Será?... porque parece... é?

Será?… porque parece… é?

SERÁ?

Porque parece… é?

Raul era um típico sujeito da periferia de uma metrópole. Nascera e crescera como qualquer garoto. Cursou escola estadual, onde conheceu Isaura e desde sempre namoraram. Aos 20 anos se casaram e, aos 22, tiveram Geórgia. Na adolescência conseguiu fazer curso no SENAI e começara a trabalhar cedo.

Isaura trabalhava como vendedora em uma grande loja e Raul em construções e “bico” como encanador. Aos 24 anos, a casinha no mesmo bairro, financiada em longos 25 anos.

A vida seguia com muito trabalho e a mãe de Isaura ajudando a cuidar de Geórgia.

Quando Geórgia completou 8 anos, infelizmente Isaura, prestes a fazer 30, teve um AVC fulminante. A mãe se desesperou e foi embora para o norte de onde viera e tinha outros filhos.

Raul pensou que morreria também, tamanho amor que sentia pela mulher e a saudade sufocante, mas tinha Geórgia, a quem amava de paixão e que também era um pedaço de Isaura. Então, pela manhã deixava-a na escola, vinha busca-la ao término das aulas e levava-a junto para o trabalho. No começo tentaram impedir, mas a menina era obediente, só ia onde deixavam, só subia nas construções onde já estava concretado e não se aproximava das beiradas que não tinham proteção. Era uma sombrinha sempre junto ao pai. Como já tinham algumas mulheres nas obras (engenheiras, arquitetas, enfermeiras do trabalho, escritório…) acabaram se acostumando à presença da garota.

Aos 12 anos, Geórgia continuava naquela rotina e já sabia como eram construídas as sapatas, os alicerces de prédios e várias coisas de construção. Do ofício do pai, sabia quase tudo. Quando o pai foi trabalhar em uma grande obra que demoraria anos, resolveu colocá-la à tarde, em curso de inglês em escola próxima. Agora passava menos tempo nas obras.

Havia uma mãe solteira de uma coleguinha de escola de Geórgia, que todos os dias, já cedinho, chegava toda arrumada e se aproximava de Raul, puxando conversa. Depois de três anos de tentativas, finalmente conseguiu fazer com que ele saísse da rotina que havia se jogado. Então, quando Geórgia fez 13 anos, ganhou uma madrasta e uma irmã um ano mais nova.

Geórgia até gostou, porque pensou que não teria mais que passar pelo vexame que acontecera quando da primeira menstruação aos 11 anos. Sentiu algo estranho, fora ao banheiro e se não fosse a servente que lá estava e arrumou um absorvente e contou ser normal para as mulheres, teria sido a chacota da escola. Só aí o pai se lembrou desses detalhes. Talvez por isto tenha dado chance à Joana.

Como Joana antes morava com os pais e Angélica, sua filha, estava acostumada com os avós, nada mudou. Raul e Joana deixavam as crianças na escola a caminho do trabalho. Terminada as aulas, Angélica ia para a casa dos avós, perto da escola e Geórgia almoçava com o pai que a deixava no curso de inglês e quando terminava ia para a obra onde o pai estava, até às 17h30min., quando voltava para casa, onde agora dividia o quarto.

Ao terminar o segundo grau, Geórgia fez curso técnico para continuar trabalhando no que aprendera com o pai e gostava daquilo. Quando fez 20 anos, resolveu abrir com o pai uma pequena firma para prestação de serviços gerais em residências e pequenas empresas.

Tentavam atender com rapidez e profissionalismo e, em dois anos, já se tornaram conhecidos pelo bom trabalho.

Um dia, atendendo um cliente de uma pequena empresa:

– Oh rapaz, dá pra sair que quero usar o banheiro?

– Boa tarde! – Geórgia responde. – Para começar não sou rapaz, mesmo que fosse, há vários boxes fechados, então pode usar à vontade.

– Que tipo de garota usa este cabelo e este macacão horroroso?

– O tipo que trabalha honestamente, que gosta de cabelo curto e não acha que precisa se fazer notar o tempo todo, mesmo às custas de tanto “reboco” na cara!

– Que atrevimento! Você é faxineira aqui?

– Não! Sou a encanadora que está arrumando estas duas pias que as gentis senhoritas que as utilizam não têm o mínimo cuidado.

– Se nada acontecesse com elas você não teria trabalho! Então vê se não enche.

– Que argumento mais chato e sem criatividade! Vai descarregar pra ver se o cérebro funciona, inclusive a parte de gentileza e educação.

A mulher entrou em um dos boxes e quase quebrou a porta de tanta força usada para fechá-la.

– Cuidado aí, portas eu não conserto. – Geórgia riu.

Em poucos minutos ela saiu, lavou as mãos, olhou para Geórgia como quem olha uma minhoca e saiu.

Geórgia e Angélica haviam se tornado, desde a adolescência, amigas, confidentes e se sentiam irmãs. Angélica sempre sabia onde Geórgia trabalhava todos os dias e, embora fosse um ano mais nova, tinha mania de cuidar da irmã.

Quando dava tempo, ia até onde ela estivesse trabalhando e seguiam juntas para casa, só para bater papo.

Meses depois, aquela mesma firma precisou novamente dos serviços de Geórgia. Angélica foi encontrá-la para falar de uma nova paquera. Na saída da empresa, assim que Geórgia saiu gritou o nome dela, veio rápido até onde ela estava, abraçaram-se e deram um “selinho”.

– Que horror! Na frente de todo mundo. Se eu fosse a dona da firma ela nem entraria, imagine trabalhar aqui.

– É essa aí a tal moralista preconceituosa? – Angélica pergunta.

– Ela em pessoa, – Geórgia responde – não é agradável a dita cuja?

– Eu diria ridícula ou enrustida.

– Viu, Ana Lúcia? Quem mandou mexer?! – Falou uma das funcionárias que saia junto com ela.

– Será que só eu tenho vergonha por estas coisas? – Retruca Ana Lúcia.

– Querida! – Angélica replica. – Você tinha que ter vergonha é do seu preconceito. Por acaso você é evangélica, meu bem?

– Eu não sou seu bem! E sou católica.

– E bem radical por sinal. Tá com invejinha? Posso dar um selinho em você também.

– Nem morta! – e saiu bufando, enquanto Angélica, Geórgia e mesmo algumas colegas que ali trabalhavam riam.

À noite, depois de jantar em frente à tv, Ana Lucia não pode evitar os pensamentos que insistiam em aparecer a respeito das duas “desavergonhadas”, com aquela atitude horrível na frente de todos. A tal que chegou beijando a faz tudo era tão feminina! Tão bonita!

E por vários dias e noites, aquele sorriso debochado a perseguiu em momentos de relaxamento.

Em um sábado, dia de folga, foi ao mercado para comprar algumas coisas e, ao voltar, teve uma desagradável surpresa.

– Mãe, já voltei, onde a senhora está?

– Aqui na lavanderia, filha.

– Que mais a senhora… o que esta… mulher tá fazendo aqui?

– Boa tarde, gentil donzela! – Geórgia cumprimenta.

– Que modos são esses, filha?

– Ela é sua filha? Pois não parece, a senhora é tão educada!

– Não acredito que a senhora chamou essa… essa coisa para consertar a máquina de lavar!

– Por que? Ela foi indicada pela dona Luzia. Sempre chama por ela para consertar as coisas na casa dela e a Geórgia me fez o favor de vir já hoje, pleno sábado!

– Geórgia! Esse é o nome dela?

– Tá vendo, dona Esmeralda? Toda vez que ela me encontra, me agride verbalmente e nem o meu nome ela sabe.

– Minha filha, onde você aprendeu isso?

– Mãe, esta mulher é uma… lésbica e você coloca ela dentro de casa?

– Eu não coloquei ela dentro de casa! Ela veio fazer um serviço que eu vou pagar pra fazer. Ela é educada, simpática, não é igual a esses caras que vêm consertar as coisas e são “entrão”. E se for lésbica, que é que eu tenho com isto?

– Mãe! É errado, é pecado!

– Quem disse? Dona Iolanda tem um menino que é gay e ela disse que desde pequeno já era assim, que nasceu assim. E se isso fosse pecado, as pessoas não nasceriam assim, oras!

– Dona Esmeralda, a senhora tem uma cabeça bem melhor que sua filha! Parabéns.

