Valência

Capítulo 1 – A terra que me aconchega

Meu pequeno apartamento, de quarto e sala, era aconchegante e do tamanho da minha necessidade. Nem mais, nem menos. Eu havia alugado, depois de muito procurar por entre as vielas da cidade velha. Tenho a forte crença de que sou do avesso. Quando olho o que já vivi, percebo que na minha vida fiz tudo de trás para frente e isso me incomoda. O apartamento é um exemplo claro. Quando resolvi que queria ficar nesta cidade, primeiro procurei um lugar para abrir meu negócio, para depois procurar um local para morar. Dormi meses num saco de acampamento, espremida entre a estante de mantimentos e um freezer na parte de trás da pequena mercearia. Esse é o meu negócio. Uma “tienda de comestibles” como dizem por estas bandas.

Apaixonei-me por Valência, assim que coloquei os pés na cidade, principalmente a parte antiga. Sabe aquela sensação de que sua alma é muito velha? Esse era o meu sentimento, diante da minha vida. As construções ancestrais dessa parte da cidade pareciam me remeter ao meu verdadeiro lugar. Era como se aquele chão, aquele ar, aquela vida me pertencesse.

Os valencianos, assim que você os conhece, não são um poço de simpatia. São reservados, mas à medida que vai convivendo e passa de alguém totalmente desconhecido para razoavelmente conhecido, eles se abrem, interagem e são bem agradáveis de conviver. Uma das coisas que mais me chamou atenção, assim que me instalei, é que se podia ver nas praças, nos bares e em vários locais públicos, homossexuais que não se importavam em andar com seus parceiros demonstrando o seu carinho. As pessoas não ligavam se um casal de homossexuais estava caminhando de mãos dadas ou não. A lógica era simples. Para aquele povo, se estava na lei, não havia o que retrucar. Não que não houvesse o preconceito. Havia, mas não iam contra a lei, já que poderiam ser presos por um pequeno deslize da boca. Bastava se falar algo enviesado para pessoas casadas legalmente, que a polícia poderia ser acionada e o ofensor preso.  O preconceito se dava dentro das famílias, principalmente as tradicionais. Na maior parte das vezes, mesmo em família, o preconceito era velado. Velado, mas opressor.

Uns meses depois de me estabelecer, conheci Lúcia. Uma ehola de olhos negros e pele canela, como a música cantava. Ela era do tipo livre e fogosa. A conheci, pois fornecia legumes e verduras frescas para abastecer seu bistrô. O estabelecimento dela também era pequeno, mas a localização e a boa comida, nunca o deixava sem movimento. Ele estava à poucos metros da “Plaza de la Reina”, em uma rua transversal.

Numa noite ela ligara para meu celular, pedindo-me para a acudir. Não calculara que, naquele dia, o movimento fosse tão forte a ponto de fazer alguns produtos, de pratos principais, acabarem. Sai de meu apartamento, passei na mercearia e levei os produtos. Ela pediu para espera-la e disse que faria um prato especial para me agradecer. “Eu insisto. Você não sabe como me ajudou hoje”. Foi o que ela disse, quando eu falei que não precisava.

Os clientes foram embora e ela dispensou seus poucos funcionários, pelo avançar da hora. No dia seguinte, se incumbiria de arrumar melhor o estabelecimento. Fez o tal prato e comemos, tomando vinho e rindo de piadas e situações que ela contava, numa conversa amigável. Ajudei-a a levar a louça para a cozinha e quando me virei para perguntar se ela queria ajuda para arrumar o restante, minha boca foi assaltada sem qualquer melindre ou sutileza. Eu estava há meses sem me relacionar sexualmente e já estava subindo pelas paredes. Ela não sabia em que estava se metendo, pois se ela imaginou que eu pararia por ali, se enganara.

