabelos negros lisos e atualmente curtos em um penteado moderno, 32 anos bem vividos, um pouco acima do peso, fato este nunca notado devido ao corpo bem distribuído, um olhar castanho expressivo e mau humor constante. Trocava de namorada mais vezes do que escolhia roupas. E era também o motivo dos sonhos mais quentes de Selena.

Aquela mulher a atraia de forma inexplicável e muitas vezes a jovem negra ficou admirando-a quando sua chefa repousava no escritório quando atacada por sua habitual enxaqueca. Selena distraia-se com um jogo no computador quando ouviu as passadas ritmadas e impacientes produzidas por um scarpim preto e o aroma do Lily Essence invadiu a sala. A doutora Ana estava próxima.

A porta abriu-se dando passagem para aquela mulher que habitualmente trajava um look composto de um terno executivo em corte feminino preto e óculos escuros no rosto. Cumprimentou a jovem e pediu que a mesma fosse a sua sala. Deu ordem de não passar ligação alguma e que não estaria no escritório para ninguém.

Ao tirar os óculos, Selena viu o que pensou jamais presenciar. Os olhos de sua amada estavam inchados de uma noite de choro. Não demonstrou surpresa, pois sabia que sua chefa odiava que sentissem compaixão dela. Saiu para cumprir suas ordens, mas o pensamento estava na sala ao lado e no desejo de saber o motivo de tal infortúnio.

Saiu para o almoço e providenciou o da morena. Escolheu em um restaurante próximo o prato preferido da outra. Embora soubesse que dificilmente seria notada pela mesma, procurava sempre agradá-la fazendo suas vontades, mesmo quando lhe doía por dentro. Recebeu um sorriso fraco de agradecimento ao depositar a sacola em sua mesa.

Passou o resto do expediente inquieta. Desejava saber o motivo da tristeza que se fazia presente no olhar castanho. Perto das 18horas, Ana pediu que ela fosse a sua sala. Quando entrou viu a silhueta de sua chefa olhando o escurecer da cidade. Ana pediu que a jovem sentasse e após alguns minutos de silencio iniciou a falar.

-Sei que não sou a pessoa mais bem quista deste escritório. Conheço todos os meus apelidos. Cruela, Madrasta da Branca de Neve, Elvira, Miranda Priestly, Carmila. Embora ache esse ultimo um tanto quanto exagerado. Não ando sugando o sangue de ninguém. – sorriu verdadeiramente e Selena pensou nunca ter visto algo mais lindo que seu sorriso. – Sei também que muitas vezes abuso de sua boa vontade exigindo coisas absurdas. Veja bem, estou reconhecendo meus defeitos. Quem diria não? – outra faceta da moça, bom humor. Este era muito bem resguardado.

-Vejo que tem bom humor. – arriscou a mulher negra.

-Tenho sim. Embora não demonstre. – encostou-se a seu assento avaliando a jovem a sua frente. – Diga-me Selena. Por que continua trabalhando para mim?

A jovem havia sido pega desprevenida. Nem ela mesma sabia o motivo de continuar ali. Mentira. Sabia sim. Sua paixão platônica pela morena, mas não poderia revelar. Daria a resposta que naquele momento julgou ser menos mentirosa.

-Não sei.

-Como? – Ana Lara não acreditou por um segundo nessa tentativa de evasão.

-Não sabendo. Aceitei o emprego pela situação financeira. Talvez tenha me acostumado. – falava com o olhar distante. Tentando identificar um rosto no quadro que estava pendurado atrás da morena.

