Valência

Capítulo 13 – Dilemas

Não vi Eva nos dias que se seguiram e este fato me deixou com o coração apertado. Eu ficava falando comigo mesma que dessa forma era melhor, mas cadê que a agonia passava?   Eu andava às voltas com a minha tienda, com o banco e com conversas com minha mãe, que me pedia que, eu não concretizasse o negócio da compra do meu apartamento com o dinheiro do empréstimo bancário. Estava no celular com ela, entrando no clube para dar aula na parte da manhã de quarta-feira.

– Mãe, não vou esperar fechar o mês. Nem sei o que vai vir para mim de lucros da Ávila. Tenho que levar minha vida com o que tenho e com o que rendo com minha tienda.

Ela falou mais um monte de coisas, do lado de lá, e resolvi encerrar a conversa, para que ela não ficasse no meu ouvido. Estava feliz por tê-la de volta em minha vida, mas não estava mais acostumada a esses “conselhos de mãe”.

– Tá. Tá. Vou ter que desligar. Vou entrar para dar aula agora. Depois te ligo. Beijo.

Estava na alameda do clube que levava para a minha sala e parei para guardar meu celular na bolsa, em que trazia meu “dogi”. Olhava para dentro dela e vasculhava a parte em que minha carteira e documentos estava, quando senti alguém encostar em mim.

– Conselhos de mãe podem ser chatos, mas merecem crédito. – Sussurrou em meu ouvido.

Fiquei toda arrepiada e olhei por cima do ombro, reconhecendo a voz.

– Alguns conselhos de mãe são prudentes demais. Eu tomo um rumo mais direto para mim.

Ao mesmo tempo que gostei de senti-la tão próxima, queria me prevenir da presença dela. Emoções tão conflitantes, quanto intensas me assolavam. Eu não entendi o que Eva pretendia, pois se postou ao meu lado, caminhando na mesma direção que eu.

– Ontem estive em Alicante e negociei alguns lotes do vinho “Dualidad”. Pensei na sua sugestão e abri uma empresa em meu nome. Quem sabe eu realmente consiga emplaca-lo!

Quando falou, eu a olhei e ela estava voltada para frente, não me encarava. Continuava me acompanhando no mesmo passo que o meu e parecia que estava com vergonha de algo. Talvez achasse que eu pudesse ignorá-la, depois do que aconteceu na noite de sábado.

– Espero que consiga, Eva. É um vinho muito bom, de verdade.

Respondi calma, em contraponto ao que eu sentia. A percepção que tinha, era que uma batedeira havia começado a funcionar dentro de mim, tamanho a revolução de sensações que experimentava, naquele momento. Angústia, alegria por tê-la ali conversando amena; aflição por saber que ela só queria ter algo superficial, ou que talvez não quisesse mais nada. Eu não sabia o que sentir. Chegamos à porta da minha sala de treinos e paramos uma de frente para a outra. Ela me olhou e sorriu tímida. Reação pouco comum vindo de Eva e, outra vez, fiquei confusa.

– Eu queria poder falar com você, depois da aula. Tem algum tempo para conversarmos?

– Eva..

– Eu só queria poder conversar melhor com você. Não vou tentar nada, fique tranquila. Sei que tem uma posição muito correta em relação ao que aconteceu conosco e ao que quer para si. Só gostaria de… – Ela suspirou desanimada. – … por favor, deixe que eu venha conversar com você. São apenas alguns minutos.

Alguns alunos começavam a chegar e vi que Pepa vinha em nossa direção. Resolvi aceitar. Queria ver o que ela tinha a me dizer e terminar com meu suplício, de uma vez por todas. Ali no clube, ela não tentaria nada.

– Tudo bem. Eu espero você, depois do banho.

– Então, após o banho nos falamos.

Nesse momento, ela me olhou intensamente e eu tremi dos pés à cabeça. Aquele olhar transmitia desejo e eu fiquei excitada só de imaginar o que passara pela cabeça dela. Isto não ia prestar. Virei, sem nada mais falar e entrei na minha sala. Minhas pernas estavam bambas.

Comecei a aula e minha cabeça estava em outro lugar. Mais precisamente na sala colada à minha. Eventualmente, eu escutava os sons que vinham da esgrima, quando alguém abria a porta do vestiário. As espadas se tocando, ou a voz do auxiliar técnico, quando chamava atenção dos alunos para algo. No dia de hoje, ouvia a voz dela. Eva estava conduzindo o treino e não parava de escutá-la nas orientações de seus atletas.