Ana Lucia desistiu de falar qualquer coisa e foi ruminar os pensamentos que agora voltaram com tudo e a lembrança daquele sorriso debochado da mulher, de Geórgia (agora sabia o nome).

Geórgia terminou o serviço e dona Esmeralda gostara tanto dela que a convidou para almoçar. Ana Lucia ficou tensa .

– A tua namorada não vai ficar brava? Aquela com quem você se agarrou outro dia na frente da firma?

– Angélica!? Não, não fica brava, não. Obrigada, dona Esmeralda, mas a família me espera pro almoço em casa. Até qualquer dia – e foi-se embora.

– Que grossura, minha filha! Nunca te ensinei a tratar as pessoas deste jeito.

– Mas ela é lésbica, mãe!

– E daí? Estava na minha casa porque eu chamei, então você devia ser educada com ela ou qualquer outra pessoa que encontre aqui e que eu tenha convidado a entrar.

Pelo tom sabia que o assunto estava encerrado e que a mãe ficara brava com ela.

A noite foi ao cinema com duas amigas. Compraram ingressos, foram comprar pipocas e alguma coisa pra mastigar e beber durante o filme.

– Refrigerante ajuda a engordar, sabia?

Virou-se para ver quem falara e lá estava aquele sorriso debochado, irritante e encantador. Levou alguns segundos para recuperar o autocontrole.

– Não acredito! De manhã uma foi em minha casa, agora tenho o desprazer de encontrar a outra aqui!

– O desprazer é todo seu. Não vai apresentar as amigas, ou elas também têm medo de pegar a minha “doença”?

– Que doença?

– Nada não. – Ana Lucia respondeu. – Esta é a tal que contei pra vocês que beijou a namorada na saída da firma.

– Corajosa hein!

– Corajosa? Pois eu achei sem vergonhice.

– Você é muito certinha, Aninha, abra a cabeça!

– É, Aninha, – brinca Angélica – abra a cabeça e esse seu coraçãozinho.

– Vá a merda!- cerrando os dentes.

Angélica se afastou rindo, o que deixou Ana mais irritada ainda.

– Bonita, não é!?

– Gostosa a mulher!

– Vocês estão malucas? – Ana Lúcia repreende. – Perdi a vontade de ver o filme.

– Deixa de ser boba! Já compramos até coisas para acompanhar – riem da amiga -, agora vamos entrar.

Após o filme, na saída do cinema, ainda viu Angélica que lhe enviou um debochado sorriso e uma piscada.

Aquela noite foi pior que as outras. “Por que tinha que ficar se lembrando daquela mulher? Daquele sorriso debochado? E agora daquela piscada marota? Meu Deus, tira esta mulher da minha cabeça”. Dormiu mal, ainda bem que não tinha que trabalhar, já que era domingo.

– Oi, Gegê, adivinha quem encontrei ontem à noite no cinema? – Angélica pergunta.

– Sei lá! Diz logo.

– Aninha.

– Que Aninha?

– A homofóbica que te ataca toda vez que te vê!

– Ah, a filha da dona Esmeralda! Ela se chama Ana, é?

– Descobri ontem. Estava com duas amigas lá no cinema.

– Coincidência hein! Vê lá se não vai fazer besteira encontrando com ela por aí, tá.

– Que isso maninha, sou ajuizada!

– Tá bom. E aí, o que vai fazer hoje?

E a conversa passou a temas corriqueiros com a chegada dos pais à mesa do café da manhã.

Agora, toda vez que Geórgia fazia algo na firma onde Ana Lucia trabalhava, Angélica ia busca-la, ou falar com ela durante o trabalho. Até que, um dia, Ana passou por elas a caminho do banheiro, olhando com aquele ar superior. Angélica sorriu.

– Angélica! Não faz besteira.

– Que besteira? Só me deu vontade de ir ao banheiro!

Jogou um beijo para a irmã e foi. Geórgia meneou a cabeça e continuou o que estava fazendo.

Quando Ana abriu a porta do box, viu Angélica encostada na porta de entrada do banheiro. Gelou. Disfarçou, lavou as mãos, enxugou-as, enquanto vigiava disfarçadamente Angélica pelo espelho. Ela continuava na porta.

– Com licença, quero sair.

– Claro!

Angélica ao invés de sair, segurou Ana Lucia pelos ombros, puxou-a com certa força e beijou-a na boca, com vontade. Ana, sem querer se apercebeu correspondendo ao beijo e ao se dar conta disso, de imediato parou e empurrou-a. então Angélica destrancou a porta e saiu sorrindo.

Ana ficou parada por alguns minutos, sem saber se a cabeça estava vazia ou com excessos de pensamentos. Virou-se para o espelho levando a mão aos lábios e a sensação que sentiu a chocou. Seus joelhos falharam e sem querer, se ajoelhou. E também sem querer, quase sem perceber, chorou.

– O que você fez, Ange?

– Não disse que era enrustida? Se enclausurou em um armário imenso, colocou um monte de coisas na frente, mas eu sabia, eu sentia o que estava por trás de tantas barreiras. Puro medo.

– O que você fez?

– Eu a beijei pra valer.

– Você é doida? Mesmo que ela seja enrustida, já pensou no que isso pode ocasionar?

– Você não fez nada! Eu não venho mais aqui se disserem algo por eu ser sua irmã, não vão deixar de te contratar.

– Não é comigo que estou preocupada! Duvido que ela vá falar com alguém sobre o que aconteceu agora. Estou falando dela, Ange.

– Eu… eu não pensei nisso! Só… só queria beijar tanto aquela boca desaforada, apagar aquele olhar desafiador e ver o que tem por trás.

– Você realmente gosta dela?

– Digamos que ela me chama a atenção.

– Nem dá pra ver como ela está, não voltou ainda.

Realmente, Ana Lucia ainda continuava no banheiro. Quando alguém entrou ela reagiu, correndo para um box, onde permaneceu por muito tempo em desespero.

Voltou para a sala onde trabalhava e o pessoal já se preparava para ir embora, nem olhara para onde Angélica e Geórgia estavam, mas também não as veria porque já tinham saído.

Perguntaram o que ela tinha, se estava bem, respondeu que fora uma indigestão e que, na manhã seguinte, estaria bem.

Foi para casa no automático. Lá chegando, perto das 19h30min, foi direto para seu quarto, se jogou na cama e chorou mais. “Que absurdo! Eu não sou, nunca serei lésbica”. Era o que mais martelava na sua cabeça, mas não conseguia esquecer o quanto gostara daquele beijo.

A mãe a chamou para jantar, disse que ia pro banho. Depois do banho avisou que estava muito cansada e que comeria mais tarde, pois precisava dar uma dormidinha naquela hora. E voltou para cama, agarrando o travesseiro e chorou mais, reconhecendo que queria aquele beijo. Por volta das 3h30min., acabou por adormecer de cansaço causado por pensamentos e lágrimas.

No dia seguinte, quando a mãe a chamou, estava com o rosto inchado e com febre. A família achou que era gripe e queria que ela fosse ao médico, afinal o inchaço poderia ser sinusite. Ela recusou e foi para o trabalho.

No escritório da empresa todos perguntaram a mesma coisa, com tom de preocupação, já que na tarde anterior havia tido uma indisposição. Respondia que devia ser gripe e se enfiou no trabalho para não pensar.

Geórgia não foi naquele dia, já terminara o serviço.

No sábado à tarde, ajudava a mãe a fazer a faxina da casa, já que não precisaria ir à faculdade onde fazia curso à distância, porque haviam mudado a data para presença, o telefone tocou e dona Esmeralda depois de atender, chamou-a.

– É pra você.

– Pra mim? Quem é?

– Não perguntei.

– Não estou esperando ninguém ligar. Alô?

– Boa tarde.

– Boa tarde! Quem está falando?

– Sou eu, Ana.

O coração disparou e sentiu medo… aquela voz…

– Eu quem? – seca, disfarçando a voz.

– Angélica.

– Não conheço nenhuma Angélica!

– Não mesmo? Queria te pedir desculpas pelo modo como agi naquele dia. Tive vontade de fazer e não pensei nas consequências.

– Tá bom. Só isso?

– Bem… não. não é só isso, mas acho que você não quer saber o que mais, não é?

– É, acho que não. Diz pra tua namorada… Geórgia, não é? Vamos deixar assim.

– Então até qualquer dia.

– Hum hum!

Desligou, olhou para as mãos e elas tremiam.

– Você está bem, filha?

– Estou sim, mãe.

– Quem era? Alguma notícia ruim?

