Valência

Capítulo 12 – Desabafo

– Eu estou começando a detestar essa mulher. – Lúcia falou. – Ela me olha com ar superior, é dissimulada e não assume o que quer para a vida dela. Só quer empacar a sua, Olívia. Ela está fazendo com você o que a gente costuma dizer por aqui: “não consegue fazer o burro andar, mas não quer que ninguém monte nele”.

Eu ri da alusão, pois achava o mesmo.

– “Não trepa e nem sai de cima.” – Falei.

– O quê?

– Eu disse “não trepa e nem sai de cima”. É um ditado que temos. É como se fossem cães em volta de uma cadela no cio; um deles fica em cima da cadela e, não consegue transar, no entanto não deixa os outros tentarem.

Lúcia me olhou e caiu na gargalhada. Eu ri junto.

– É isso que significa esse ditado de vocês?

– Acho que não é essa a origem, mas é assim que entendo sobre ele.

Continuamos rindo e ela foi se acalmando.

– Pois esse significado é perfeito para o que eu penso que ela está fazendo com você… conosco. Naquele dia, depois de transar com você, logo em seguida, lhe tratou com indiferença e se achou no direito de cobrar algo, quando me viu aqui. Ontem na festa, só porque veio conversar comigo, se chegou como se fosse sua dona. Depois veio com aquele papinho de “gostaria de conversar com a Olívia em particular”. Carregou você para aquela salinha que tem no clube, e sei lá o que falou. Só sei que hoje você está um lixo!

– Como sabe que ela me levou para uma sala lá no clube?

– Ora, Olívia, você é muito ingênua, mesmo! Todo mundo na cidade sabe a hierarquia e pompas que existem no clube Aragon. Existem comerciantes que crescem, ganham dinheiro e, compram título de propriedade de sócios que estão falidos. Eles não têm direito a fazer parte do conselho de imediato, mas esperam anos, só para ver se conseguem ser escolhidos, quando uma cadeira do conselho fica vaga. Sonham em ganhar a sala particular de conselheiro, não pela sala, mas pelo prestígio que esse status traz. – Ela encheu os pulmões de ar e exalou. – Quando ela te levou lá para dentro, sabia que não conversaria com você pelos corredores. Ela não se exporia a esse ponto.

Eu parei de respirar. Lúcia foi cruel. Eu me senti como se fosse uma marginal, fazendo negócios ilícitos e sendo escondida de todos. Meu desespero e raiva aumentaram. Ela não parou por ali. Continuou a falar, inclemente.

– Olha, eu entendo a posição da Eva, mas não aceito. Eles têm muito mais a perder, socialmente, do que nós e deve ser duro para ela, mas então, “sai de cima” para te liberar. Isso eu não aceito, não concordo!

Nessa hora, Lúcia me arrasou de vez. Será que eu queria que a Eva “liberasse a moita”? Eu estava confusa. Ao mesmo tempo que queria seguir com a vida e, fui enfática ao falar que não queria aquela forma de relacionamento que ela insinuou, pensar que Eva pudesse deixar o que tivemos, por conta de optar pela sociedade da qual fazia parte, me doía.

– Que porra, Lúcia! – Olha aí o “modo carioca desbocado” de novo. –  Eu não quero sentir essa merda, mas tá “foda”! Ontem quando saí de lá, estava “puta” com ela, porque ela surtou vendo a gente conversando. Estava claro que ela estava morrendo de ciúmes, entende? – Olhei para as minhas mãos que tremiam. – Mas ela fez a pior coisa que poderia fazer comigo. Ela me agrediu com palavras e até tentou fisicamente. Eu abomino isso! Saí de lá furiosa, mas o que fiz depois? Eu me sentia queimada, doída, mas passei por cima de tudo que prezo e sempre carreguei comigo. Acabei dirigindo até a casa dela para ter, pelo menos, uma explicação.

– Você fez o quê?

– Lúcia, pelo amor de Deus, não fala nada. Para me recriminar, eu mesma já “tô” fazendo, ok?

– Ok! Ok… – Colocou as mãos espalmadas viradas para mim, para que eu não me exaltasse. – Eu não vou discutir com você por causa de Eva Gallardo. – Sua voz, ao pronunciar o nome dela, continha desprezo.

– É disso que eu falo. Não vai dar certo lhe contar as coisas. Me deixa ficar sozinha.

Ela olhou para o teto, inspirou forte e voltou seu olhar para mim.