-Hum! Certo. Não gosto de compromissos duradouros e me entedio muito fácil das distrações que adquiro. – referia-se a extensa lista de ex-namoradas. – apesar de que com a ultima até que demorei muito. Um mês e um dia. Por mais intransigente que eu aparente ser. E sou. Sei reconhecer um bom funcionário. Bom, tenho certeza quase absoluta que desejas saber o motivo da minha olheira profunda. Lembra que certa vez tive um desmaio aqui? Pois bem. Consultei-me e fiz alguns exames. Ontem saiu o resultado e como eu previa tenho uma doença grave e hereditária. Sai da clinica inconsolável e me dirigi à casa da minha até então namorada. – desviou o olhar para a janela. – qual não foi a minha surpresa ao encontrá-la nua em cima da cama com Roger Victor Campelo.

Selena sabia da rivalidade entre os dois advogados e sabia também que essa disputa se estendia a esfera das conquistas. Não entendia quando começou, sabia apenas que aparentemente seu fim estava longe.

-Não a culpo, pois ele é um homem bonito e sabe seduzir uma mulher. Mas naquele momento me sentia tão angustiada que precisava me sentir segura. – uma lagrima solitária desceu, comprimindo ainda mais o coração da jovem Selena. – Aliado a isso, também tem um sentimento que tentei sufocar de todas as maneiras imagináveis. Não deveria senti-lo, não podia. Quando eu pensava estar enfim vencendo aquele desejo algo invertia as situações. Até que me dei conta de que estava apaixonando-me.

Selena ficou visivelmente surpresa com aquela confissão. Seu coração doía. Havia perdido as remotas chances de ser um dia notada. Deixou que a outra falasse enquanto se perdia em suas divagações.

-Também quem não se apaixonaria por ela. Tão linda. Um sorriso doce, sempre gentil com todos inclusive comigo. Não sei nada de sua vida, exceto o nome. E vê-la diariamente passou a ser um dos momentos mais alegres do meu dia. – o olhar castanho brilhava refletindo ternura ao lembrar-se de sua enamorada.

Se ela a vê diariamente quer dizer que provavelmente ela trabalha no prédio. Será que é a doutora Noêmia? Acho pouco provável. Elas não parecem simpatizar uma com a outra. Mas elas podem estar disfarçando. – a mente de Selena fervilhava de hipóteses.

-Não sei como não a notei antes. Nem sei se ela sente ou sentirá algo um dia por mim, mas gostaria de tentar uma aproximação. Espero que ela não pense que a quero para minha “coleção de mulheres”. O que acha que devo fazer? – perguntou olhando em seus olhos.

-Acho… Acho que deveria tentar. – sua voz oscilava e ela tentava não aparentar o abalo que a noticia lhe causara fugindo daquele olhar que parecia desnudá-la. – Deveria… Dizer como se sente. – não conseguiu reprimir uma lagrima solitária. – Se me der licença, preciso ir.

Selena saiu em disparada passando em sua sala apenas para pegar sua bolsa e deixando uma Ana Lara confusa. Já nos corredores do prédio as lagrimas desciam livres. Entrou no elevador vazio se dirigindo ao térreo. Antes de sair do prédio foi ao banheiro lavar o rosto e retocar a maquiagem. As palavras de Ana circulavam em sua cabeça. Não conseguia entender como nunca percebeu nenhuma mudança no comportamento dela. Estava tão centrada em seu sentimento que não viu quando seu objeto de adoração passou a perceber e ser de outra.

“Teu amor faz cometer loucura. Faz mais, depois faz acordar chorando. Pra fazer e acontecer verdades e mentiras. Faz crer, faz desacreditar de tudo.”

Quando Fevereiro Chegar – Geraldo Azevedo

Assim que chegou ao ponto de ônibus sua condução se aproximava. Foi à viagem toda introspectiva e triste. Seu amor jamais seria correspondido e não poderia continuar trabalhando lá. Seria masoquismo ser obrigada a ver Ana com outra e em seu rosto transbordar felicidade. Como o escritório não abria aos sábados redigiria sua carta de demissão e a apresentaria na segunda feira assim que sua chefa chegasse.