– Não, mãe, tudo bem. Vamos terminar?

Deixou de ouvir as músicas que tocavam no rádio e nem percebeu se a mãe falava com ela, apenas se concentrou na limpeza pra não chorar, não gritar, não olhar o número do telefone para ligar e perguntar “o que mais?”

Angélica não voltou a ligar, atendendo ao pedido de Geórgia que estava preocupada com as duas. E o tempo passou, dois meses se foram. Então, um dia, na saída do trabalho viu Geórgia e um rapaz se aproximou, abraçou-a e beijou-a na boca. Ficou chocada.

Estava no ponto de ônibus, após mais um dia de trabalho, a chuva caia, um carro parou e ouviu seu nome. Antes de olhar já sabia quem era. Olhou, mas não se mexeu do lugar onde estava. O vidro do lado do passageiro abriu totalmente.

– Ana, entra.

– Não, obrigada!

– Por favor, te deixo em casa numa boa.

Algo a impulsionou e ela entrou no carro.

– Você nem sabe onde moro.

– Você me indica o caminho mais rápido. – arrancou com o carro.

– É seu carro?

– Ah, não! É da Geórgia. Hoje ela está trabalhando só na oficina que é lá perto de casa, como não vai sair e está chovendo me emprestou o carro. Pra onde?

Deu o nome do bairro e só lá daria o endereço. A tensão era palpável, assim como o silêncio. Até que em uma avenida com o semáforo fechado, Angélica tomou uma atitude. Em um só movimento, tirou o cinto de segurança, se retorceu e ficou com metade do corpo sobre Ana, com o rosto quase colado, olhando-a nos olhos.

– Diga para eu não fazer o que estou morrendo de vontade que eu não faço.

Como nada foi dito, o beijo aconteceu, intenso, desejado, esperado, até ouvirem as buzinas dos carros atrás avisando que o farol abrira. Nada mais foi dito ou feito, além do endereço dado. Ao chegar ao destino, Angélica estacionou o carro e se virou querendo conversar. Ana percebeu, abriu a porta e fugiu correndo para casa.

Mais uma noite quase sem dormir, com muitas lágrimas em dois locais distintos, distantes não pela geografia, mas por medo e preconceito.

Angélica tinha uma família que a amava e respeitava e, mais que isso, a aceitava tal qual sempre fora. E Geórgia como confidente e ombro para qualquer hora. Ana Lucia, apenas seus medos e desespero como companhia. Aquele assunto, ela dificilmente falaria com alguém. E quando a mãe preocupada perguntava o que estava acontecendo, a resposta era a mesma “NADA”.

Na noite seguinte, novamente um telefonema. Desta vez, Ana estava tentando estudar e quando o telefone tocou, atendeu por estar perto, com a mente dispersa. A voz foi reconhecido no alô.

– Oi. Você está bem?

– Não! Como é que você tem o telefone aqui de casa?

– Sua mãe é cliente da Geórgia.

– É mesmo! Ainda tem isso. Por que não me deixa em paz?

– Porque você não me deixa em paz e eu quero ficar. De preferência com alguém ao meu lado com quem possa dividir a vida.

– Não sou eu. Por favor, não liga mais pra cá, não.

Desligou não querendo desligar. “Mas como é cara de pau! Liga pra mim e pegou o telefone com a namorada. Traindo a outra! Confirmando o que dizem, são todas umas… traidoras, não são dignas de confiança. E, mesmo que fosse sozinha, é uma mulher. Jamais teria algo com ela, é indecente”.

Enquanto Angélica chorava em colos que a abraçavam, o que tornava sua dor suportável, Ana Lucia se agarrava a travesseiros para abafar o som do choro que queria gritar, para que ninguém na casa ouvisse.

Quinze dias depois, lá estava Geórgia na empresa novamente. O prédio não era lá muito novo e sempre dava um probleminha ou de encanamento, ou na parte elétrica. Embora Geórgia já tivesse sugerido uma troca total, por material que não daria problemas, o dono também meio arcaico, sempre protelava e a chamava. Ana passou o dia em suspenso, com a possibilidade de Angélica aparecer. No fim do dia, na saída do pessoal, Geórgia também saiu e um rapaz, o mesmo de antes, a chamou e veio rápido em sua direção com um sorriso estampado. Ela, assim que o viu, largou no chão as tralhas de serviço. Ele chegou perto e ela se atirou para o abraço e, em seguida, um beijo apaixonado.

“Como? O que? Essa também namora uma e um homem, ao mesmo tempo? ”

Interrompendo o choque de seus pensamentos, Angélica chegou. O casal havia se separado, ele ajudando Geórgia a pegar o material de trabalho e Angélica abraçou, deu-lhe um beijo no rosto cumprimentando-o.

– Oi, cunhado lindo, tudo bem?

– Oi, cunhada, querendo carona?

Angélica se voltou para Geórgia e deu-lhe um selinho tranquilamente. “Cunhado?” E o cérebro de Ana Lucia travou, no mesmo instante que Angélica sorrindo se virando a viu. Deu-lhe um olhar tristonho, pegou no braço do cunhado e os três se foram. Chegaram perto do carro de Geórgia, o rapaz empurrou delicadamente Angélica e entrou sentando-se no banco do carona da frente e deu à ela a chave de outro carro.

Quando partiram, Angélica olhou para Ana que permanecia estática olhando como quem olha um filme, mostrou a chave do carro e fez sinal com a cabeça indagando. Ana reagiu então, meneando negativamente a cabeça e se dirigiu para o ponto de ônibus.

Em uma quinta feira, Ana Lucia vai com a mãe a um show de Fábio Jr que dona Esmeralda gostava, desde que Ana se entendia por gente. Como a mãe comprara dois ingressos e nem o pai, nem o irmão quiseram ir, ela foi para agradá-la.

Na entrada, viu Geórgia de braço dado com um senhor que do outro lado tinha uma senhora. Tentou não se aproximar, fingindo que não a vira, mas a mãe acabou vendo-a e se aproximou. Foi obrigada a acompanha-la.

– Geórgia!

– Dona Esmeralda! Como vai a senhora?

– Tudo ótimo. Quase não a reconheci vestida assim!

– Estes são meus pais, Joana e Raul. – Geórgia respondeu, sorrindo. – Essa é dona Esmeralda.

Ana estava perto olhando desconfiada para os lados.

– Ela não está, não se preocupe, Ana. – Geórgia fala. – Está na residência no hospital.

– Quem não está?

– Minha irmã, a mulher que a ama e acho que a recíproca é verdadeira.

– Ahhh! – Dona Esmeralda exclama. – Aquela que Ana pensou que fosse sua namorada?

– Na família, a lésbica é Angélica! – Raul explica, rindo. – Elas são apenas irmãs que se amam. Nossa pequena sempre foi um furacão.

Joana se aproximou de Ana Lucia, passou suavemente a mão em seu rosto, com um olhar de mágoa e numa voz suave

– Então é você a pessoa que causa tanta tristeza na minha criança?!

Os olhos de Ana umedeceram no ato.

– Então aquele repetido “nada” tem nome? – Dona Esmeralda indaga.

– Mãe, por favor! – se afastou um pouco.

– Nunca ensinei meus filhos a julgarem, a ter preconceitos, – Dona Esmeralda esclarece – mas quando pequenos eu deixava eles no catecismo, com um padre que cuidava dos grupos de jovens, até o dia que descobri que ele era uma baita preconceituoso que enchia a cabeça dos jovens e crianças. Tirei eles, mas ela continuou com amizades com as mesmas crianças que cresceram juntas, só pode ser isso que a influenciou tanto.

– A única coisa que podemos fazer, é torcer para que encontrem um bom caminho que as faça felizes. – Joana conclui.

– Gente!  – Geórgia fala. – Viemos ver um show para alegrar, vamos entrando e vamos melhorar este nível!

Sorriram e começaram a falar sobre o artista.

Ao voltarem para casa, tudo que dona Esmeralda disse foi:

– Não se prenda a besteiras, a interpretações erradas de textos ditos religiosos, sagrados, para ser uma pessoa menor, uma pessoa angustiada como nesses últimos meses, uma pessoa infeliz. Não vou falar mais nada a respeito, a menos que você queira. Estarei aqui até o dia da minha morte, pronta para te ouvir, para te apoiar, contando que seja para ser feliz. Estou cansada de te ver do jeito que está. Comendo e dormindo mal, chorando com o travesseiro de companhia, como se não tivesse mais ninguém no mundo que pudesse te ajudar. Boa noite, filha.