– Olha, eu sei que não fomos feitas uma para a outra. Não fomos feitas para ficarmos juntas, mas… eu tenho ciúmes do que tínhamos, ok? Essa mulher entrou e sacaneou com isso! Quer que eu olhe para você e diga: “legal, pode se ferrar que nem ligo”? – Ela parou de falar, momentaneamente, como que para arrumar as ideias. – Olívia, deixar de transar com você, é o de menos. Gostava sim, mas é o de menos, pois junto com isso vinha cumplicidade e sei que isso não vai rolar mais, pelo menos da sua parte. Isso me enfurece, de verdade! O sexo era muito bom, porque não tínhamos reservas e sei que agora não vai mais acontecer. Me deixa extrapolar minha raiva também?!

Ela me perguntava furiosa. Eu olhei para Lúcia entristecida. Tinha lhe arrastado para toda essa merda que me envolvia.

– Você vai ficar “puta” se insistir em ouvir. Será que não vê isso?

– Eu vou ficar puta e você também com o que eu possa falar, mas não vê que é disso que a gente gostava? Era o respeito que a gente tinha uma pela outra, não acha?

– Eu não quero te machucar, Lúcia.

– O que me machuca não é o que você faz ou diz, e sim, o que sente. Eu não vou me machucar sabendo que você transou com ela, vou me machucar sabendo o que sente por ela. Sabendo o que ela faz contigo e você permite! Isso independe de você me contar ou não. Será que você não vê?

Eu não sabia mais o que pensar, ou como agir. Nem com Lúcia, muito menos comigo. Estava confusa demais para saber o que fazer. Sentia-me desprotegida, como uma criança pequena que acabara de perder o apoio dos braços da mãe para andar.

Lúcia se agachou na frente do sofá, olhou para mim e me deu um beijo na testa. Elevou a mão e passou os dedos pelo meu rosto. Retirou fios de cabelo que caiam sobre ele.

– Olívia, só quero que me prometa uma coisa. Se um dia isso tudo acabar, seja você não tendo nada com ela ou se decidir que quer levar isso adiante, lute pela nossa amizade. Não deixe que ela interfira, coisa que está acontecendo. Sei que não terei mais você na minha cama e sou orgulhosa demais para isso. Não quero transar com alguém que pensa em outra mulher. Mas acho injusto jogar o que construímos numa vala suja. É disso que falo. Esse é meu incomodo e meu ciúme.

– Eu transei com ela ontem. – Falei, de súbito.

Lúcia me olhou, ficou muda, momentaneamente, e depois começou a rir balançando a cabeça em negativa.

– Tudo bem que não precisava falar assim. – Falou e gargalhou. – Mas eu pedi, não foi? – Riu novamente. – Já te conheço o suficiente para saber o quanto é direta.

Ela levantou e foi para a mesa abrir uma garrafa de vinho. Colocou em duas taças e me estendeu uma. Pegou a garrafa e olhou o rótulo, me mostrou e elevou sua taça em um brinde.

– À Eva Gallardo e a confusão que essa mulher faz!

Eu ri, pois o vinho era da granja “Tierra Roja”.

– À Eva Gallardo e às “duas fodas” que ela me dá. A da cama e a da cabeça!

Eu e Lúcia conversamos muito e bebemos mais ainda. A droga toda é que, depois de bêbadas, apesar dela falar que não queria mais e eu dizer que não queria afogar minhas mágoas e frustrações com ela, acabamos na cama. Ela, não querendo perder o nosso vínculo e eu, tentando amenizar a minha dor. Fosse o que fosse, eu sabia que ela não queria entrar na paranoia de nos distanciarmos e eu, na insanidade de não ter mais Eva. Sabia que Lúcia ia passar uma barra comigo, mas ela se posicionou. Não queria sair da minha vida, mesmo sabendo que podia se dar mal, e eu também. Minha vida e minhas emoções estavam mais reviradas que lixo mexido dentro de caminhão da companhia sanitária.

****

– Poxa, mãe! Você estava tão bem ontem. O que aconteceu?

Eva não levantara da cama naquele domingo. Se eu soubesse o que estava acontecendo com ela, naquela época, acho que eu pirava. Tanto por ciúmes, quanto por pesar, pelo que aconteceu e eu soube mais tarde.

– Nada, filha. Só a gripe que não me deixou e acho que não me curei direito. Foi ver seu avô agora de manhã?

– Fui e ele perguntou por você, daquele jeito dele. Mãe, qual é a dele? Ele não vive sem você, mas parece que sempre está com raiva por alguma coisa. Quando falei que estava acamada, novamente, ele começou a resmungar e falar que era corpo mole seu e que não queria vê-lo sair da cama. Falou com raiva.

– Seu avô está velho, filha. Só isso.

Eva olhou pela porta da varanda de seu quarto, tentando dissipar os pensamentos.