Conversou brevemente com sua mãe alegando dor de cabeça. Tomou um banho morno e enfiou-se debaixo da coberta das Meninas Super Poderosas enquanto começava a rodar o filme Lost and Delirious (Assunto de Meninas) posto em seu aparelho DVD. Seu filme de fossa como dizia as poucas amigas que conseguiu conservar dos tempos de escola e faculdade.

Dormiu antes de completar uma hora de filme com os olhos inchados do choro a dor do amor perdido. O domingo amanheceu igual ao seu humor, nublado. A preguiça habitual estava acompanhada do desanimo. Sua mãe percebendo seu estado fez pizzas de variados sabores e como sobremesa brigadeiro de panela. Sua mãe adivinhava seu estado emocional. Passou o dia assistindo alguns filmes como Boys dont cry (Meninos não choram), Prayers for Bobby (Orações para Bobby) e tantos outros dramas.

Saudadepalavra triste quando se perde um grande amor. Na estrada longa da vida eu vou chorando a minha dor.”

Meu Primeiro Amor – João Mineiro e Marciano

Segunda recomeçou a sua rotina. Antes das 06h00min estava no ponto. Em sua bolsa sua carta de demissão já redigida e impressa. Chegou à empresa em seu horário e repetiu seu ritual. Parou no meio da sala de sua chefa e admirou o local pela ultima vez. Levaria boas recordações em sua memória. Voltou para sua sala à espera dos passos dos passos do scarpim.

Estranhamente Ana não apareceu durante a manhã. Certamente já deveria ter confessado-se a sua enamorada e estariam desfrutando de momentos de carinho e prazer. Momentos esses que tanto desejou e agora se revelava impossível de concretizar. Noêmia Camargo ligou diversas vezes procurando por Ana. O que causou uma confusão na negra já que supostamente ela seria a paixão de Ana, talvez tivesse equivocado e fosse outra pessoa, mais quem seria sua eterna rival?!

Como cortar pela raiz se já deu flor? Como inventar um adeus se já é amor?”

Morada – Sandy

Passou o dia a espera de noticias de sua chefa. Quando o relógio marcava 170min Ana entrou pedindo que fosse a sua sala. Assim que entrou entregou-lhe o envelope. Ana pegou-o achando estranha a seriedade e formalidade de sua secretária. Abriu com cuidado e se pos a ler. Ao termino desta, entregou o papel negando-lhe a demissão. Não poderia aceitar nem deixar que a moça partisse.

-Sabe que posso e vou levar ao RH. A partir de amanhã Sueli ficará em meu lugar. Antes de sair a instruirei sobre a organização de sua agenda. – dizia de forma seca.

-Por quê? – a outra lhe perguntou perturbada com a noticia e a forma com a qual estava sendo tratada.

-Não posso mais trabalhar aqui. – não quero vê-la feliz com outra.

-O que eu fiz? Por favor, diga-me. – levantou-se encurtando a distancia entre elas.

-Já tomei minha decisão. Se não irá aceitá-la levarei ao Adamastor. – preparava-se para sair quando sentiu uma mão segurando seu braço.

-Não posso deixar que se vá sem me explicar o que eu fiz que a magoou tanto. – a determinação nos olhos castanhos.

-Não há nada para explicar. Estou demitindo-me apenas. – puxou seu braço sentindo o calor daquelas mãos esvaírem-se.

-Não. – fechou a porta encostando-se a ela. – Daqui você não sai se for para demitir-se. – Ana sentia o desespero querer apoderar-se.

-Vou gritar.

-Pode fazer um escândalo. Daqui você não irá sair.

-Por quê?

-Não quero.

-É só um capricho seu. Logo encontrará outra melhor que eu para a função.

-Não quero que vá. Não entende isso. Não haverá outra igual a você.

Por mais que ensaiasse mentalmente dizer, as palavras travavam na garganta da advogada. Seu olhar começava a ficar marejado e pensava no que fazer para que Selena não a abandonasse. Selena deixava as lágrimas verterem de seus olhos o que causou dor no coração de Ana. Saiu da porta dirigindo-se a jovem com olhar preocupado.