Deu um beijo na testa de Ana e foi para o quarto. E Ana perdeu mais uma oportunidade de compartilhar, de se abrir, de ouvir opinião diferente da sua.

Ana Lucia trabalhava no setor de compra e venda da empresa e um dos vendedores de um dos fornecedores, já há algum tempo, vinha cantando-a, então, depois de tanta tortura, quando ele apareceu a negócio e aproveitou para convidá-la a sair, ela aceitou. E assim, ignorando o que o coração queria, começou um namoro que achava que a razão aceitaria.

Edgar gostava da ideia de sua namorada ser religiosa a ponto de ser virgem, portanto, seria o ideal para ser “a mãe de seus filhos”, e aos quatro meses de namoro pediu-a em casamento e ela aceitou.

Geórgia, em uma das vezes que veio fazer serviço na empresa ouviu a respeito.

– Ange, eu sinto muito, mas hoje eu soube de uma coisa que vai te deixar bem triste.

– O que, Ge?

– Ana Lucia está noiva e de casamento marcado para daqui a cinco meses.

– Não acredito! Como ela pode ser tão idiota?

– É a cabeça dela, querida. Desculpe ser eu a te dar esta notícia.

Abraçaram-se. Angélica tomou uma decisão. No dia seguinte pediu a ajuda de Geórgia para fazer algo que queria dar a Ana e o empréstimo do carro.

Ligou para dona Esmeralda e pediu o número do celular de Ana. Um pouco antes do término do expediente ligou. Ana estava ocupada, pegou o celular sem olhar o visor, normalmente era sua mãe quem ligava para ela no trabalho e, ocasionalmente, Edgar.

– Alô.

– Oi, Ana, por favor, não desligue.

– Como conseguiu este número?

– Dona Esmeralda.

– Não acredito! – como o tom saiu alto, abaixou a voz rápido – O que você fez ou disse para ela te dar?

– Só perguntei!

– Então fala, o que você quer?

– Estou perto do seu trabalho com o carro da Geórgia. Eu preciso falar com você, só um pouco, uma última vez.

– Eu vou me casar.

– Eu soube. Por favor, me dá essa chance que depois eu sumo.

– Promete?

– Prometo!

– Tá bom.

Ao sair do trabalho logo viu o carro estacionado. Foi até lá e entrou. Angélica saiu com o auto e voltou a estacionar em uma rua menos movimentada. Tirou o cinto e Ana sobressaltou, lembrando-se de outra carona.

– Isto é para você. Peço que veja quando estiver só e desocupada, não vai levar muito tempo, mas diz muita coisa.

– Vou ver. Que mais?

– Eu te amo, Ana. E sei que você sente algo por mim, só quero ter a chance de demonstrar isso a você.

– Não, eu não sinto nada!

– Se não sentisse, não se importaria. O que te impede de ver ou de deixar sentir livremente é só preconceito.

– Não é! Sentir algo por uma mulher além de amizade não é natural!

– A gente ama de várias formas. Amizade é uma forma de amor. Me deixa te tocar, me deixa te beijar, me deixa te amar da forma mais completa que eu posso e sei.

Os olhos de Angélica tinham lágrimas que terminaram por correr. Aquilo tudo atingia fundo Ana, mas ela não queria admitir. No entanto, os olhos diziam o que as palavras negavam. E em um gesto espontâneo, sem controle, sua mão tocou o rosto de Angélica, tentando estancar as lágrimas.

Em seguida, sua mão foi segura com carinho, a palma beijada e através dela, num suave convite, o corpo se aproximou e um novo beijo aconteceu. Longo, sem barreiras, sem pudores. Entre suas pernas uma umidade desconhecida e uma dor pedinte.

– Para! – sentou-se ereta e nervosa – Isto é tesão?

– Isto é tesão. Normal, sem pecado!

– Me leva pra casa.

Angélica gastou um tempo para se recuperar, secar os olhos e não a xingar, não a estapear, enfim se controlar. Então a deixou em casa sem nenhuma palavra mais.

Ana entrou rapidamente em casa, ligou seu computador e colocou o DVD, sem nem perceber que a mãe estranhara ela ter chegado mais cedo, mas não teve chance de perguntar se estava tudo bem. Encostou-se no portal e por cima do ombro de Ana também viu o conteúdo do DVD.

Na imagem, Angélica estava sentada a um piano.

– Desculpe se a qualidade não estiver das melhores. Tive pouco tempo. Não sou do tipo galinha. Quando amo é pra valer e, como você sabe, amo você. Amar, pra mim, não é só dividir a cama. É dividir carinho, é dividir aconchego, é dividir espaço, é dividir sonhos, é dividir alegrias e tristezas, lágrima e risos, é dividir as vidas somadas. E eu já disse que quero dividir com você. O número do meu celular está no seu, te liguei hoje, em todo caso repito – disse o número. O daqui de casa tua mãe tem. Estão disponíveis para você se e quando quiser falar comigo.

Parou de falar e começou a tocar. Cantou duas músicas.

CANTEIROS

Compositora: Cecília Meireles

Quando penso em você fecho os olhos de saudade

Tenho tido muita coisa, menos a felicidade

Correm os meus dedos longos

Em versos tristes que invento

Nem àquilo a que me entrego

Já me dá contentamento

Pode ser até manhã, cedo claro, feito dia

Mas nada do que me dizem me faz sentir alegria

Eu só queria ter do mato

Um gosto de framboesa

Pra correr entre os canteiros

E esconder minha tristeza

E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza

E deixemos de coisa, cuidemos da vida,

Pois senão chega a morte ou coisa parecida

E nos arrasta moço sem ter visto a vida

Eu só queria ter do mato…

Depois cantou Bridge over trouble water. Quando terminou de cantar pediu desculpas, mas como não sabia se Ana entendia inglês, traduziu do seu jeito.

Ana Lucia ficou olhando a tela e o choro veio aos soluços. A mãe só então se aproximou e a abraçou até ela se aclamar, o que demorou.

– Quer falar, filha?

Meneou negativamente a cabeça encostada na mãe. Dona Esmeralda beijou suavemente os olhos da filha e saiu do quarto, mais triste do que antes, principalmente porque intuía o que a filha faria em um futuro próximo.

Ana pegou o celular, encontrou o número de Angélica, registrou, salvou e ligou, querendo encontrá-la na mesma noite ainda. Angélica nem tinha chegado em casa, mas voltou de imediato, ligando e avisando Geórgia que não sabia a que horas voltaria. Foi a conta de Ana terminar o banho e Angélica chegou.

Dona Esmeralda as viu saírem e rezou para que o que ela intuíra não acontecesse.

No carro apenas se olharam profundamente como cumprimento e Angélica dirigiu até um motel. Tomou banho e veio nua para a cama. Ana observou o banho, aquela umidade de volta. Tirou a roupa sob o olhar degustador de Angélica.

–  Vem. – Angélica convidou com uma voz rouca e uma suavidade como Ana jamais ouvira.

Veio tímida, sem saber como agir. Angélica levantou-se e veio ao seu encontro. De pé, nuas, próximas da cama se abraçaram, unindo peles aumentando o calor. Sem pressa, Angélica deslizava as mãos por onde alcançava, aumentando a dor em Ana.

Um beijo ardente, um puxar pra cama, um sorriso safado e lindo que Ana tinha saudades. E Ana soube até onde pode ir o tesão. Descobriu como o corpo todo pode ser sensível, descobriu a alegria e o prazer de tocar o corpo amado, sem nenhuma barreira. Da delicia de ser amada, dos cheiros e sabores, da dor interrompida, preenchida com carinho, transformando-se em prazer intenso uma e outras vezes. Descansar no peito adorado, ouvindo o coração pulsar disparado e ir se acalmando quase à letargia. O corpo largado e saciado… até aparecer a culpa.

– Você me deixa em casa?

– O quê!? – decepção

– Você me…

– Eu ouvi o que você disse! É isso mesmo que você quer?

– É.

Levantaram-se. Uma com medo da própria reação, dependendo do que a outra fizesse e voltar atrás no pedido. A outra em completa decepção, mágoa e incompreensão, porque ali houvera palavras ditas, olhares impossíveis de serem disfarçados, certeza de sentimentos ficaram claros, então… por que? Como?

Não disse mais nada, cumpriria a promessa e sumiria, nunca mais a procuraria.

Ana Lucia chegou em casa e a mãe já tinha se levantado.