– Olívia… Olívia!

– Oi, diga José?

– Eu perguntei se iria estender a aula hoje. É que estamos em cima da hora e ainda não deu o alongamento final. Eu não vou poder ficar muito tempo, tenho que ir para a faculdade.

– Ah, sim! Já ia terminar. Podem permanecer em dupla e façam…

Dei as instruções finais. Minha cabeça não estava boa mesmo. Terminei o treino e dispensei todo mundo. “ Que bom que Pepa vai tomar banho também…”

Eu ficava imaginando o que Eva intencionava, mas a perspectiva de tê-la no vestiário, enquanto estivesse no meu banho, me deixava nervosa. Eu nunca sabia o que esperar dessa mulher. Pelo menos, dessa vez, ela disse que queria falar comigo e não me abordou do nada como das outras vezes.

Devo ter demorado muito para terminar o treino, pois assim que entrei no vestiário, vi que Eva já tinha se banhado e estava terminando de se arrumar e, duas garotas da esgrima que se encaminhavam para saída. Pepa entrou logo atrás de mim. Acho que suspirei alto, pois Eva, se voltou para nós, penteando seus cabelos. Sorriu com um jeito sacana. Ou ela estava querendo aprontar, de novo, ou minha cara estava para lá de alarmada.

– Oi, mãe! Hoje a senhora estava com a corda toda, einh? Escutei a senhora falando o tempo todo. Fiquei com pena do pessoal.

Pepa mexeu com a mãe e soltou uma gargalhada. Logo em seguida pegou seus pertences, entrando num dos boxes de chuveiro.

– Desculpe-me. Eu atrapalhei os treinos de vocês? Não pensei que estivesse falando tão alto. Semana que vem acontece a seletiva para o campeonato regional de esgrima e tenho que apertar um pouco mais o pessoal.

– Não incomodou. Pepa é que vem treinar “jiu” e fica com a atenção na esgrima.

Falei um pouco mais alto, para que Pepa escutasse. Estava tentando mexer com ela para descontrair a mim mesma.

– Eu escutei isso, Olívia! Não tem nada a ver!

Eva riu junto comigo da reação da filha.

– Na outra semana, quem vai incomodar você, sou eu. Vai haver exame de faixa daqui um mês e vou apertar o meu pessoal nos treinos, também.

– Exame de faixa? – Pepa colocou a cabeça para fora do box.

– Sossega que ainda é cedo para você, Pepa. Calma que chega a sua hora. Sei que vem crescendo muito, mas ainda é cedo, ok?

Ela retornou para o box, resmungando.

– Você é tão sem graça, às vezes, Olívia…

Comecei a rir da garota e vi que Eva me olhava com um meio sorriso no rosto. Eu estava retirando minhas coisas da bolsa e, de repente, gelei. Eva havia terminado de se arrumar e me observava, enquanto ajeitava minhas coisas. “Caraca, será que ela vai ficar olhando eu tirar minha roupa? Por que ela não me espera lá fora?” Coisa idiota de se pensar, sabendo que já fizemos muito mais coisas do que só nos despirmos. No entanto, eu comecei a me intimidar com a presença dela. Ela abriu um sorriso muito maior e vi que ela tinha percebido o meu desconforto.

– Eu vou te esperar lá fora. Almoça comigo? Assim conseguimos conversar com mais tranquilidade, não acha?

Falou baixo, sabendo que a filha não ouviria, com a água do chuveiro ligada.  Eu não queria almoçar com ela. Não queria tê-la perto de mim, ou melhor, eu queria ter Eva tão perto de mim, que essa aproximação era perigosa demais.

– Eva… – Eu iria dar um milhão de razões para não almoçar com ela, mas Eva me interrompeu.

– Tudo bem, tudo bem. – Abanou a mão displicente. – Eu entendo. Posso te esperar aqui e a gente conversa assim que terminar de se banhar.

Essa insinuação dela permanecer ali, me soou muito pior do que almoçar com ela. Almoçar a gente almoça em qualquer lugar, não é mesmo?

– Tá legal, Eva. Pode me esperar lá fora que eu almoço com você.

Retruquei sem pensar muito. Ela meneou a cabeça, pegou suas coisas e falou alto para Pepa.

– Não esqueça do treino à noite, Pepa!

