HALLOWEEN

31 de outubro. No ocidente se comemora o Dia das Bruxas, ou Halloween, em inglês. Nos Estados Unidos, uma brincadeira infantil, com todos fantasiados, pedindo doces nas portas das casas. Na Europa, a tradição antiga celta ainda resiste aos tempos modernos e, apesar das pessoas fantasiadas pelos bares, o verdadeiro sentido do dia ainda é festejado.

O Samhain foi criado como uma festividade do fim da colheita, do ciclo das estações e, essencialmente, como o dia no qual o véu entre os mundos é quase inexistente.

 É um dia de agradecer o que se recebeu e entregar seus anseios para que o universo os acolha, se for para o bem de todos. E assim, aquela família se preparava, mais uma vez, para o ritual.

— Pronto, amor, a casa já está limpa! Só falta organizar a parte do quintal onde vai ser o ritual. – Disse Maria.

—  Já pegou o caldeirão, o castiçal e as velas? – Indagou Júlia.

— Ainda não, vou limpar as caixas de areia dos gatos, trazer a mesa e, na sequência, já pego tudo, pode deixar. – Replicou a morena.

— Quando terminar, me chama pra ver se está tudo certo, tá?! – Pediu a cozinheira.

— Ih, não confia em mim? Só porque a gente trocou hoje e você tá na cozinha, eu não fico indo aí ver se a comida tá boa… – Brincou a faxineira da vez.

— Não é isso! Você faz mil coisas ao mesmo tempo, e na hora do ritual sempre tá faltando alguma coisa. Fiz até um checklist para você esse ano. Você tá seguindo? – perguntou Júlia.

— Onde você quer que eu coloque a mesa, no mesmo lugar do ano passado? Onde você guardou a adaga? E as nossas “varinhas”? – disparou Maria.

 — Por que mesmo a gente trocou de atividades esse ano? Se eu vou ter que fazer tudo… – Rolou os olhos.

 — Opa! Pode parar por aí! Eu tô aqui ralando nessa faxina; já limpei a casa inteira, lavei o quintal, tô carregando esse caldeirão pesado, e você vai ter que fazer tudo? – Respondeu a esposa indignada.

— Ai, que bruxinha mais bravinha…  Assim, os convidados vão chegar e nós estaremos bagunçando o quarto, ao invés de terminar de organizar as coisas por aqui. – Falou baixo, ao pé do ouvido da outra.

— Eu… Mirelo, sai daí, gato!

Correu pra tirar o animal amarelo e gordo de cima da pia. Mas, a verdade é que queria sair daquele contato, senão esse ritual não aconteceria, as visitas iriam dar com a cara na porta, era certeza!

— Fugindo da raia, amor? – Troçou Júlia, voltando para sua abóbora recheada.

—  Nunca, bebê! A questão é que não vamos nos perdoar amanhã, e você sabe disso. Vai ser um ano inteiro de lamentações. – Relembrou Maria.

– Verdade. Volta pra labuta, então! – Sapecou uma bitoca e saiu. – As coisas que você perguntou mais cedo estão na porta da esquerda da parte debaixo do armário que fica no quarto de visitas. – completou a outra.

— Já pego, só vou posicionar o caldeirão e a mesa. Ah, já coloco as cadeiras aqui, não esqueci, viu?

Após alguns ajustes por parte de Maria, a escolha da toalha por Júlia, o ambiente estava montado. Faltavam os adereços. Uma panela com as velas, adaga, incensos e “varinhas”, bem como o castiçal completou a decoração. Faltavam as folhas de papel e canetas.

 O aroma do molho de camarão, que seria o recheio da abóbora, impregnou o ar, que já estava adocicado com o cheiro das maçãs e sua calda. O jantar estava praticamente pronto; o aparador com pratos, talheres e copos arrumado. A cerveja já estava gelada. Faltavam somente alguns detalhes.

Maria foi para o banho e Júlia se dedicou a acender os incensos, as velas pelo quintal e conectar a playlist preparada especialmente para o evento.

Após algum tempo, a morena saiu do quarto já de saia, sandálias e bata, abotoando o colar. Pediu pra outra se apressar, os amigos chegariam em breve. Dito isso, seguiu seu rumo, cheirava a cebola e alho. Precisava realmente se lavar.

O interfone tocou quando Júlia ainda se arrumava, o que não a impediu de cumprimentar Marcos, Jorge, Sílvia, Renata e Juliana.

 — Que delícia esse incenso! Qual o aroma, Maria?

 — Sândalo, Rê.