– Oi, mãe.

A mãe a segurou, fazendo-a encará-la.

– Não vai ficar com ela?

– Não, mãe, não vou. Vou me casar com Edgar que é o certo a fazer.

– O certo é amar, ser amada, ser feliz e isso você não vai conseguir com ele e se não mudar a cabeça.

– Não posso, mãe, não consigo! – tentando ser firme, mas os olhos desmoronaram.

A mãe a soltou, intimamente se lamentando. Ela estava fazendo o que sua intuição prevenira. Que lástima!

Antes de entrar em seu quarto Ana jogou o DVD no lixo. Disfarçadamente, dona Esmeralda o pegou e guardou.

Ana pensava que, um dia, os beijos de Edgar, tão diferentes dos de Angélica, a fariam vibrar da mesma forma. E o dia do casamento chegou e… nada. Era um bom sujeito, até mesmo carinhoso, que achava que por causa da crença religiosa dela era tão pudica. Um pouco fria, mas tinha certeza que depois da noite de núpcias ela mudaria. Seriam casados, então ela não teria barreiras. Como a família dele era de outra religião que não a católica e ele de religião nenhuma, decidiu não se casar na igreja, só no civil.

Foi a primeira decepção, ela sonhara de se casar como a maioria das amigas da igreja. De véu, grinalda, de branco. Guardara-se tanto para esse momento! “Talvez seja um castigo por causa dela” (não dizia o nome, apenas, todos os dias quando constantemente se lembrava dela, era “ela”, “dela”, sem nome, na tentativa de fazê-la desaparecer).

O casamento foi em uma sexta-feira com poucos convidados, quase que só alguns familiares dos dois, os mais chegados. Um jantar na casa dos pais do noivo e de lá o casal foi pra sua própria casa, modesta, mas confortável.

Edgar estava eufórico, Ana Lucia apavorada. Ele tentou ser o mais gentil possível, afinal ela tinha “se guardado” para ele. Não que ela não soubesse o que aconteceria, isso ela sabia direitinho. O problema era se despir na frente dele e deixar que ele a tocasse. Naquele momento, a certeza de não o amar foi mais presente que tudo. Tentou relaxar e quando ele a penetrou sentiu dor. Sentia nojo desde o momento que ele a olhara ali parada, nua, com um misto de carinho e desejo tão grande e tão diferente “dela”. Quando ele terminou, contente, fez-lhe um afago e dormiu logo em seguida. Ela foi para o banheiro tomar um banho e chorar, porque agora não tinha um quarto só seu pra isso.

A vida segue seu tempo, inalterável. Não para por alguém no momento de alegria, de felicidade. Cada um pode repetir o momento através de lembrança, porque fisicamente é improvável ter todos os detalhes novamente para acontecer exatamente igual outra vez. Por isso temos que aproveitar e bem todos os momentos, todas as companhias, todo tempo.

Quatro meses depois do casamento, a gravidez. Edgar ficou contente com a probabilidade de se tornar pai. Ana Lucia achava que teria uma desculpa para evitar o sexo.

Enquanto Angélica se esmerava para se tornar uma boa médica, Ana Lucia continuava na empresa. Depois da licença maternidade, as mães tomando conta do menino Alessandro, forte e saudável, terminou o curso à distância, melhorou de posição na firma.

Quando a criança fez três anos, Edgar já tinha amante e pensava em se separar de Ana. Só não fizera antes por causa da criança. Afinal havia chegado à conclusão que ou ela era frígida ou não o amava, porque fugia do sexo constantemente, tratava-o como no início do namoro, quase como um colega, não como amante, marido, nem mesmo amigo. Era uma boa mãe, mas ele tinha certeza que jamais seria uma boa companheira. Pelo menos, para ele que tinha feito tudo que podia para serem felizes.

A gota d’água, foi quando a criança ao completar quatro anos, já demonstrava tendências não muito másculas. Talvez pela convivência com tantas mulheres? E a uma coisa que Edgar disse ao juiz, quando perguntado se não havia chance de manterem o casamento. Foi taxativo no não, já que ela recusava sexo, ele amava outra mulher e a esposa dele, quando sussurrava o nome de alguém sonhando, não era o dele. Embora não tivesse conseguido entender o nome, com certeza, não era o dele.

Para facilitar, Ana Lucia voltou a morar com os pais. A mãe se entristecia ao vê-la só, tristonha, vivendo ou sobrevivendo pelo filho e para o trabalho apenas.

Ana Lucia estava de férias do trabalho e sua mãe marcou consulta médica para Alessandro na Clínica do convênio, em um dia e horário que não poderia ir, portanto Ana, embora estranhasse a mãe não a acompanhar, foi sozinha com o filho.

Entrou no consultório quando foi chamada às 14h15min., e a médica estava de costas lavando as mãos. Ana entrou, simplesmente fechou a porta e só então virou-se para a médica que se virava enxugando as mãos.

– Oi, rapaz… !

A onda que se instalou era palpável, sem saber onde era o centro dela.

– Oi, “dotora”!

A vozinha as trouxe de volta à realidade. Angélica colocou os papéis toalha no lixo, enquanto conversava com o garoto.

– Tudo bem com você, Alessandro? Veio com a mamãe, hoje?

– Foi. A vovó está ocupada e disse pra mim que estava na hora da mamãe te ver.

– Ah, é?! A vovó disse isso? Então me apresenta a tua mãe.

– Mamãe, essa é a “dotora”.

– Este é o nome dela? Mamãe?

– Não! – O menino riu. – O nome dela é Ana Lucia.

– Oi, Ana Lucia, você está bem?

Ana permanecera parada olhando para “ela” que mesmo sem ficar dizendo o nome (acordada), jamais saíra de sua cabeça e de seu coração, com a mesma sensação de anos atrás. Que saudade! Não, não estava bem, nunca estivera bem sem ela, como sua mãe a prevenira, mas ali estava Alessandro.

– Sim, estou. – a voz saiu baixinho e os olhos gritavam escandalosamente a saudade.

A criança foi examinada, tudo tranquilo.

– Como sua mãe sabia de mim?

– Não faço a menor ideia. Então, já se formou?!

– Pois é. E você, como está? De verdade.

– Vou levando. Trabalho, cuido de meu filho, voltei a morar com meus pais.

– O casamento não deu certo?

– Não. Acho que por minha culpa. Ele é um bom homem, mas nunca o amei.

– Posso perguntar por que se casou se não o amava?

– É um sujeito decente, gostava de mim e pensei que o amor viria com o tempo, como já aconteceu com muitos casais.

– Com casais que se casaram por algum interesse, que não tinham outra pessoa na vida, que não amavam ninguém, culturas diferentes da nossa e acabam se acostumando.

– É! Não consegui amá-lo, daí ele encontrou outra melhor para ele.

– Continua…

– Continuo o quê?

– Hum, beata?

– Não tanto. – Ana Lucia responde com desalento. Suspirou fundo – Você acha que meu filho tem tendências diferentes?

– Ele está brincando distraído, mas está ouvindo tudo que falamos, não acha melhor conversarmos sem ele por perto?

– Seria melhor, mas não quero incomodar. Ou alguém.

– Que alguém?

– Que tenha te conquistado.

– Não tenho ninguém, nenhum relacionamento sério. – Angélica ri e responde. – Tive alguns namoros por aí, mas nem tenho muito tempo disponível para este tipo de coisa.

– Não trabalha só na Clínica?

– É difícil que médicos e professores que tenham um só local de trabalho ou um só horário. Trabalho aqui e em um hospital, onde também faço cirurgia.

– Ah, é cirurgiã!

– Pediátrica; marmanjo não atendo. Não quer jantar qualquer dia e conversar sobre o garoto?

Ah aquele sorriso maroto de antes, o mesmo que sentiu tanta falta!

– Vou ver.

– Não sentiu saudades?

– Melhor não responder para não criar nenhuma expectativa.

– Eu senti. Todos os dias, sem nenhuma expectativa.

Depois de um longo silêncio, com apenas os olhos e a criança se movimentando.

– Acho melhor irmos embora, deve ter outros pacientes.

– Sempre tenho! – Angélica sorri.

Saíram. Angélica se deu uns minutos sozinha, um pouco d’água, antes de atender o próximo paciente. Não queria, não desejava, mas o amor por aquela mulher continuava nela inteira.

Ana Lucia saiu do consultório, foi para o andar de baixo pelas escadas, com as pernas bambas e se sentou na sala de espera, segurando firmemente a mão de Alessandro.