– Eu vou ter que me arrumar para ir a Alicante. Tenho uma reunião amanhã cedo e não posso faltar. Filha, posso contar com você para fazer uma coisa aqui na granja?

Pepa se animou, vendo que a mãe lhe pediria algo relacionado aos negócios da granja. Ficou envaidecida pela mãe confiar nela.

– Lógico! O que quer que eu faça?

– Ramirez é um bom negociador, mas quero alguém de nós, junto a ele, pois amanhã virá aqui um criador que quer trazer uma égua para “cobertura*” pelo “El Cid”.

– O garanhão mais novo?

– Sim. O que ganhou o torneio regional de três tambores este ano. Eu quero que faça uma coisa. Procure Ramirez e peça os dados desses nossos clientes. Ele negociará, mas você os recepcionará. Tem que ser cortês com eles, mas tem que conhecê-los, pois você é a porta de entrada para o haras, entendeu? Não discorde, tão pouco seja autoritária e agressiva, mas não passe a ideia de que é influenciável, ou do que exatamente quer com a negociação. Deixe isso com o Ramirez.

– Entendi. Ser educada, mas não “entregar o ouro”.

Eva sorriu e acariciou o rosto da filha.

– É isso, filha.

– Vai voltar quando?

– Amanhã à tardinha. Eu vou ficar bem. Quando voltar, eu vou procurar doutor Alvarez. Sinto que tenho que fazer exames, ou tomar umas vitaminas. Estes meses tem sido muito cansativos.

Eva levantou e foi para seu banho. Saiu, logo a seguir, para sua pequena viagem. Quando chegou na marina de Alicante, entrou direto no iate. Não tinha avisado seu marinheiro e nem sairia da marina. Queria apenas ficar sossegada no seu refúgio. Ligou para o número de Serena, para linha direta que elas mantinham.

– Você pode vir hoje?

Sua voz não está boa, “Maitê”. Não acho que queira passar uma noite de prazer comigo, principalmente depois da última vez…

– Você teve seus dramas, agora tenho os meus.

Não entramos nessa para isso, mas sei que é pesado para nós duas… Está bem. Eu vou, mas quero um voto de confiança.

– Que voto de confiança é esse, Serena?! – Eva falou alarmada.

Eu não dou nomes, e nem você, mas vamos nos abrir. Eu quero ter alguém para falar e acho que é isso que você quer também.

Eva se sentia tão oprimida e suas emoções estavam tão na superfície, que parecia que iria desmoronar. Não pensou. Aceitou a proposta de imediato.

– Está feito. Nada de nomes e conversamos livres.

Serena chegou ao iate e a noite já caía. Eva havia pedido em um restaurante local, um jantar que serviu para as duas na sala de jantar da embarcação. Estava atracada e não queria que alguém as visse. Algum curioso passante poderia vê-las e as reconhecer, se acaso estivessem no deck. Conversaram por horas; Serena desfiou sua vida e Eva a dela…

– Ela morreu na noite de ontem. Eu a amei, com todas as minhas forças, na minha juventude e meu pai descobriu. Fui apartada dela e jogada num casamento ridículo. Para a minha alegria e azar daquele homem nojento, é que ele morreu. Acho que tive sorte de não viver o horror de ser dele durante anos. Deus me perdoe por pensar isso, mas o único mês que estive com aquele homem, me sentia suja, um lixo, recebendo-o na minha cama todos os dias. E agradeço por ele ter morrido.

– Deus, “Maitê”! Você viveu com o homem durante um mês e ele morreu?

– Sim, num acidente no trabalho dele. A única coisa que restou de bom disso tudo é minha filha. Pouquíssimo tempo antes dele morrer, descobri que estava grávida e achei que seria a pior coisa do mundo. Odiei estar grávida dele e, ainda por cima, vi que não poderia ir numa competição que me classifiquei, mas à medida que minha barriga crescia, passei a conversar com ela. Minha filha se tornou a minha única companhia e minha melhor amiga naquela época, mesmo sem ainda ter nascido. Meu pai mal falava comigo e proibia minha mãe de ficar junto a mim e, além disso, eu não tinha ânimo para encontrar com meus amigos. Que história eu contaria para eles? Eu conversava horas com a minha barriga. Quando ela nasceu, eu já estava tão apegada, que chorei ao ver aquele rostinho pequeno, de olhinhos fechados. Meu coração se encheu e pensei que, afinal, ela fora a única coisa boa que me acontecera. Dei todo o amor que ainda existia em mim para minha filha.

– E como soube que “Ivana” morreu ontem?

Eva se virou para sua acompanhante e sorriu sem muito gosto.

