TE VI

Revisão: Nefer e Carolina Bivard

A primeira vez que a vi, foi num bar lésbico de nome bem estranho: “Álcool Puro”. Foi, literalmente, a primeira vez que fui em um bar gay. Ela vestia uma blusa de crochê preta, com detalhes em couro, na cabeça uma boina vermelha, meio de lado. Estava acompanhada de moças vestidas de roupas indianas, um tanto hippies. Eu fiquei presa naquela visão e, uma amiga da minha cidade, disse:

– “São as meninas da psicologia.”

Eu que, depois de ter sido uma hétero bem galinha, quando virei sapatão não sabia nem onde colocar as mãos, ao conversar com uma mulher. Era até cômico, se não fosse trágico para minha vida amorosa. Logicamente, a espiei à distância, e nada fiz. 

O tempo passou e, um dia, eu fui a um show que a prefeitura da cidade promoveu para a população. A estrela? Ninguém menos que nossa querida Rita Lee! Durante o show, uma moça foi levantada por um rapaz e colocou um chapéu de bruxa na cabeça dela. A frase da cantora ao abaixar para recebê-lo foi:

– “Isso me lembra mutantes!”

E depois cantou algo da antiga banda animadamente.

No dia seguinte, vendo a reportagem na TV, pude enxergar a autora do feito: a mesma moça que havia visto no bar.

O tempo continuou passando enquanto a faculdade acontecia, assim como a descoberta da minha sexualidade. Um dia, em uma festa no campus, a vi novamente, com as “meninas da psicologia”. Outra vez, não fui capaz de conversar com ela.

Um colega de sala vivia dizendo que eu adoraria conhecer a sua colega de república, e eu nem dava bola.

A vida seguiu, mais de um ano se passou, e eu me encantei por algumas mulheres. Uma delas era aluna de uma amiga, que encontrei num show no shopping da cidade. Nana Caymmi, com um copo de Campari na mão e a companhia de um piano, cantou maravilhosamente bem. 

Ao final, encontrei com minha amiga, a tal aluna e a moça da psicologia. Ela vestia uma camisa branca e uma gravata do Piu-Piu. 

Outro calendário ganhou a parede até que em um outro bar nos vimos. Era o ponto de encontro dos pseudo-loucos ou hippies de boutique, como diziam alguns. Uma casa antiga no centro da cidade, com a frente toda grafitada. Uma pequena escada dava acesso à entrada. Eu e a mesma companheira de todas as baladas lés passamos pela porta e pisamos no assoalho que rangia com a madeira velha. Demos a volta pelo salão, saímos para a área externa. 

Uma mesa animada me chamou a atenção ao longe e só pude enxergar aquela menina. Desta vez, não me recordo da roupa que ela vestia, mas da minha, o que é uma raridade: calça xadrez, camiseta cáqui da Adidas, com listras em azul royal, e boina na cabeça. Nos vimos mais uma vez, nossos olhares se prenderam por alguns instantes. Tive a sensação de que enfim nos falaríamos. Mas, não aconteceu. A noite foi ótima, só isso.

Os dias se sucederam, e nos encontramos numa “venda-bar”. Eu, comprando uma lata de milho para um jantar com as colegas de faculdade e ela jogando baralho com a amiga, a aluna daquela minha amiga do show da Nana Caymmi. Eu estava interessada nessa tal aluna e tentei impressioná-la como podia. Um total fracasso! Não prestei atenção na moça da psicologia naquele dia.

O encantamento pela menina de cabelos encaracolados, que ainda era aluna do ensino médio, me fez pedir à sua professora, minha amiga, que a convidasse para sua apresentação no karaokê. Era uma competição que valia a gravação de um CD, o que era muito cobiçado pelos cantores amadores da época. Seriam pelo menos três fases: eu teria tempo de conquistá-la!

A primeira foi fácil de vencer. Eu estava lá em companhia da morena e da moça da psicologia. O papo desinteressante e pueril, mais o fato dela ter se apropriado da minha comanda, me fez ficar desconfiada. 