– Mamãe! Não vamos embora?

– Já vamos, filho. – Ana solta a mão do filho. – Dá só um tempinho pra mamãe.

O consultório “dela”. Como sua mãe sabia quem era “ela”? Não queria, não pretendia, não desejava, mas aquele amor negado, jamais a abandonara, o amor por “ela”. Não tinha jeito, não tinha religião, não tinha interferência alheia que mudasse isto. Era tão grande, tão puro que não podia ser pecado. E, sim, era bonito! Não prejudicava ninguém.

Finalmente estava em condições de ir pra casa.

Ao chegar, a mãe estava ansiosa. Beijou o rosto do neto, trocou a roupa dele para que pudesse brincar e foi saber as novidades com a filha que ficara na sala pensando.

– E aí, filha, tudo bem?

– Mãe, mãe, mãe! Por que fez isso?

– Estou cansada de te ver triste, amargurada e infeliz.

– Como sabia quem era ela? E não pensou que ela pode ter alguém?

– Da mesma forma que sei que ela sempre pergunta de você e acompanha tua vida!

– Como? De que jeito… Geórgia!?

– É claro!

– Por que, mãe? O que vocês pretendiam?

– Eu sabia que teu casamento não duraria muito. Foi até mais longe do que pensei porque o Edgar é tranquilo. Outro já teria dado no pé bem antes.

– Então conversava com elas e nunca me disse nada?

– Só com Geórgia e, às vezes, com os pais delas. Angélica nunca soube que eu sou tua mãe. Deve ter se assustado – rindo – quando viu a mãe do meu neto, hoje.

– Nós duas nos assustamos. – Ana replica. – E você ri, mãe?!

– Claro que sim! Fico imaginando as caras das duas, disfarçando por causa do Alessandro.

– Por que quis que a gente se encontrasse?

– Pergunta besta! Porque vocês se amam, duvido que você deixou de amar aquela mulher.

– Você sabe como eu penso, mãe.

– Não. Sei como você se deixou influenciar por gente de cabeça pequena, cheia de preconceitos que distorcem o que leem de acordo com as merdas que pensam e querem fazer com que todo mundo seja igual a eles. Jesus pregou amor, filha, ensinou a não julgar, que todos têm seus pecados e devem cuidar de seus narizes. Nascemos para sermos felizes, não para ficar travados por causa dos outros, do que vão dizer, do que vão pensar. Que se fodam!

– Mãe!

– É isso mesmo. Que benefícios essas ideias te trouxeram, além de amargura e tristeza? Acorda pra vida, filha. Ela tem uma boa família, é uma boa pessoa e te ama. Sabia que as duas não são irmãs de verdade?

– Como assim?

– A mãe da Geórgia morreu e o pai dela, depois de alguns anos, se casou com a mãe da Angélica. As duas sempre se deram bem e se sentiam irmãs. Como Geórgia é um ano mais velha, tem a mania de cuidar de Angélica, é sua confidente, mas o inverso também é verdadeiro. Engraçado, né? Às vezes irmãos de verdade, de sangue, não se suportam, já as duas… eu acho isso legal.

– Você está decidida a me convencer a entrar pra esta família, né, mãe?

– Eu já te disse, quero te ver feliz e Angélica é quem pode fazer isto acontecer.

– Não tenho como falar com ela. Não vou ficar indo à clínica – sorrindo.

– Ela te deu o telefone dela. E eu tenho o da casa, lembra?

– Ela me deu o telefone? Eu apaguei do celular.

– Naquele DVD lindo que ela gravou pra você, antes de você se casar.

– Eu joguei fora.

– E eu peguei de volta. Quer ver de novo?

– Quero, mas…

– Mas, o quê?

– Será que o que ela disse ainda tem validade?

– Assista e me diga você.

Assistiram.

– Vou tentar, mãe. Vou ligar, conversar e ver se consigo tirar toda essa… culpa e mudar a cabeça.

– Isso! Mas vá com garra, com vontade mesmo de mudar. Tome o telefone.

– Agora? Eu a vi hoje!

– E acabou a saudade?

– Não. mas…

– Ligue. Agora.

Ligou. Angélica ainda estava trabalhando, atendeu achando ser mãe de paciente.

– Alô!

– Oi, Angélica.

– Ana! Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

– Está, sim. Estava conversando com minha mãe, revimos um certo DVD e resolvi saber se o que foi dito nele ainda está na validade, depois de tanto tempo e mudanças.

– Verdade?

– Verdade.

– Ótimo! A validade do que foi dito tem duas opções que você pode escolher.

– Quais são? – Ana gelou…

– Indeterminada ou eterna. Qual você prefere?

– Eterna!

– Já jantou?

– Ainda não!

– Posso te pegar pra gente jantar? Sempre quis fazer isto com você. E mais um monte de coisas. Por hoje estou terminando e amanhã só tenho uma cirurgia às 16h00, se nada de grave ocorrer com nenhum dos pacientes e é o que espero. Então estarei com tempo, você pode?

– Estou de férias, posso sim.

Chegou às 20h00. Ana já estava cheia de medo de que ela desistisse, ou que se demorasse muito ela própria desistisse, mas nenhuma desistiu, era só ansiedade dos dois lados.

Foram a um restaurante razoavelmente cheio, mas tranquilo. Com freguesia costumeira e sem gritaria, onde dava pra conversar. Não falaram muito, nem no trajeto nem durante o jantar.

Parecia que tinham esgotado assuntos, quando na realidade a energia do amor negado as envolvia em uma atmosfera de cumplicidade, como se tudo tivesse sido dito, ou não precisasse ser dito, apenas presenciado. Olhos verificando cada gesto, cada piscada, cada respiração. Nem tiveram noção do que comeram.

– Quer ir pra casa comigo?

– Não mora mais com teus pais?

– Moro, mas tenho meu quarto!

– E Geórgia não divide o quarto contigo?

– Dividia, antes de se casar.

– Ela se casou? Nossa! Quando lembro da forma que a tratei quando a conheci achando que era gay, estereotipando com preconceito!

– Isso tudo já passou, mas ainda não respondeu minha pergunta.

– Tenho um filho, se lembra?

– Não vamos nos casar agora! Só quero tua companhia esta noite. Vamos vivendo um dia por vez para ver o que acontece. Eu gosto de crianças. Está com medo?

– Muito!

– Sabe que não farei nada que você não queira.

– Eu sei! Meu medo é do que eu quero e de não saber até onde vou conseguir ir, ou se vou falhar comigo de novo, se não vou me sabotar de novo!

– Eu não vou deixar você fazer isto, não desta vez. E, qualquer coisa, conto pra tua mãe.

Riram. Pagaram a conta e foram para a casa de Angélica. Entraram de mãos dadas, o mais silenciosamente que puderam para não chamar a atenção. Do quarto

– Já comeu, filha?

– Já mãe, boa noite. Só vou tomar um banho e vou pra cama. Se não me levantar cedo, posso dormir até a hora do almoço, tá?

– Tá bom, dorme bem.

Seguiram sorrindo, sorrateiramente até o quarto de Angélica, que agora tinha uma cama de casal, fechou a porta, coisa que não tinha o hábito.

Assim que fechou a porta e se virou, Ana, como tantas vezes sonhara, estava a um palmo de distância. Beijaram-se longamente, com a calma da certeza daquela noite. Beijos se sucederam, enquanto peças iam caindo até o contato de pele com pele que se esfregavam como bailarinas em sintonia com uma música que só elas ouviam. Uma mistura de passos, voltas e reviravoltas, um se afastar perto, em contraponto com o contato intenso. Idas e vindas de mãos, dedos, línguas e corpos até se exaurirem as saudades, os gozos, os líquidos e os prazeres. Não havia horário, não havia tempo, não houve sono, até desmoronarem vencidas. Dormiram abraçadas.

– Filha, já é…

– Ai, meu Deus! – Ana Lucia responde assustada e se cobrindo toda.

– Oi, mãe.

– Só vim avisar que está quase na hora do almoço. – Joana sorri.

– Já? Me levanto daqui a pouco, pode deixar.

– Tá bom. Oi, Ana, fico feliz por você finalmente estar aí onde está. – Fechou a porta.

Enquanto se preparavam:

– Como ela sabia que sou eu?

– Você acha que trago qualquer uma pra minha cama?

– Não traz suas… hã… namoradas aqui?