 — Cadê a Mara, Ju?

 — Ai, trabalhando… Ela não conseguiu folga hoje. Como coincidiu com o feriado emendado no início da semana, o pedágio está lotado, não tem como ela deixar a gerência para outra pessoa.

— Que pena… Fazer o quê? Ossos do ofício. – Entrou no assunto Júlia já encaminhando os visitantes para a área externa e guardando a bebida trazida.

— Todo mundo lembrou de trazer a varinha? – indagou Maria, mostrando a colher de pau que tinha sido da avó.

— Opa, tá na mão! – exclamou Renata, tirando a caneta tinteiro da bolsa.

— Ainda está cedo, gente. Faltam duas horas pra começar o ritual. Vamos tomar uma cerveja? – sugeriu Júlia.

— Só se for agora! – Disse Marcos, pegando as latas na geladeira e distribuindo a todos.

— Eu vou de vinho – Juliana mostrou a garrafa. – Tem taça e saca-rolha? Que pergunta! Lógico que tem! – Gargalhou. — Nos lugares de sempre?

Maria assentiu e Juliana partiu para a preparação da sua bebida.

 — Ai que fofura esses gatos! Nina, volta aqui! Por que ela não quer vir comigo, Júlia? – Jorge reclamou.

— Talvez por que você os aperte como se fossem cachorros? – riu em resposta.

— Isso é sacanagem! Olha a Lucy lá deitadinha na bolsa da Rê! Isso é preconceito… – Fez bico o arquiteto.

— Ai, bicha, para de afetação! Deixa a gata. Uma hora dessas, ela vem pro seu colo. Aliás, talvez o Mirelo venha. Olha lá que rebolado na hora de andar. Certeza que esse gato é viado. – Brincou Marcos.

— Para de zoar meus gatos! E se ele for gay, qual o problema? Ninguém aqui pode falar nada! – Saiu em defesa Maria, rindo muito.

O clima de brincadeiras continuou por mais algum tempo, juntamente às novidades musicais das divas, até que Júlia colocou alguns gravetos, cascas de frutas e talos de ervas aromáticas secos dentro do caldeirão. Todos entenderam que a hora do ritual  chegara.

 Marcos automaticamente mudou o estilo de música, para que todos entrassem no clima. Maria distribuiu duas folhas sulfites em branco e uma caneta para cada convidado, reservando as suas e as da esposa.

— Tudo bem, pessoal, vamos começar? Alguns já participaram, outros não. Então, vou explicar o que vão fazer agora. Em uma das folhas, escrevam o que vocês querem tirar de suas vidas. Pode ser um vício, uma pessoa, um sentimento… Cada um faça aí sua reflexão. Ao pé da folha, escrevam: “se for para o bem de todos”.

Os amigos se entreolharam e iniciaram a escrita. Uma em cima da bolsa, outros levantaram para se apoiar na mesa, no aparador ou na porta da geladeira.

Depois que todos finalizaram a escrita, Júlia voltou a falar:

— Agora, na outra folha, escrevam o que desejam atrair para suas vidas. Não se esqueçam de repetir a frase no final: “se for para o bem de todos”.

Ao término, Maria, que somente auxiliava, acendeu as velas, de cores diferentes, assim como os galhos secos no caldeirão. O fogo tímido contrastava com o vento que debatia o vestido e os cabelos grossos da presidente do rito, que iniciou a oração em uma língua desconhecida. Ela solicitou que todos pegassem suas “varinhas”, objeto que simbolizasse cada um deles, e se posicionassem ao redor do caldeirão. Os mais variados itens foram sacados: colher de pau, cajado, tesoura, caneta tinteiro, martelo, compasso, chave de carro, carvão de desenho.

 — Rasguem os papéis daquilo que querem retirar de suas vidas e joguem no fogo. À medida que eles queimarem e liberarem a fumaça, façam gestos circulares no ar, como se tivessem ajudando a fumaça subir. Dessa forma, o universo entenderá sua intenção de sublimá-los de suas vidas.

 De repente, o fogo baixou, praticamente se apagou. Maria, pensando na lógica da churrasqueira, tentou abanar para que o oxigênio melhorasse a combustão. Nada feito!

Juliana pegou a garrafa de álcool 70° e despejou por cima dos papéis. Acendeu um fósforo e jogou dentro da panela. Acendeu e logo ele minguou.

Os participantes do ritual ficaram assustados. Como isso poderia ser? Álcool na madeira seca e nada de fogo? Aquilo era anormal. Muitos papéis ainda estavam inteiros. Cada um deu uma ideia diferente para reacender as chamas e nenhuma delas resultou positivamente.