-Por favor, não chore. Diga-me o porquê deseja deixar-me. O que lhe fiz.

-Não posso ficar aqui. Não quero ver o que acontecerá.

-Não entendo. O que irá acontecer que não estou sabendo? – afagou seu braço.

-Não desejo ver você e sua amada ostentarem a felicidade do casal por aqui. – afastou-se rispidamente.

Chorava sentada em um sofá ao canto da sala. Ana entendeu o que a jovem tentava dizer e sorriu. Agora percebia que seu sentimento era correspondido. Sorriu de felicidade em saber que lutou durante meses por algo que também era desejado. Selena tomou aquele sorriso como ofensa e deboche. Levantou-se apressada aproveitando à deixa para sair. Antes que conseguisse destrancar a porta ouviu a declaração da outra.

-Não posso deixar que se vá, porque és tu a quem desejo. Estou apaixonada por ti, Selena. – Ana falou parada a poucos centímetros de onde Selena se encontrava.

-Co… Como? – a jovem pensara ter ouvido algo errado.

-É de ti que gosto. Falava de ti quando falei do sorriso doce e gentil. Não sei como e quando aconteceu, mas aconteceu. Eu te vi e me encantei. – falava enquanto a enlaçava para um beijo.

Selena chorava agora de alegria e suas lagrimas misturaram-se a da morena. O beijo intensificou-se e decidiram sair dali. Foram para a casa da morena consumar o desejo que as consumia e entre lençóis de seda e juras de amor sob o céu estrelado, o casal enamorado se descobria.

Horas mais tarde, conversavam enquanto lanchavam. Selena descobriu o dote culinário impressionante da morena. Mais uma faceta. Selena contou-lhe quando se percebeu apaixonada pela sua chefa e o motivo da saída intempestiva da sala na semana antecessora. Ana sorriu e disse próxima ao ouvido da negra em seu tom normalmente grave e rouco pelo desejo que se avizinhava.

-Agora que te encontrei e me descobri em você, não te deixo fácil minha menina. – beijaram-se dando inicio a outras caricias.

“Você vai me seguir. Sou sua heroína e vilã. Viva comigo essa noite e esqueça o amanhã.”

Heroína e Vilã – Ana Carolina e Andre Villeroy

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“Amor sem sexo é amizade. Sexo sem amor é vontade.”

Amor e Sexo – Rita Lee

Acordei com dor de cabeça. Ressaca de mais uma noite regada a álcool e sexo. Senti um braço rodeando minha cintura, olhei e vi a dona dele. Priscila. Loira, 1,66 cm, modelo de uma conhecida agencia paulista. Atualmente trabalhando para uma revista conhecida em Salvador.

Conhecemos-nos há um mês no coquetel oferecido pela revista em agradecimento a mais uma causa ganha pelo meu escritório e desde então saimos às vezes. Meu pai ficaria orgulhoso, mas desaprovaria minha leviandade. Consegui me soltar das “mãos de polvo” catando minhas roupas e sai da casa dela sem fazer barulho. Enquanto o elevador descia até o térreo eu me olhava no espelho. Meus cabelos negros e curtos atualmente estavam presos, o rosto sem maquiagem e expressão de cansaço.

É Ana Lara Caldera Barcelos precisa de um banho e cama, mas preciso ir ao escritório. – pensava enquanto destravava o carro e saia da Avenida Professor Pinto de Aguiar em direção ao bairro de Jardim Armação.

Chegando ao condomínio de classe médio-alta onde residia identificou-se tendo seu acesso liberado. Deixou o carro na garagem externa já que obrigatoriamente sairia. Entrou em casa dirigindo-se para uma chuveirada. Enquanto deixava a água molhar todo seu corpo, sua mente vagava pelos últimos acontecimentos. Saiu apressada devido ao super atraso.