– Como nós sabemos das notícias que concernem às nossas vidas, Serena? Encolheu e relaxou os ombros. – Redes sociais, jornais… Acompanhava a vida dela há anos. Alegrei-me com suas conquistas em olimpíadas e nos mundiais. Vi a grande atleta que ela se tornou e, depois, a treinadora que fez grandes atletas. Éramos meninas na época, mas ela era aguerrida, mais do que eu mesma. E agora… – Eva suspirou. – Conheci outra mulher que está desestruturando meu mundo. Uma mulher cheia de vida, forte e autossuficiente. Linda e com uma paixão, longe do que um dia poderia almejar. Ontem estive com ela e, por mais que eu estivesse disposta a afastá-la, o simples fato dela me rejeitar, por não querer para sua vida o “resto de mim”, me deixou sem chão. E hoje, isso. Acordei com a notícia de que Ivana morreu, vencida pelo câncer.

– Que droga, “Maitê”! Estou convencida que sua merda é pior que a minha…

Eva a olhou e riu com gosto, diante da expressão de sua acompanhante. Já travavam um relacionamento há tanto tempo, e nunca conversavam, verdadeiramente. Ficou feliz por poderem, simplesmente, dialogar. Lógico que sabia que os nomes que Serena usara, para falar de sua vida, eram falsos, assim como ela, mas sabia que as histórias eram verdadeiras, mesmo sem dar os detalhes. Eva nunca falaria que “Ivana” era na verdade Antonella ou que “Beatriz” era Olívia. Falara que ela e Ivana haviam sido atletas, mas não contou a modalidade que praticavam.  As histórias eram verídicas e ela sabia, no entanto, que todos os detalhes permaneciam de fora. Nem “Serena” e nem “Maitê” tinham plena confiança para se expor.

– O pior é que tenho tido vertigens e desmaios. Fiz meus exames usuais e apareceu uma calcificação no seio direito. Pode ser algo, tanto quanto pode ser nada. Estou marcando meus exames, mas isso que vi e acompanhei de Ivana, me deixou para baixo, além do que gostaria. E o pior, não posso pensar em ter nada com “Beatriz”. Não tenho nada a lhe oferecer, além de momentos fugazes de prazer. O que faz com que a admire mais, pois ela não admite e nem quer isso para a vida dela.

– E essa tal de “Almendra”, que você fala que é amiga dela, mas sabe que não é só isso?

– Deve me odiar. Eu vi nos olhos dela, ontem. Não adianta “Beatriz” falar que não há nada entre elas. Sei que existe algo. Mas eu posso cobrar ou concorrer com alguém livre, assim? Entender isso, não quer dizer que não me deixe louca. Eu fico enlouquecida quando vejo as duas juntas. Tenho vontade de matar “essazinha” e de bater muito em “Beatriz”.

– Mas pode abrir caminho para que uma hora, ou um dia, quem sabe, você possa viver o que realmente quer com ela.

– E como eu faria isso? Como alguém como nós pode ambicionar algo assim em nossas vidas?

Serena a olhou compadecida. Titubeou, mas por fim, pegou sua bolsa e retirou algo dela, entregando o objeto para Eva. A senhora Gallardo estreitou os olhos, sem compreender. Olhou para o que Serena tinha na mão.

– Não quero saber quem você é, Serena. Por que quer me dar sua identidade?

– Porque, já há alguns meses, tenho me sentido uma canalha com você, Eva.

O eto se fez no rosto de Eva Gallardo. Serena abanou a mão e continuou a falar para se explicar.

– Não procurei saber sua identidade. Foi por acaso. Vamos combinar que saímos nas colunas sociais e você não mora muito distante daqui. Valência é aqui ao lado, praticamente. Fico etada que você nunca tenha sabido de mim, pois moro aqui mesmo, em Alicante.

Eva inspirou fundo.

– Não precisa me entregar sua identidade, Leonor de Lerma. Como você mesma disse, saímos nas colunas sociais. – Eva olhou para fora, observando a escuridão da marina. – Não adianta contratos de agências. Nós duas fomos imprudentes quando permanecemos nos encontrando, constantemente. – Declarou.

Serena, ou melhor, Leonor sorriu e relaxou os ombros. Naquele momento, viu que podia confiar em Eva. Se ela fosse uma aproveitadora, já teria utilizado a informação há tempos. Vinha de uma família nobre e tinha o título de duquesa. Apesar de viver apenas pelas industrias em que era uma das sócias, fazia parte da realeza. Assim como Eva, havia se casado por convenção, mas diferente dela, fora um arranjo social. Seu marido concordara no casamento, para continuar a tradição de nobreza na família e era um casamento de aparências para ambos.



Notas:



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