— Pessoal, chega! Nossa aura está muito pesada e, com certeza, o que está escrito nessas folhas é inquietante. Precisamos mudar nossas vibrações para que o ritual seja bem sucedido. – Júlia suplicou.

Ela pediu que mais incensos e velas fossem acesos, no que foi prontamente atendida. Em seguida, fez um gesto para que todos dessem as mãos. Colocou uma música diferente e começou um passo, forçando os companheiros a girarem, com passos ritmados, de acordo com a marcação da flauta daquela canção ancestral.

Ao final, todos tinham um sorriso leve no rosto. Júlia se abaixou e acendeu novamente um dos papéis. Eles começaram a queimar lentamente, mas sem a ajuda de nenhum outro combustível. O fogo era refletido nos olhos dos amigos, atônitos com o fenômeno.

 — Agora, rasguem os papéis do que vocês querem atrair para sua vida e lancem aí. – A presidente do ritual pediu.

Todos o fizeram e, subitamente, a chama cresceu e ultrapassou as bordas do caldeirão. Acompanhando os gestos do casal anfitrião, elevaram aos céus seus desejos, boas energias concentradas em suas “varinhas”.

Após alguns segundos, o fogo se extinguiu e só restavam cinzas. Jorge, com os olhos arregalados, não se conteve:

— Gente, fala pra mim que eu não alucinei, por favor! A gente ficou aqui na maior tensão, tentando botar fogo nas coisas ruins e nada! Aí, colocamos as coisas boas e fez “fuuuu”, queimou, acabou, em segundos!

 A risada geral tomou conta do ambiente! Os amigos estavam aliviados.

—  Vem, me ajuda a enterrar essas cinzas, viado! – Chamou Maria.

— Ah, não! Não vou sujar minha mão, sapatão! Pede “pro” Ju, tenho certeza que ela não vai ligar de fazer um buraco pra você! – Falou Jorge afetado.

— Já tô indo. – Disse Juliana com uma pá na mão.

Logo, enterraram as cinzas e colocaram uma maçã espetada de cravos por cima da terra, para que os espíritos pudessem se alimentar.

— Feliz ano novo! Um brinde! — Puxou Maria, depois de lavar as mãos. Os copos e taças se tocaram, abraços foram distribuídos entre os convidados.

A música animada voltou e o jantar foi servido. A festa ainda durou um bom tempo, como um réveillon.

— Maria, esse tempero hoje tá diferente. O que você colocou nesse camarão na moranga? – Inquiriu Sílvia.

— Pergunta pra Júlia, quem cozinhou dessa vez foi ela. Eu só fiz o requeijão.

— Te mando a receita, Silvinha. – Piscou.

Findada a festa, os amigos se despediram, chamando aplicativos de táxi.

As anfitriãs, rindo dos amigos gays que ainda discutiam para qual balada iriam, fecharam o portão. Guardaram o resto da comida, colocaram ração para os gatos. Nina, a gata preta, surgiu de seu esconderijo e deitou no colo de Maria, que estava sentada em uma cadeira de praia de madeira, olhando para o céu que, anteriormente estava estrelado, e começava a mostrar nuvens carregadas.

— Acho que vai chover – Júlia comentou, sentando-se na cadeira ao lado e fazendo carinho na gata.

— Também acho. O vento já mudou. Melhor tirarmos essa mesa e cadeiras daqui, né? – Perguntou a esposa.

— Vamos. Antes que o caldeirão se molhe.

Retiraram os adereços e móveis para uma área coberta. No dia seguinte, arrumariam toda a bagunça. Receber gente era maravilhoso, porém dava trabalho, era o que pensavam. O que nunca as impediu de fazer inúmeras comemorações.

Voltaram para as cadeiras e, de mãos dadas, receberam a chuva que veio para lavar o ano que se findava, purificava o coração e o espírito para o que se iniciava. Elas anteviam tempos difíceis, teriam muito trabalho para ajudar as pessoas, como sempre fizeram.

FIM!

 

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4 Responses to HALLOWEEN

  1. Adorei o conto e também a informação sobre o 1/11 na tradição celta. Parabéns Naty

    P.S.:esse pode render uma boa história

    • Obrigada, Lil, pelo seu comentário! É um ritual bem interessante, traz sempre boas energias e resultados.
      Engraçado você dizer isso, pois a Nefer também achou que poderia render uma boa história. Quem sabe um dia…
      Abraços.

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