Empurrei-a através do vão da porta, levando-a para o salão de jantar, até que ela encostasse em alguma mesa. Segurei-a pela cintura e fiz com que seu corpo se apoiasse. Nesse ponto, os beijos já estavam cheios de tesão e ela gemia sem pudores. Eu me enfiava por baixo de sua saia e não demorou muito para ela gozar, agarrando meus cabelos em desespero. Não nos tornamos namoradas. Ela não queria e muito menos eu. Nos tornamos amigas, confidentes e, eventualmente, nos saciávamos, para manter a nossa sanidade e a nossa solidão suportável. Está certo que a solidão era por escolha, tanto minha quanto dela.

Ela já fora casada e se mudou para Valência para fugir do marido, que não permitia que ela vivesse em paz, depois da separação.

****

— Você vai dar aula hoje, Olívia?

— Não, só amanhã. Eu ainda tenho que me preparar para mais um embate com a senhora Eva Gallardo.

Eu e Lúcia estávamos na cama, depois de três semanas que havíamos nos prometido que não transaríamos mais. Tínhamos conversado e depois de meses nesta condição de “ficantes”, viramos tão confidentes que temíamos estragar essa nova relação. Não deu certo. Eu e ela confiávamos tanto, uma na outra, que até para o sexo casual nos dávamos bem.

— Não entendo por que você foi se meter em dar aulas de Jiu-jitsu no clube, se tem seu próprio negócio. A sua mercearia é lucrativa. Não precisa do dinheiro das aulas.

— Lúcia, o Jiu-Jitsu sempre foi um prazer para mim. Dar aulas no clube foi como voltar a ter contato com a luta. Só não esperava que, no terceiro mês, um aluno que já era praticante, ganhasse um torneio regional.

— É um clube conservador, Olívia. Independente se o garoto já praticava ou não, você ficou em evidência. Para um local onde formam muitos cavaleiros e amazonas profissionais e esgrimistas de ponta, imagina ter o nome vinculado a um esporte como esse?

— O que você quer dizer com isso? Jiu-jitsu é um esporte como outro qualquer. – Falei indignada.

— É uma luta em que a imagem está, grande parte das vezes, vinculada à MMA. Eu não acho nada de mais, só que os sócios pomposos do “Clube Aragon” não gostaram disso.

— A diretoria está gostando. Está atraindo jovens.

— Está vendo? Você disse que está atraindo jovens. Você acha que famílias como a Gallardo, Caballero, Boza e Augustin iriam gostar de seus filhos praticando Jiu-Jitsu em vez de hipismo e esgrima?

— E o que é que tem?

Lúcia gargalhou.

— Desculpa Olívia, eu não sou daqui de Valência, mas em minha cidade, também tinha um clube assim. Eles são elite. Eles querem seus filhos em esportes nobres. Eu admiro a senhora Eva Gallardo porque ela teve peito para falar na sua cara o que eles pensam. Pelo menos, não é dissimulada como os outros.

— O problema com ela é outro. Ela foi esgrimista e atuou pelo clube. Ganhou medalhas e hoje é a técnica da equipe de lá. Antes, ignoravam minha presença. Eu não me importava, mas agora querem diminuir a sala de esgrima para aumentar meu tatame. Imagina se a mulher não ia pular no salto?

Lúcia acariciava meu abdômen displicente e eu olhava para o teto. Às vezes, eu admirava a nossa intimidade com tão pouco tempo que nos conhecíamos. Podíamos acabar de transar e permanecíamos nuas, deitadas e conversando por horas.

— Ela não foi só esgrimista, foi amazona também e parece que era boa. Talvez não tanto quanto foi na esgrima.

— Você a conhece?

— Depois de cinco anos morando em Valência e tendo um bistrô indicado em uma revista gourmet quatro vezes… – Encolheu os ombros. — Todo ano recebo o conselho do clube nas festividades de final de ano.

— Engraçado que ela não aparenta ter mais que trinta anos, mas tem atitudes de uma velha. É formal, arrogante, grosseira…

— Ah, minha amiga, formal e arrogante eu concordo, mas grosseira? Acho que você está confundindo, porque Eva Gallardo nunca desceria do salto. E só para você saber, ela tem trinta e seis anos e uma filha de dezesseis.