Assim que chegou ao edifício onde funcionava o escritório trancou-se na sala de reuniões com seus sócios para discutir um caso que requeria atenção total saindo apenas para almoço. Devido à importância desse caso não passou em seu gabinete, tampouco viu aqueles olhos amendoados, sorriso doce e voz aveludada que sempre alegrava seu dia.

Encerrando seu expediente recebeu a ligação da medica Alexia Mansur. Sua amiga de longos anos que estava cuidando da sua saúde. Ao chegar no modesto consultório localizado na Rua Padre Feijó no bairro do Canela sua amiga já esperava-lhe com um sorriso.

-Como vai, minha cara? – a medica deu-lhe dois beijos.

-Tentando resolver uma causa importante. – sorriu.

-Sempre implacável. Certamente ganhará. Mas te chamei aqui para dizer que os resultados chegaram.

-Não era sem tempo. Então me diga o que tenho?

Ao ouvir seu diagnostico, Ana Lara sentiu-se sem chão. Como se retirada do solo. Já haviam tido outros casos na família e rezava secretamente para que não fosse o seu caso. Agora estava diante da verdade.

Ouviu as recomendações da amiga e concordou com todas, mas sua mente vagava em momentos de sua vida. Saiu em direção a rua. Precisava respirar. Entrou no carro e seguiu em direção ao corredor da vitória para sair no bairro da Barra. O mar acalmava-lhe. Precisava vê-lo.

Dirigia no automático e quando percebeu estava em frente ao prédio de Priscila. Decidiu subir sem avisar já que tinha a chave e entrou sem fazer barulho. Viu roupas espalhadas e uma pasta de documentos. Pelo sapato percebeu ser de um homem. Ouvia pequenos gemidos e risadas. Ao abrir a porta deparou-se com ela sobre Roger Victor Campelo, seu rival desde os tempos da faculdade quando disputavam tanto as melhores notas e elogios dos docentes quanto às garotas mais bonitas e interessantes.

Ele sorriu triunfante. Na certa pensava que ela provavelmente faria alguma cena patética ou choraria. Deu as costas ao casal e saiu deixando a chave em cima do aparador. Foi para casa. Nada como uma boa noite de sono para repará-la. Tentou em vão. Passou a madrugada sentada em sua varanda pensando no pouco tempo que lhe restava e na mulher negra que povoava seu coração de forma intensa.

“Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder. Deixo assim ficar subentendido. Como uma ideia que existe na cabeça e não tem a menor pretensão de acontecer.”

Apenas Mais Uma De Amor – Lulu Santos

Assim que o sol amanheceu levantou-se em direção ao chuveiro. Precisava da purificação da água para conseguir chegar ao escritório. Queria apenas olhar dentro dos olhos amendoados que a enfeitiçaram e ver que tudo ficaria bem. Vestiu seu look preto de todo dia e o scarpim.

Colocou os óculos escuros e rumou em direção a seu império. Desde que seu pai faleceu assumiu a empresa tentando manter o mesmo nível da época em que seu pai era o advogado implacável cujos promotores temiam. Conhecia sua fama de megera e divertia-se ao lembrar-se de alguns apelidos que tal fama lhe rendera.

Também se lembrara de quando viu Selena pela primeira vez sendo apresentada como sua nova secretaria. Aquela mulher baixinha em relação a seu tamanho, gordinha vestida em um conjunto executivo de seda e um pequeno salto fez com que seu coração disparasse na ocasião dando-lhe a sensação de borboletas revirarem seu estomago.

Patético e clichê, mas era a pura verdade. Passou então a observar seu jeito de andar, o tom de voz sempre baixo e suave. Seu desconcerto com algumas situações que presenciara em sua sala a exemplo da vez que quase transava com uma de suas inúmeras ficantes em sua mesa quase na hora de uma reunião importante.