– E a senhora me deixa esquecer? – Pepa resmungou.

– Ótimo que sabe. – Eva retrucou. – Estou indo.

– Tá. Tchau, mãe.

Eva balançou a cabeça em negativa e saiu. Quando ia entrar no box para tomar banho, Pepa saiu para se arrumar.

– Você não gosta de esgrima?

Perguntei para ela. Baixou a cabeça por uns instantes e depois respondeu com um tom triste na voz.

– Gosto, mas sei que eu lembro coisas à minha mãe que acho que ela não gostaria de lembrar.

Não entendi a princípio, mas depois, rememorei o que Lúcia me contara à respeito do motivo pelo qual Eva não havia participado da Olimpíada.

– Por que acha isso? – Perguntei, como se nada soubesse.

– Ela não foi para a Olimpíada porque engravidou de mim. Ela nunca comentou, mas as pessoas comentam por aí e eu mesma pesquisei na internet.

– Ela já demonstrou algo para você? Demonstrou ter alguma mágoa por isso?

– Não. Mas ela ama a esgrima e se eu estivesse na pele dela, acho que ficaria muito mal.

Enquanto conversávamos, Pepa havia se arrumado. Sentei no banco de apoio enrolada na toalha e puxei Pepa para sentar ao meu lado.

– Posso dar a minha opinião? Opinião de alguém de fora, ok?

– Pode.

– Acho que você se culpa por algo que sua própria mãe não faz. Eu vejo que ela tem um amor enorme por você. Se preocupa com você. Está sempre procurando te proteger. Eu admiro isso porque esse é o papel dos pais e, por experiência própria, nem sempre eles cumprem esse compromisso. – Ela parou para prestar mais atenção no que eu falava. – Meu pai caiu no mundo quando eu tinha três anos de idade e nem se dignou a dar qualquer satisfação. Eu nem me lembro dele. Fui criada por meu avô e minha mãe. Eu amava meu avô e confiava nele. Quando eu quis tomar outra direção na minha vida, fora das convenções do que ele achava correto, me expulsou de casa. Eu achava que ele aceitaria por me amar, pois para mim o amor é assim, incondicional. Sua mãe lhe ama muito e a aceita com tudo de bom e todos os defeitos que você possa ter. Não acredito que ela lhe culpe por nada disso. Se lhe culpasse, nem esgrima você faria. Ela seria irascível com você.

Pepa me sorriu; um sorriso de menina radiante.

– Eu queria que vocês fossem amigas. Acho que ela ficaria tão mais solta…

Senti certo desconforto com essa declaração, além da alegria. Gostei de saber que a garota me considerava numa relação com o mundo dela. Mas ela teria a mesma consideração se soubesse que eu e Eva tivemos algo a mais que uma simples amizade?

– Sua mãe é um pouco travada, Pepa, mas é da personalidade dela. Não deixe de fazer o que gosta e de se empenhar, por achar que a magoa, pois tenho certeza que não acontece isso. Pelo carinho que ela demonstra por você, dá para ver que ela apoiaria, tanto se você fosse excelente na esgrima, quanto se não. Acredito que ela se importa mesmo é em ter você por perto.

– É. Acho que sim…

Pepa riu meio sem jeito e eu sorri junto. Assanhei o cabelo da menina e me levantei para meu banho, deixando que ela terminasse de se arrumar. Mal sabia, que Eva tinha entrado para falar que me esperaria no estacionamento e, quando ouviu que conversávamos, recuou, mas não deixou de escutar nossa conversa.

Quando terminei meu banho, encontrei Eva lendo um livro, sentada num banco, que ficava sob uma árvore na alameda de saída do clube. Ela estava linda em uma calça simples de algodão, tênis e um sobretudo. Estávamos no outono, mas a temperatura caíra muito. O inverno se aproximava. Os cabelos soltos, caiam displicentes pelo ombro, cobrindo o pescoço, que normalmente ela deixava à mostra, presos num rabo de cavalo. Ela tinha um cabelo lindo que chegava ao meio das costas num corte em “V”. Comecei a pensar que me afobara ao aceitar almoçar com ela. Como eu resistiria ao apelo de meu coração? Me aproximei.

– Virgínia Woolf, novamente?

Perguntei, bobamente, querendo me aproximar. Ela fechou o livro e sorriu.