Eu me ajeitei na cama e olhei para minha amiga, abismada.

— Aquela mulher tem trinta e seis anos e uma filha de dezesseis?! Não é possível! Você está de brincadeira comigo!

Lúcia gargalhou, se jogando por cima de mim, me dando um beijo estalado na boca. Olhou-me diretamente, ainda sorrindo.

— Esse eto todo quer dizer o que, Olívia? Que a senhora Gallardo ficou interessante para você?

— Isso quer dizer que ela é mais ranzinza do que eu imaginava. Pensa numa mulher horrorosa de se lidar? É ela. Para mim, tinha no máximo a minha idade. Eu achava uma afronta ela vir tirar satisfações comigo, por isso.

— Assim também não, né? Você tem vinte e nove anos.

— Vou fazer trinta daqui a vinte dias.

— Que seja. Só sei que ainda não entendo por que quer comprar essa briga. Você, em um ano, abriu seu negócio, que está sendo lucrativo, e foi se meter com a nata da sociedade daqui. Você pode se queimar, viu? Muitos sócios do clube conhecem donos de restaurantes. Apesar de você ter uma “tienda” que atende ao público geral, está fornecendo muitos produtos para eles. Toma cuidado para não se quebrar.

— Se eu perguntar que creme hidratante ela usa, será que ela me fala?

Lúcia soltou uma risada gostosa e empurrou meu ombro.

— Você não está levando a sério o que eu falei, não é?

Eu a puxei para um abraço e sorri de volta, mas a verdade, é que eu estava impressionada, realmente. Ficamos mais alguns minutos deitadas, nos fazendo carinho. Depois levantamos, tomamos um banho e fui para a minha mercearia. Já estava tarde e, em breve, os funcionários dela chegariam para arrumar o bistrô e abrir à noite. Lúcia morava em um apartamento em cima dele e isso facilitava as coisas.

O restinho da tarde fiquei ajudando na mercearia. Tinha contratado mais um funcionário para liberar a Carmem. Este era o nome da menina que ficava no caixa. Ela estava comigo desde o início. Trabalhava para ajudar a família e para pagar um curso de fotografia. Era o que ela queria fazer na vida. Sonhava em se tornar a melhor fotógrafa da província.

— Mmm… Pelo visto, almoçou com a Lúcia.

Falou, quando me viu chegar. Eu estava com um sorriso no rosto, mas depois do que ela disse, meu sorriso morreu. Entendi que o meu nome e o de Lúcia já estavam correndo pelas bocas fofoqueiras do bairro. Não queria nem saber o que o povo falava, para não me aborrecer. Assenti e fui direto para a parte detrás conferir o estoque. À noite, programaria a aula do dia seguinte. Tinham aberto um horário na parte da manhã, lá no clube. Talvez ainda não tivesse aluno nesse horário, mas se tivesse um único, perdido por lá, eu daria a aula. Eu era um pouco “pela-saco” com essas coisas.

A partir daí, tudo iria piorar para o meu lado e eu ainda nem sabia. A história de diminuírem a sala da esgrima para aumentar meu tatame, ainda não tinha chegado aos ouvidos da senhora Eva Gallardo, como eu imaginava. Ela só soube naquela manhã.

****

— Eu não acredito, Ramon, que vocês farão uma coisa destas! Fale-me que estou tendo um pesadelo!

— Calma, Eva! Eles não vão alterar a estrutura de sua sala. Você não perderá espaço das pistas de treino. Não querem lhe prejudicar e nem as atividades da sala de esgrima.

— Não querem prejudicar? Já estão prejudicando! Vou ter que dividir a sala de materiais e o vestiário com essa… Essa garota! Eu e os meus alunos nos misturando com… ah! É um pesadelo, definitivamente!

— Eva, compreenda…

— Compreender o que, Ramon? Compreender que este clube está virando um cortiço?