Saiu andando pelo corredor da recepção em direção ao elevador sabendo ser observada por onde passava. Poderia não ser detentora de um corpo escultural, mas como ela mesma dizia “seu charme era sua elegância”. Estava desanimada e seu desejo era trancar-se em sua sala, deitar no colo de sua assistente e sentir os carinhos que aquelas mãos fofas e de toque suave poderiam proporcionar.

Abriu a porta e sentiu aquele olhar penetrante sobre si. Pediu que a jovem a acompanhasse. Uma vez instalada em sua sala solicitou que nenhuma ligação fosse passada e não estaria para ninguém. Retirou os óculos denunciando as profundas olheiras e viu curiosidade naquele olhar. Dispensou a secretaria e passou o resto da manha pensando se deveria ou não contar-lhe sobre a doença e revelar o que ia a seu coração.

Selena encomendou sua comida favorita para o almoço. Sorriu em agradecimento. O resto da tarde foi de introspecção e tentativa de resolução. Perto do fim do expediente pediu que fosse a sua sala. Após entrar a jovem sentou-se enquanto aguardava que ela saísse de seu local de contemplação. Encostada em sua cadeira iniciou a falar.

-Sei que não sou a pessoa mais bem quista deste escritório. Conheço todos os meus apelidos. Cruela, Madrasta da Branca de Neve, Elvira, Miranda Priestly, Carmila. Embora ache esse ultimo um tanto quanto exagerado. Não ando sugando o sangue de ninguém. – sorriu imaginando os pensamentos de sua amada. – Sei também que muitas vezes abuso de sua boa vontade exigindo coisas absurdas. Veja bem, estou reconhecendo meus defeitos. Quem diria não? – demonstrou um pouco do seu bom humor.

-Vejo que tem bom humor. – a moça pontuou.

-Tenho sim. Embora não demonstre. – encostou-se a seu assento sorrindo enquanto avaliava a jovem a sua frente. – Diga-me Selena. Por que continua trabalhando para mim?

Viu a moça arregalar os olhos ante a pergunta e passar vários minutos em expressão pensativa antes de por fim responder-lhe.

-Não sei.

-Como? – Ana Lara pensava ser impossível alguém não saber o que a fazia permanecer em um emprego.

-Não sabendo. Aceitei o emprego pela situação financeira. Talvez tenha me acostumado. – falava evitando o olhar de sua chefa.

-Hum! Certo. Não gosto de compromissos duradouros e me entedio muito fácil das distrações que adquiro. – referia-se a extensa lista de ex-namoradas. – apesar de que com a ultima até que demorei muito. Um mês e um dia. Por mais intransigente que eu aparente ser. E sou. Sei reconhecer um bom funcionário. Bom, tenho certeza quase absoluta que desejas saber o motivo da minha olheira profunda. Lembra que certa vez tive um desmaio aqui? Pois bem. Consultei-me e fiz alguns exames. Ontem saiu o resultado e como eu previa tenho uma doença grave e hereditária. Sai da clinica inconsolável e me dirigi à casa da minha até então namorada. – desviou o olhar para a janela. – qual não foi a minha surpresa ao encontrá-la nua em cima da cama com Roger Victor Campelo.

Viu o olhar surpreso e ao mesmo tempo piedoso da moça e pensou que não teria como apaixonar-se mais um pouco.

-Não a culpo, pois ele é um homem bonito e sabe seduzir uma mulher. Mas naquele momento me sentia tão angustiada que precisava me sentir segura. – uma lagrima solitária desceu desejando que aquela segurança viesse dos braços de certa mulher negra. – Aliado a isso, também tem um sentimento que tentei sufocar de todas as maneiras imagináveis. Não deveria senti-lo, não podia. Quando eu pensava estar enfim vencendo aquele desejo algo invertia as situações. Até que me dei conta de que estava apaixonando-me.