– Não, algo mais leve. – Levantou e pegou a sua bolsa. – Tem um lugar que gosto muito. Você está de carro? Pode me seguir até lá.

– Não estou de carro. Hoje tive que deixar meu carro na “tienda” para uma entrega de emergência.

– Então, eu te levo e depois deixo você no centro.

O rosto de Eva estava tranquilo e comecei a me sentir mais relaxada.

– Então vamos.

Saímos de lá e Eva conduzia o carro sem falar e muito menos eu. Era uma situação um pouco constrangedora. Era como se não soubéssemos como agir uma com a outra. No som do carro, tocava um blues e eu comecei a reparar que, apesar do carro ser automático, ela mantinha a mão sobre a marcha. Trejeito característico de quem utiliza carro com marcha mecânica. Sua mão era alongada, porém ao menor movimento que fizesse com os dedos ou com a mão, era visível as estruturas movendo sob a pele.  Eei de imediato aquela imagem de minha mente, pois me reportava a última vez que fui tocada por aquelas mãos. Eu estava começando a sentir a tortura de estar a seu lado. Tudo nela despertava sentidos eróticos em mim, que jamais imaginei.

– Você só tem esse carro?

Perguntei algo idiota para tentar abrir um diálogo. Precisava distrair meus pensamentos. Ela me olhou de rabo de olho e sorriu, na certa achando engraçado o que perguntei.

– É que vejo que não larga o câmbio. Isso sempre acontece com quem dirige carro com marcha mecânica.

– Eu tenho um carro sport de marcha mecânica. Não tiro muito da garagem para andar aqui em Valência, apenas quando viajo. Mas gosto muito dele. Digamos que é meu xodó. – Sorriu. – Sabe dirigir carro de marcha mecânica?

– Você está brincando? Eva, no Brasil carro de marcha mecânica é o usual. Carros automáticos são mais caros, diferente daqui.

– Você está brincando? – Ela retrucou, usando a mesma expressão que eu. – Eu paguei mais caro para ter marcha mecânica no meu carro sport. Pouca gente sabe dirigir. A maioria das pessoas é acostumada com carro hidramático.

– Você pagou mais caro porque é um carro sport. Não tem tanta diferença de preço nos carros normais. Mas se gosta tanto, devia passar umas férias no Brasil. Vai encontrar aos montes, lá! – Ri.

– Você me ciceronearia se eu passasse umas férias no Brasil? Se fizesse isso, eu pensaria em tirar férias o mais breve possível.

“O que ela tá fazendo? Ela tá me cantando? É isso?”

– Eu até ciceronearia você, mas se permitiria tirar férias e ir para o Brasil comigo?

Devolvi a pergunta. Queria saber onde ela queria chegar. Sabia que ela se permitiria ter um relacionamento comigo às escondidas, mas tenho certeza que não iria além disso. Ela calou e seu rosto ficou sério.

– E você? Se permitiria ir a umas férias comigo, sabendo que eu não me exporia?

Eu sabia. Ela nunca sairia dessa zona de conforto. Calei.

– Vê porque não daria certo, apesar de termos algo forte entre nós, como você mesma disse? Você tem diretrizes na vida que são muito diferentes das minhas. É livre e pode ser assim. Talvez por suas vivências e as atitudes que tomou ou que alguém tomou por você lá atrás.  As atitudes que foram tomadas em meu lugar, outrora, assim como as que eu mesma tomei, foram outras. Minha vida é algo muito distante do que você deseja para si. Não que eu goste das coisas que vivo, mas meu tempo passou e agora me resta viver conforme o que foi se delineando para mim.

– Por Deus, Eva! Ninguém merece viver o que não quer ou o que não gosta.

Ela sorriu de lado, balançando a cabeça em negativa.

Estávamos longe da cidade e eu estranhava o caminho. Ela saiu da estrada seguindo por uma trilha de pedras. Meu celular tocou.

– Oi, Lúcia. Não, não dá. Estou indo almoçar com uma amiga. Quando voltar te ligo, tudo bem?

Desliguei o celular e olhei para Eva. Sabia que ela tinha uma rusga com Lúcia, e tinha certeza que ela falaria algo. O semblante dela ficou pesado. Pronto. A coisa não ia prestar.

– Sua namorada não se importa de você ir almoçar com outra mulher?

– Já disse que Lúcia não é minha namorada, mas o que importa a você? Não faria a menor diferença.

– É. Não faria.



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