— Alto lá, Eva! Agora você está extrapolando! O Clube Aragon sempre teve outras atividades, além de esgrima e hipismo. Sempre tivemos outros esportes de luta!

— Que eram tradicionais, não essa… Coisa!

O homem suspirou e se afundou na poltrona, em que sentava. Eles estavam numa sala de convivência da diretoria. Tinha uma lareira ardendo e ele mexia com a mão, o gelo do seu copo de whisky. Sabia que a conversa não seria fácil.

Eva Gallardo, além de ser uma das sócias proprietárias mais atuantes, também era do conselho esportivo. Tiveram uma reunião mais cedo, onde essa pauta fora colocada para votação e pegaram a mulher desprevenida. Ela perdeu.

O cara até que falava suave com ela, mas a senhora Gallardo estava louca com a história de dividir espaço comigo. Eu, no lugar dele, já tinha mandado ela para a… Deixa para lá.  Melhor continuar o relato da discussão dos dois.

A senhora Gallardo andava de um lado a outro da pequena sala, com a mão na testa. Estava inconformada.

— Senta, Eva. Agora não tem mais volta. Relaxa e toma alguma coisa. Vamos conversar e ver o que podemos fazer, daqui por diante, sem muito estrago. Não pense que não entendo você. Minha família faz parte desse clube há cinco gerações. Só que os tempos são outros. Muitas famílias mantenedoras deste clube faliram. – Suspirou pesaroso. – Os recursos estão cada vez menores e, perder a privacidade do vestiário e dividir espaço para guardar equipamentos, não é a decisão mais difícil de se tomar, diante do patrocínio que a diretoria está conseguindo com esportes que estão em alta, não acha?

Ela olhou, desanimada, o homem que conhecia desde a infância. Foi até o aparador e pegou uma garrafa de brandy, depositando em um copo. Caminhou até a outra poltrona e desabou seu corpo.

Na minha opinião, nem ela e nem ele, deveriam beber, assim, tão cedo. Era de manhã e os dois estavam chapando por uma coisa tão ridícula. O que é que tinha demais em dividir o vestiário comigo e com meus alunos? Está certo que alguns alunos, com preguiça de lavar o “dogi”, deixavam a vestimenta suja, por dias, empesteando o vestiário e o tatame. Mas eu não era adepta dessa prática e nem deixava meus alunos fazerem isso.

— Ah, Ramon… Será que as coisas vão mudar mais? Os alunos nas aulas de esgrima estão diminuindo e nas aulas de hipismo, também, segundo o professor.

— Não sei, Eva. Desde que você parou de lutar, nunca mais tivemos um esgrimista que se classificasse para uma olimpíada. Se você não tivesse…

– É. Eu me classifiquei para uma Olimpíada, mas não pude ir. A esgrima era a minha vida, mas, na época, eu era jovem e não consegui enfrentar meu pai.

– O mundo inteiro achava que você tinha condições de ganhar a medalha de ouro. Até hoje, ninguém entende porque o senhor Gallardo te obrigou àquilo.

Eva inspirou fundo e tomou um grande gole de seu copo.

– Agora é passado. Talvez eu não seja uma boa técnica, afinal. Fui uma ótima atleta, mas não sirvo para ser uma técnica.

— Talvez não tenhamos mais tantos atletas comprometidos como você foi. Não se cobre tanto, Eva. Você dará treino agora de manhã?

— Deixei meu assistente técnico para poder vir à reunião. Vou passar lá agora, mas, se me permitir, tirarei o dia de folga. Não quero cruzar com essa mulher por aí. Não hoje. Preciso colocar minha cabeça no lugar. Sabe que Pepa quer parar de treinar esgrima e praticar essa coisa?

— A sua filha?!

— Sim. – Eva falava com ar de derrota. – Pepa está numa fase impossível. Tudo que ela pode fazer para me afrontar, anda aprontando. Discutimos ontem e acabei concordando, mas disse que ela só faria este esporte de loucos, se ela não parasse com a esgrima. Ainda terei que aturar a minha própria filha, fazendo essa maluquice.