– De jeito nenhum! Meus pais moram aqui também e a casa é deles.

– Mas eu estou aqui!

– É, você está e espero que não seja a única vez.

– Eu já estou pensando é com que cara eu vou sair daqui agora.

– Com esta lindinha que você tem!

Terminaram de se arrumar, Angélica deu a mão para Ana e abriu a porta.

– Oi, meninas.

– Oi, mãe – Angélica responde, com beijo barulhento na face da mãe.

– Não sabia que você vinha, Ana, então não preparei nada especial.

– Imagina, dona Joana, eu já estou de saída!

– Nem pensar!

E Geórgia apareceu olhando alternadamente para elas.

– Oi, gente, está tudo bem?

– Oi, Geórgia! – Ana Lucia responde. – Acho que te devo desculpas pelas besteiras que pensei e falei a teu respeito.

– Oi, maninha. – Angélica fala. – Não sabia que estava por aqui. Cadê o pimpolho?

– Na sala, com o avô. – Abraçou as duas. – Está mesmo tudo bem?

– Por agora, está. Um momento por vez, Gê, é melhor que momento algum, não é?

– Tomara seja muito longo este momento.

Foram para a sala ver o tal pimpolho.

– I tiquiiiinhooo!

– Titia!

Um bonito menino de 4 anos veio correndo e se jogou nos braços de Angélica que o agarrou, beijou, fez cócegas.

– Oi, Raul. Bom dia, meu velho.

Raul se aproximou beijando-a na testa enquanto ela o abraçava.

– Ana!? Nossa, que surpresa! Benvinda, menina.

Abraçou-a também. Ana olhava para cada um que a cumprimentava e só sorria bobamente. Não pensava que pudesse ser bem recebida naquela casa e agora a tratavam como se ela fizesse isso sempre e se afastara por uns dias.

– Hei, Gê, cadê Frederico? – Angélica indaga.

– Está trabalhando. Obra nova que requer pressa, mas muito cuidado.

– Ana, este é Fabricio, o xodozinho da titia – Angélica apertava-o.

– É teu filho, Geórgia?

– O primeiro.

– Tem outro?

– A caminho. Espero que seja menina porque vamos fechar a fábrica. Dois está muito bom.

– De quanto está?

– 8 semanas, ainda não deu pra ver o sexo, acho que na próxima consulta já vou saber. E teu filho?

– Alessandro está bem. Preciso ligar pra minha mãe que ficou com ele desde ontem.

Ligou, tudo estava bem com o filho. Disse que logo iria pra casa e desligou.

Sentaram-se à mesa pra almoçar, conversando muito, era habitual quando estavam em casa. Desligavam tvs e conversavam, inclusive a criança que comia com ajuda, sentada entre a mãe e a avó.

Ana observava, tentando mesmo entender onde estava o pecado. Uma família amorosa, que as pessoas se apoiavam indistintamente, que se respeitavam, que se aceitavam como eram e pronto. Amor incondicional. Vendo-a tão pensativa, Joana resolveu se abrir um pouco.

– Sabe, Ana, estou contente que você e minha criança tenham se acertado finalmente.

– Nós ainda não acertamos nada, mãe. Muda de assunto.

– Tá atrevida, hein! Sabe, Ana, toda mãe quando vê que o filho é diferente do considerado “normal”, entra em parafuso por um tempo. Pensa que é por sua culpa, que falhou de alguma forma, pensa no sofrimento do filho. Mas depois, quando vai entendendo a diferença, embora se preocupe com as mágoas que pessoas preconceituosas, idiotas podem causar, torce demais para que o filho seja feliz. Caso contrário não é mãe, só foi a parideira. Não faz mais minha criança sofrer, não. Vocês podem ser felizes, principalmente porque têm o nosso apoio e o de tua mãe. Do teu pai eu não sei, mas pelo que Esmeralda diz, ele vai entender.

– Eu não sei o que dizer, Joana!

– Mãe, dá um tempo, tá. – Angélica interfere. – Obrigada, mas deixa ela fazer as coisas devagar, com calma, eu estou bem, pode acreditar. Vamos mudar de assunto?

Mudaram de assunto e ,logo depois do almoço, Angélica tinha que ir para o hospital. Ana aproveitou a carona.

– Desculpe minha mãe.

– Ela é uma mãe e tanto, tua família é muito legal.

– É, sim. Adoro todos eles, até meu cunhado.

– É aquele que vocês abraçaram aquele dia… bom…

– Ele mesmo! – Angélica responde rindo.

– Falei muita besteira, né?

– Falou sim, mas já ficou lá atrás, já faz muito tempo não importa mais.

– Eu juro que mudei um pouco, mas sei que tenho um longo caminho a percorrer ainda. Pode me ajudar?

– Claro! Só vai tentando se soltar, deixar fluir que as coisas acontecem.

Quando chegou à porta da casa da mãe, a realidade a atingiu. Respirou fundo, abriu a porta e entrou preparada para as perguntas e como faria, o que responderia se o pai perguntasse onde passara a noite, ou melhor, com quem.

– Oi, filha, foi ouvir piano?

– Mãe! Cadê Alessandro?

– Saiu com o avô e o teu irmão. Caio ia levar Arthur (filho de Caio, um pouco mais velho que Alessandro), disse para ele levar Alessandro também. Achei que você não teria dormido muito noite passada e ia querer descansar um pouco.

– Mãe!!!

– Não dá pra entender vocês! Se a gente que é mãe é durona, não deixa nada e é chata, vocês reclamam. Se a gente é mais aberta, como muitos dizem que gostariam que as mães fossem, vocês se espantam! Acho que vou trocar de filha porque a minha é muito “quadradinha”.

– Não se atreva – beijou a mãe. – Você, como sempre, tinha razão. Ela é ótima, a família é muito legal. Conheci o filhinho da Geórgia, que graça de criança!

– Cuide de sua vida profissional sim, de seu filho também, mas, por favor, seja feliz cuidando do lado emocional e pessoal, filha. Não deixa ela escapar porque é a ela que você ama, é ela a pessoa que pode te ajudar a ser fazer feliz e você a ela. Eu gostaria que fosse um bom rapaz, poderia ter sido o Edgar, mas não era pra ser.

– Ah, mãe, te decepcionei, né?

– A mim?! Não, porque não me importo com o que os outros vão pensar, o que vão falar. Eu sei como você é e que não foi feliz até hoje preocupada com balelas de religião. Eu sempre confiei em Deus e Ele jamais se preocupou com falatório, mas dá forças para sermos quem somos para seguirmos em frente, afinal Ele nos fez, a todos, diferentes uns dos outros para nos complementarmos, não para fazer guerra e forçar a todos serem iguais ao “vencedor” desta guerra imbecil.

– Mãe, você é a pessoa mais sábia que conheço.

– – Já almoçou?

– Já, sim, dona Joana fez questão.

– Foi à casa dela? Conta tudo.

– Fui e não vou contar tudo! – riram. – Afinal, tem coisas que a gente não conta pra mãe.

Sentaram-se no sofá, Ana recostou-se na mãe para continuarem conversando.

No domingo, novo encontro, novas certezas, novos planos para o futuro a três. Também as dúvidas sobre o tempo que deveriam esperar para realizá-los, como a criança poderia encarar a mudança, os problemas que poderia enfrentar na escola, como protege-lo, como contar… coisas demais. Um mês se passou e nada ainda fora decidido, a não ser os encontros quase diários, o não permitir a instalação da saudade.

O pai de Ana não fez nenhum escândalo quando soube, a mulher já o prevenira antes. Não se entusiasmou, mas não agrediu, não falou quase nada além de dizer que tinha entendido e que não faria nada para a infelicidade da filha.

Até mesmo Edgar entendeu o porquê de seu casamento com Ana Lucia não ter dado certo e prometeu não interferir ou tentar tirar Alessandro da mãe. Continuariam como até então.

Ana Lucia encontrou uma das moças do antigo grupo da Igreja, aquele que frequentara quando criança, sob orientação do padre fundamentalista. A mulher comentou sobre seu sumiço e a convidou para uma reunião na próxima sexta-feira à noite. Pela insistência, acabou concordando.

A mãe se preocupou com a tal reunião e o que poderia mudar na vida da filha que agora estava tão feliz. Angélica ficou apavorada pelo mesmo motivo. Ana permanecia tranquila, tinha observado mais as pessoas e situação, tinha lido mais, aprendido mais, entendido mais que uma jovem impressionável e sugestionável.