Decidira sondar o terreno antes de revelar seus sentimentos e viu no olhar da moça uma nuvem passar. Tornou-se subitamente triste. Talvez também tivesse se lembrado de alguém que a machucou.

-Também quem não se apaixonaria por ela. Tão linda. Um sorriso doce, sempre gentil com todos inclusive comigo. Não sei nada de sua vida, exceto o nome. E vê-la diariamente passou a ser um dos momentos mais alegres do meu dia. – o olhar castanho brilhava refletindo ternura ao lembrar-se de sua enamorada. -Não sei como não a notei antes. Nem sei se ela sente ou sentirá algo um dia por mim, mas gostaria de tentar uma aproximação. Espero que ela não pense que a quero para minha “coleção de mulheres”. O que acha que devo fazer? – perguntou olhando para o mar de amêndoas.

-Acho… Acho que deveria tentar. – a voz de Selena oscilava enquanto tentava aparentar firmeza. O que trouxe uma pontada de esperança para Ana. – Deveria… Dizer como se sente. –nem bem terminou de falar fugiu da sala. – Se me der licença, preciso ir.

“Só você não vê. Finge que não sabe que eu estou sofrendo por causa de você…”

Por Causa de Você – The Fevers

Ana Lara ficou imóvel, sem reação. Aos poucos começava a entender o que se passara a pouco. Não sabia se ria ou chorava pela atitude da moça. Discou para a recepção tentando impedir sua saída do prédio, mas a jovem já havia passado na portaria. Nada poderia ser feito a não ser aguardar até a semana vindoura.

Recolheu suas coisas, trancou a sala e seguiu para casa com uma certeza. Era correspondida em seu sentimento. Precisava revelar a jovem que ela era o motivo de tal alvoroço em si. Chegou a casa com animo. Pediu a Dulce, sua segunda mãe que preparasse um lanche, pois sentia fome. A senhora sorriu frente a esse apetite de sua menina, já que a achava muito magra.

Coisas de mãe. – pensou enquanto subia para um banho refrescante e relaxante na hidromassagem. Dar-se-ia esse direito.

Depois de quarenta minutos no banho saiu sentindo-se outra. Ao olhar seu aparelho celular tinha varias ligações de mulheres. Certamente todas queriam mais uma noite de sexo tórrido, porem não mais faria parte desse mundo. Se suas suspeitas estivessem corretas seu corpo só pertenceria a dona de seu coração.

Passou o final de semana entre a expectativa de uma explicação da jovem e o estudo de um processo cuja audiência seria realizada na segunda-feira. Antes das 065min já estava saindo em direção ao fórum.

Como esperava o advogado da outra parte tentou ao Maximo uma protelação retardando a audiência. Quando o julgamento enfim terminou já estava no meio da tarde. Seguiu para o escritório e assim que entrou solicitou sua secretaria. Assim que sentou recebeu da mesma uma carta. À medida que lia seu conteúdo uma confusão formava-se em sua mente.

-Sabe que posso e vou levar ao RH. A partir de amanhã Sueli ficará em meu lugar. Antes de sair a instruirei sobre a organização de sua agenda. – dizia Selena de forma seca.

-Por quê? – Ana não conseguia entender o motivo.

-Não posso mais trabalhar aqui.

-O que eu fiz? Por favor, diga-me. – levantou-se encurtando a distancia entre elas.

-Já tomei minha decisão. Se não irá aceitá-la levarei ao Adamastor. – Selena preparava-se para sair quando sentiu uma mão segurando seu braço.

-Não posso deixar que se vá sem me explicar o que eu fiz que a magoou tanto. – a determinação nos olhos castanhos estava aliada a confusão.

-Não há nada para explicar. Estou demitindo-me apenas. – Selena cortou o contato.

-Não. – fechou a porta encostando-se a ela. – Daqui você não sai se for para demitir-se. – Ana sentia o desespero querer apoderar-se.

-Vou gritar. – a secretaria ameaçou.