— Eduardo também.

— O que? Seu filho quer parar com o hipismo?

— Não. Pelo menos, ele disse que não largaria o hipismo, pois gosta muito, mas assistiu umas aulas de Olívia e gostou do esporte. Quer experimentar como lazer.

Eva suspirou, fortemente, e, por fim, tomou o último gole de brandy de seu copo.

— Vou embora. Passarei na sala de esgrima para ver como tudo está e já saio para o estacionamento. Essa garota começa hoje os treinos pela manhã, não é?

— Sim. Daqui a uma hora começa o novo horário. E… Eva, ela já tem trinta anos, não é uma garota. É uma moça educada e responsável. Você está com prevenções e entendo, mas Olívia não tem culpa.

— Por favor, Ramon! Você não! Não venha defender essa garota. Ela sai do outro lado do mundo e vem se meter aqui, conosco? Tivesse ficado no país dela!

— Está bem! Acalme-se! Não está mais aqui quem falou.

Ramon levantou as mãos, displicente, num gesto para findar a discussão. A senhora Gallardo levantou-se da poltrona sacudindo, ligeiramente, a cabeça.

— Então, vou me adiantar. Pepa deve chegar daqui a pouco. Ela fará nesse horário, pois à tarde estuda e não abri mão do treino dela de esgrima, na parte da noite, comigo. Não quero ter o desgosto de ver minha filha entrando naquela sala de treinos. Pelo menos hoje, não.

****

Eu cheguei uma hora antes, pois queria ver quantos estavam inscritos na minha turma da manhã e arrumar tudo para a aula inicial. Quando entrei na alameda arborizada, que dava para a construção onde os treinos de jiu-jitsu aconteciam, dei de cara com a senhora Gallardo, vindo em minha direção. Gelei. A mulher me olhava como se saíssem faíscas dos olhos.

— “Buenos dias”!

Sou educada. Cumprimentei. Ela retornou o passo e me encarou com fúria. Não elevou a voz, mas o som saía cortante.

— Faça-me um favor. Abstenha-se da boa educação e não me dirija mais a palavra.

Tomou novamente o caminho, sem esperar por uma resposta. Nossa! Eu não esperava que a mulher fosse ficar tão indignada. Aquilo me chocou, mas depois que consegui voltar a caminhar na direção da minha sala, o sangue me subiu.

— Quem essa idiota engomada pensa que é? Ah! Da próxima vez, ela não escapa de escutar uma resposta!

 Rosnei tão alto, que cheguei a assustar algumas pessoas, que estavam sentadas em um banco, à sombra de uma árvore. Entrei na minha sala de treinos e larguei, furiosa, minha bolsa sobre o tatame.

— Droga! Vai ser difícil a convivência com essa mulher. – Falava comigo mesma. – A sala dela tinha que ser grudada na minha?! Merda!

Chutei a bolsa com força e me arrependi, logo em seguida. Uma adolescente acabara de entrar na sala, me pegando no meu momento de fúria.

— Oh! – Ela colocou a mão no peito.

— Ei! Perdoe-me, sim? Hoje meu dia não começou muito bem. Desculpe-me pela atitude.

Falei, tentando remediar, já que a menina me olhava assustada. Ela se acalmou e sorriu tímida.

— Eu que peço desculpas. É que eu cheguei cedo para a aula e não achei que tivesse importância em entrar e esperar aqui.

— E não tem problema, realmente. Como disse, eu não comecei bem o dia, mas já passou. Vou dar um pulo na secretaria. Se quiser, pode trocar a sua roupa que já retorno. Fica à vontade.

Fui até a secretaria, deixando a jovem no tatame. Pedi o número de alunos e o primeiro nome, mas disse ao rapaz que não queria saber seus sobrenomes, pelo menos por enquanto. Fiquei pensando no que Lúcia tinha me falado. Não queria me influenciar ou ficar nervosa dando as aulas, se acaso houvessem alunos com sobrenomes das tais “famílias tradicionais” que ela havia dito.