Por algum motivo, a moça da psicologia me chamou para cantar E.C.T. da Cássia Eller. Depois de alguns gin tônicas, fui capaz de aceitar o convite, já que minha voz não é das melhores. Nos divertimos muito no palco e enfim, descobri seu nome. Conversamos até o fim da noite e, de repente, me dei conta de que aquela que, a princípio, tinha minha atenção, estava bêbada em algum canto, durante meu papo animado, sobre tudo e nada, com a menina da psicologia.

Na semana posterior, na segunda  fase, bem sucedida por parte de minha amiga, nos encontramos e o clima foi o mesmo. 

Porém, me chamaram para a extração dos dentes do siso, na faculdade de odontologia. Na sexta-feira anterior à final da competição eu retirei dois, dos quatro dentes inclusos. Fui para a casa dos meus pais, no interior para me cuidar. No domingo, desconsolada por não estar bem o suficiente para voltar e encarar a final, liguei na casa da adolescente, já que não tinha o número da aspirante à psicóloga. 

Eis que, durante minhas lamentações por não poder comparecer ao evento, a moça puxou o telefone e disse:

– “Pode vir que tem uma psicóloga aqui de plantão para cuidar de você.”

Nada mais foi necessário para que minha decisão estivesse tomada. Desliguei o telefone e comecei a jogar roupas a esmo dentro da mala. Minha mãe, confusa, me perguntou o que estava acontecendo. Eu disse que estava voltando para casa. Nem me atentei aos mil xingamentos que ela proferiu até a minha saída com o carro da garagem. Me pus na estrada rapidamente, empolgada em encontrar aquela moça e, quem sabe, beijá-la.

Entretanto, tinha outro fato importantíssimo o qual eu havia ignorado até aquele momento decisivo: eu tinha uma namorada na cidade vizinha a dos meus pais. Meu relacionamento estava falido, há algum tempo, e eu não tinha coragem de terminar. Uma chuva e a determinação de ficar com essa moça me fizeram resolver este impasse.

Mil borboletas dançaram em meu estômago pelos duzentos quilômetros seguintes. Chegando em minha república, todas as colegas se surpreenderam com o fato de eu ter voltado tão cedo, com o rosto ainda um pouco inchado da cirurgia. Um banho rápido, uma roupa limpa, um perfume eram o suficiente para ganhar a rua.

Quando cheguei ao karaokê, os finalistas já cantavam. Um beijo no rosto, abraço longo, o calor do corpo dela no meu. Suspirei. A noite seria longa. Entre uma cerveja e outra, conversamos olhos nos olhos, olhos nas bocas. O clima era de flerte. As mães de nossos amigos estavam presentes, tão na torcida quanto nós. Infelizmente, nossa amiga não foi a campeã.

Ao final da noite, levei as senhorinhas em suas casas, com a moça da psicologia ao meu lado, ao som da fita cassete de Everything But The Girl. À luz das estrelas, no meio do campus, nos beijamos pela primeira vez. Ela, com medo de me machucar, e eu nem ligando para os pontos da cirurgia.

Se eu pensava que vê-la em vários lugares era uma coisa minha, eu estava muito enganada. Descobri que ela também me via há tempos. E que era dela que o meu colega de classe falava. 

Pensando agora, depois de vinte e um anos juntas, não me lembro da primeira vez que fizemos amor. No entanto, me lembro da primeira vez que ela cantou pra mim, enquanto fazíamos amor, e isso me marcou profundamente. Era uma música que, depois, soube ser de autoria do Fito Paez, mas que no dia era de interpretação do Caetano Veloso: Un vestido y un amor. No refrão, ela cantou algo que era o início da nossa história:

– “Te vi, te vi, te vi… Yo no buscaba nada y te vi (te vi, te vi, te vi… Eu não procurava nada e te vi)”.

FIM!

A imagem da capa foi desenhada por pikisuperstar / Freepik

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