-Pode fazer um escândalo. Daqui você não irá sair. – Ana tentava entender o que havia feito além de tentar revelar o que sentia.

-Por quê?

-Não quero. – Não posso deixar que leve meu coração contigo.

-É só um capricho seu. Logo encontrará outra melhor que eu para a função. – havia magoa no olhar da moça.

-Não quero que vá. Não entende isso. Não haverá outra igual a você.

“Se bate um desespero, no mesmo instante o que eu quero é você para me abraçar. Já não importa o tempo. não tenho medo de me arrepender, não vou controlar.”

Só Vejo Você – Tânia Mara

Por mais que ensaiasse mentalmente dizer, as palavras travavam na garganta da advogada. Seu olhar começava a ficar marejado e pensava no que fazer para que Selena não a abandonasse.

-Por favor, não chore. Diga-me o porquê deseja deixar-me. O que lhe fiz.

-Não posso ficar aqui. Não quero ver o que acontecerá.

-Não entendo. O que irá acontecer que não estou sabendo? – afagou seu braço.

-Não desejo ver você e sua amada ostentarem a felicidade do casal por aqui. – afastou-se rispidamente.

Ana entendeu o que a jovem tentava dizer e sorriu. Essa era a certeza de que seu sentimento era correspondido. Sorriu de felicidade em saber que lutou durante meses por algo que também era desejado. Viu o semblante da moça transformar-se em pura magoa e depois de esbravejar Selena dirigia-se a saída quando ouviu.

-Não posso deixar que se vá, porque és tu a quem desejo. Estou apaixonada por ti, Selena. – Ana enfim revelava-se.

-Co… Como? – sentiu surpresa naquela pergunta.

-É de ti que gosto. Falava de ti quando falei do sorriso doce e gentil. Não sei como e quando aconteceu, mas aconteceu. Eu te vi. Verdadeiramente te vi e me encantei. – falava enquanto a enlaçava para um beijo sôfrego.

As bocas pareciam querer engolir-se e o beijo tomava proporções avassaladoras. Ana a convidou para irem para um lugar mais tranquilo, sua residência. O trajeto foi feito entre caricias trocadas e promessas ditas através do olhar.

Assim que entraram, Ana a levou até seus aposentos. Selena encantou-se com a varanda e a bela vista da praia e do céu estrelado. Olhou rapidamente e pode ver a predominância da cor branca em contraste com seu look sempre preto.

Ana rodeou sua cintura distribuindo beijos em sua nuca e sorriu ao ver os pelos eriçados. Virou sua amada e contemplou seu rosto antes dos olhos fecharem-se um beijo de amor ser trocado. Aos poucos as roupas abandonavam os corpos em direção ao chão.

Selena foi conduzida de forma reverente a cama por uma Ana encantada. Beijos deixados em todo o corpo junto com outras marcas. Dedos e mãos percorrendo caminhos, descobrindo-os. A luz do luar que passava pelo vidro era a testemunha da consumação do amor entre a advogada e sua secretaria.

“Num fascínio de alma gêmea você em mim constrói o seu lugar. O amor se fez me levando além onde ninguém mais.”

Ciclo – Jorge Vercillo

Depois de horas de amor entre os lençóis foram para um banho igualmente aprazível. Desceram para fazer um lanche. Ana mostrou que sabia se virar na cozinha ao preparar omeletes para ambas. Enquanto conversavam Selena explicou a Ana o porque das reações que teve. Ana sussurrou com a voz naturalmente grave e naquele momento enrouquecida pelo desejo de ter sua amada outra vez.

-Agora que te encontrei e me descobri em você, não te deixo fácil minha menina. – Ana Lara irradiava felicidade. Enfim desfrutaria do amor e da plenitude que era ser amada.

“I have died every day waiting for you. Darling don’t be afraid. I have loved you for a thousand years. I’ll love you for a thousand more.”

A Thousand Years – Christina Perri

Fim



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