Voltei com uma relação de duas meninas e três rapazes. Pepa, Rafael, Eduardo, José e Alma. Quando cheguei, os cinco já me esperavam. Como sempre em turmas iniciando, me apresentei, perguntei o que eles sabiam a respeito do esporte e falei um pouco sobre o assunto. Comecei com alongamentos e exercícios de aquecimento. A aula foi fluindo e todos pareciam motivados. Ao final, já havia apresentado alguns golpes básicos de defesa pessoal. Costumava dar nas aulas iniciais defesa pessoal, antes de começar a prática do Jiu-Jitsu. Fiz uma brincadeira para terminar e fui para o vestiário feminino me banhar. Tinha que aproveitar, enquanto não destruíssem nossos vestiários para aumentar o tatame. Segundo me falaram, não demoraria muito para que as obras começassem e, em breve, eles não existiriam mais e duas aberturas seriam feitas para nosso acesso aos vestiários masculino e feminino da outra sala. Balancei a cabeça para etar esse pensamento e não me preocupar, antes da hora.

Havia terminado de me banhar e vi que mais alguém estava nos chuveiros. Quando me virei para me vestir…

— Professora!

— Sim.

Voltei-me em direção da voz. Ela estava enrolada na toalha. Andou na minha direção. Parecia que estava sem graça com algo.

— É que… Bem, eu queria dizer que gostei demais da aula. Achei muito motivadora. Pena que não posso fazer no horário de treinos dos mais graduados.

Olhei para a menina e a vi animada. Algo no rosto dela me lembrava alguém, mas não conseguia definir. A garota era simpática e sorridente.

— Obrigada e, acredito que você esteja na aula certa. Todos são iniciantes, com exceção do José. É mais fácil interagir desta forma.

A menina me deu um sorriso mais aberto. Já havia se vestido numa rapidez incrível, com um uniforme de colégio. Despediu-se e saiu. Ela lembrava a mim mesma, na época em que comecei no Jiu-Jitsu.

Meus pensamentos, rapidamente, voaram para um tempo onde eu era completamente feliz. Era adolescente e não tinha muitas preocupações, a não ser estudar e fazer coisas que gostava. Minha infância e adolescência foram boas, até o momento em que descobri minha sexualidade. Divaguei por aquele exato momento.

“– Você não vai fazer o que quer, não, garota! Está pensando o que? Que vai gastar meu dinheiro com vagabundas iguais a você?!

— Para de bater nela, pai!

— Sai da minha frente, senão sobra pra você também! Você é outra que não serve para nada! Nem para criar a filha conseguiu fazer. Olha só a “aberração” que essa garota é! Se ela não aparecer aqui namorando um homem em uma semana, ela vai para a rua! Não vou sustentar essa “coisa” com meu dinheiro! Se ela não mudar, não vou chamar isso de neta”.

Voltei a mim num choque. A dor em meu peito não diminuíra. Naquela época, as palavras de meu avô foram muito piores que as dores físicas de sua surra. Para mim, ele me amaria incondicionalmente. Ele havia sido meu melhor amigo na infância. Minha decepção com a reação dele em não aceitar quem eu era, abriu um abismo entre nós. Alguns anos depois, eu me afastei até de minha mãe. Era capaz dele prejudica-la pelo simples fato dela ter me auxiliado financeiramente, sem ele saber, até eu me formar. Se ele descobrisse o que ela fazia por mim, tenho certeza que a execraria também. Fechei meus olhos e agitei, fortemente, minha cabeça, etando tais lembranças.

Peguei minha bolsa e saí do vestiário, em direção à portaria. Tinha muita coisa a fazer. Estava deixando a minha “tienda” muito tempo para Carmem cuidar. Teria que reorganizar meus horários para não falhar com meu negócio.



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