A reunião começou às 19h30min. em ponto, como combinado. Ana foi cumprimentada com ênfase, como alguém que estava de volta por escolha, já que a mãe a havia tirado de lá. Uma das mulheres iniciou a reunião.

– Nossa! Que bom que voltou, Ana Lucia, temos que reunir maior número de pessoas possível e tomar uma atitude contra tanta pouca vergonha que vem acontecendo no país.

– Vamos falar sobre política hoje!? – Ana Lucia indaga.

– Não, irmã! Esse assunto não nos cabe. Como sempre, vamos falar sobre a imoralidade, sobre esse bando de sem vergonhas que escolhem fazer sexo com pessoas do mesmo gênero, ou tanto como homens como com mulheres.

– Ouvi dizer que não é opção, escolha, mas que não conseguem impedir – disse uma das mulheres presentes.

– Isso é uma doença, um mal que precisa ser cortado pela raiz. Se alguém quiser, pode procurar ajuda, ao invés de praticar ato tão inominável e…

– Desculpe, mas você disse um monte de coisas que realmente não conhece e que política não nos interessa? – Ana Lucia interrompe.

– Deixamos a política para os políticos, não entendemos os meandros dela além do…

– Quer dizer que não é “imoral” eles mentirem para conseguir votos de pessoas desinformadas e incautas, – mais uma vez, Ana Lucia interfere, –  eles corromperem o país, roubarem o dinheiro público, deixarem o povo sem ter realizado seus anseios básicos, como educação, saúde, segurança e mais uma série de coisas, e tudo isto não interessa às pessoas aqui reunidas?

– Bem… não é bem assim.

– Você quer dizer que eles não escolhem fazer isso e nós escolhemos ignorar isso. Então me responda uma coisa. Quantos gays você conhece, para afirmar tão categoricamente que eles “escolhem” ser gays e não nascem assim, que é normal? – Questiona Ana Lucia.

O padre interveio.

– Não estamos dizendo que não há muitas coisas imorais. Há a prostituição, a…

– A pedofilia. – Ana Lucia continua. – E o senhor padre? Quantos gays conhece, com quantos conversou abertamente para ver como eles se sentem, porque “escolhem” serem tratados como aberrações, chegando às vezes ao suicídio?

– Os que vieram falar comigo, foi para pedir ajuda para sair disso!

Uma das mulheres toma a palavra.

– Se vieram pedir ajuda é porque não conseguem sair, é porque não é uma escolha e o senhor atacou meu irmão com este tipo de ajuda quando ele veio pedir socorro!

– Falei com seu irmão como falo com todos eles. Que é pecado, uma abominação e que devem abandonar.

– Ele abandonou foi a família, ou foi abandonado por ela por causa de padres como o senhor que nem família tem, mas fica dando conselhos sobre vivências que não tem conhecimentos. Boa noite a todos, porque vou procurar meu irmão e dizer que o amo, que sinto sua falta, o que não deveria ter deixado de fazer quando soube. E respeitá-lo tal qual ele é. Chega de ouvir tantas ideias medievais.

Já tinha se levantado na empolgação ao falar, simplesmente saiu e mais cinco pessoas a acompanharam.

– Não sei o que em você mudou tanto, Ana Lucia! Sempre conversamos antes sobre a imoralidade sexual e você concordava. Foi tua mãe que mudou tua cabeça?

– Não, padre, não foi minha mãe, que é uma pessoa inteligente e com visão. Foi a vida que me mostrou finalmente, que suas ideias não têm nada a ver com religião. Foi meu filho que, agora com 5 anos, demonstra trejeitos delicados e muita gente já acha que ele é gay.

– Leva ele a um médico, no psicólogo, traz ele para a Igreja! Isso é pecado e você como mãe tem que fazer tudo para impedir. – Disse a mesma senhora que começara a reunião.

– Minha senhora! Isto não é doença. É só diferente da sua sexualidade, se é que a senhora tem, porque em um livro do século I, está escrito que sexo é para procriar. Se meu filho for gay terá meu apoio e todo meu amor.

– A Bíblia não é do século I!

– Eu sei, isso foi ironia! Estou querendo dizer que são coisas escritas para uma sociedade machista, atrasada e preconceituosa. Se for seguir o que está escrito nestes textos ditos “sagrados”, as mulheres ainda se casariam com quem lhes fosse mandado, aguentariam tudo que o marido fizesse, teria pencas de filhos e só cuidariam do lar. Não trabalhariam, não estudariam, e continuariam “inferiores”, como grande parte dos machos acha que é verdade.

– O que você veio fazer aqui, Ana Lucia? – o padre pergunta.

– Eu só vim porque fui convidada e embora tenha dito não repetidas vezes, a insistência foi tanta que resolvi ver se algo tinha mudado. Pelo que vi, continua tudo igual e minha mãe tinha e tem razão. Era ridícula a forma de falar, de agir, por favor, comecem a pensar, a ver as coisas de forma diferente, porque estão errados. Tenho minha fé, meu respeito a Deus e só Ele tem o direito de julgar. Boa noite.

No dia seguinte, Angélica saía do plantão, quando foi surpreendida com a presença de Ana junto a seu carro no estacionamento do hospital.

– Bom dia, amor.

– Ana! Tá tudo bem?

– Tá tudo ótimo! Hoje vou te deixar em casa e vou começar a procurar um lugar pra gente.

– Sério? Se decidiu?

– Ontem, na reunião. Ouvi tanta bobeira que me ajudou a tomar uma atitude. Eu quero uma nova família, diferente sim da padronizada, mas será escolhida. Quero uma vida com você, isto é, se me quiser e ao meu filho.

– Seu filho? Hum, não sei, uma criança.

– Ange!

Angélica ri.

– Claro que quero, amor, o pacote todo, até dona Esmeralda se quiser vir morar com a gente.

– Ela já sabe que vamos sair da casa dela de novo, mas desta vez ela apoia e disse para não irmos muito longe porque vai nos visitar sempre, que não vamos ficar livres dela, pra continuar ajudando com o Alê, essas coisas.

– Preciso comprar um presentão para minha sogra que eu adoro!

Foram para casa de Angélica para comunicar à família sobre a decisão.

Encontraram um apartamento que agradou a elas e às mães das duas e com a ajuda da família de Angélica, puderam compra-lo. Deixaram do jeito delas. O piano tinha seu canto, pois Ana gostava de ouvir Angélica tocá-lo e cantar pra ela ou só tocar.

Alessandro ganhou mais um primo, que embora um ano mais novo o defenderia sempre, e viriam a ser melhores amigos, outro avô e um tio para os passeios e esportes. Uma nova avó para mimá-lo.

Dois meses depois de estarem morando juntas, após colocarem Alessandro para dormir, Ana mostrou o quanto mudara. Saiu do banho com uma camisola de fechar o comércio, colocou uma música romântica e veio dançando até Angélica que a admirava. Quando a beijou, alguma coisa na boca dela foi empurrada para a de Angélica. Pararam o beijo e Angélica retirou o objeto da boca e enquanto segurava olhando incrédula para a aliança.

– Casa comigo? – Indaga Ana Lucia.

– Casar, casar? No cartório e tudo? Pra valer?

– É, no cartório e tudo. Pra valer, até que a morte nos separe, ou não. Nunca se sabe o que vem depois, né!

– Quando?

– Quando o quê?

– Que dia a gente vai se casar?

– Que susto! Depois que os papéis ficarem prontos. A gente tem que dar entrada na documentação primeiro.

– Então amanhã já vamos ver e…

– Ótimo! Vem pra cama descansar que, a partir de amanhã, teremos uma vida nova, mais unida e legalizada. Que reclamem, que falem, que ignorem, não importa. Já perdi muito tempo da minha vida preocupada com preconceitos alheios. Vou seguir os bons conselhos maternos e os religiosos de verdade. Não fazer mal a ninguém, amar de verdade e ser feliz. O resto é silêncio na minha mente, no meu coração e na minha alma.

O casamento foi simples, apenas as famílias, com Geórgia e Frederico como testemunhas. Um jantar em um restaurante para comemorar, mas que aproximou mais as famílias.

Alessandro seria um adulto sensível, inteligente, sempre com Fabrício como escudeiro, mas apaixonado por mulheres. Mais uma vez, as aparências enganariam os pré-julgadores que atacam os diferentes deles. Um dia, encontraria a mulher a quem se esforçaria para fazer feliz e daria netos às mães.

FIM.



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