Valência

Capítulo – 16 – Desconhecimento

– Então você não sabe que fotos são essas?

Queria ter ciência de tudo. Estava apreensiva com a perspectiva de que talvez eu tivesse algo a ver com aquilo.

– Quando eu cheguei no quarto esse envelope estava caído, mas não o abri naquela hora. Só o abri, anteontem. Era somente minha mãe e outra mulher. Estavam em um lugar que parecia ser um barco, mas não tinha nada demais nas fotos. Era como se elas estivessem conversando apenas. Não entendi esse barraco todo do meu avô.

Senti alívio por saber que eu não tinha nada a ver com aquelas fotos, ao mesmo tempo, fiquei intrigada.

– E você não conhece essa mulher?

– Não… Quer dizer, parece que já a vi antes, mas não me lembro de onde. De qualquer forma, parece que meu avô está ficando senil. O que teria demais minha mãe conversando com alguém para ele surtar daquele jeito?

– Pois é, o que tem demais?…

Falei num devaneio. Meus pensamentos voaram e uma ponta de ciúmes começou a me fisgar. “Que mulher é essa, afinal?” – Pensei.

– Sua mãe está desacordada desde quarta-feira?

– Não. Eles tiram a sedação, mas aí ela chora a maior parte do tempo. Por conta disso os médicos resolvem que é melhor mantê-la sedada.

– Vamos fazer o seguinte. Hoje você vai para casa descansar…

– Não!

– Ei, calma! Me deixe ajudar, Pepa. Você tem cuidado de tudo. Está com umas olheiras horrorosas. Dá para ver que não tem dormido nada e que ainda está se esforçando para cuidar da granja. Deixa que eu fique hoje. Amanhã você volta e qualquer coisa que rolar, eu ligo para você. Me dá o número de seu celular.

Levei mais algum tempo para convencer Pepa. Ela estava irredutível, mas a garota estava péssima. Falamos com um dos médicos que cuidavam do caso de Eva e Pepa disse que eu a substituiria àquela noite. Chamei Lito para acompanha-la até em casa. Quando ela se foi, fui procurar o tal médico. Não era possível que não tivesse alguma ideia do que estava acontecendo com Eva. Depois de muito conversar, pois eu não era da família, e o médico estava reticente em me falar, ele soltou.

– Vamos lá, doutor, não é possível que os resultados dos exames não tenham saído ainda e que vocês não tenham uma ideia do que ocorre com ela. Sei que falar para a filha de dezessete anos, é delicado.

Ele parecia estar cansado da minha ladainha.

– Os exames não apresentaram nada muito contundente, a não ser uma baixa expressiva da imunidade. Estamos fazendo outros exames para detectar se há algo encoberto. Pelo estado emocional que ela apresenta, como choro recorrente, confusão mental e pela vida que a filha relatou que ela tem levado, nosso psiquiatra levantou a possibilidade de uma estafa mental, ou um colapso nervoso. Mas não é conclusivo. Se for realmente uma estafa num grau elevado, ou mesmo um colapso, com os sedativos e o descanso, ela vai estabilizar rápido. Porém, terá que se cuidar para que não ocorra novamente. Terá que se afastar durante algum tempo de problemas, estresses e atividades intensas de trabalho.

– Obrigada, doutor. Não sabe como me tranquilizou.

– Tudo bem. Mas lembre-se de que o que falei não é conclusivo. Prefiro fechar um diagnóstico quando todos os exames estiverem prontos.

****

Eu entrei no quarto e vi que a auxiliar de enfermagem estava terminando a troca do soro. Cumprimentou-me e saiu.

Já passava das onze horas da noite e estava lendo um livro, para me distrair. O livro que Pepa havia deixado. Escutei um pequeno resmungo, levantei e fui até a beirada da cama.

– Pepa…

– Não. Sou eu. – Sussurrei. – Vim para que Pepa pudesse dormir um pouco.

A expressão de seus olhos dava a impressão de que ela não estava me reconhecendo, a princípio. Depois virou o rosto e lágrimas começaram a rolar por sua face.

– Ei. Está tudo bem. Se acalme. – Segurei sua mão.

– Não está nada bem, Olívia… – Ela apertou minha mão e depois levou até os lábios, tentando sufocar os soluços.

– Calma, Eva.

Levei minha mão até seu rosto, acariciando, sem soltar a mão dela. Ela pareceu se acalmar, momentaneamente. Trouxe minha mão para os lábios, de novo, e beijou a minha palma. Ela estava tremendo.

– Por favor, Olívia, não vem mais aqui. Ele vai descobrir sobre a gente. — Sua voz saia trêmula.

– Ele quem? Seu pai?

– Ele me odeia. Me odiou desde a primeira vez…

– Por que, Eva? Que primeira vez?

Ela desatou a chorar. Fiquei assustada. Ela estava completamente descontrolada e muito diferente da Eva que conhecia. Eu não sabia o que fazer. Além de me agoniar com o estado dela, eu me sentia inútil para ajudá-la. Fiquei mortificada com o que assistia. Ela estava numa cama, cheia de equipos de infusão, ligados a um de seus braços e chorava sem qualquer controle. Segurei seu rosto e beijei seus lábios com delicadeza. Queria fazê-la parar o choro. Parecia que ela começava a acalmar. Foi abrandando e entreabriu os lábios para me receber. Beijei-a, tentando passar todo carinho que eu podia, mas logo em seguida, voltou a soluçar e pediu para que eu saísse. O que eu senti foi como se eu não servisse para nada.

Eu não conseguia fazer a mulher que amava parar de sofrer e nem sabia por que ela sofria. Saí do quarto, procurando o serviço de enfermagem para ver se conseguia que fizessem ela acalmar. Entraram no quarto e colocaram um medicamento através da infusão do braço. Pouquíssimo tempo depois, ela resvalou para o sono induzido.

– Senhorita Ávila, se perceber que a senhora Gallardo está acordando, nos chame. Ela provavelmente ficará umas seis horas dormindo, mas caso acorde antes, não hesite. Ela não pode se agitar. Amanhã, o psiquiatra vem reavaliá-la.

– Ela tem estado assim desde que entrou no hospital?

– Ontem estava mais calma e conseguiu conversar normalmente com a filha, mas talvez a presença de outra pessoa lhe acompanhando, a tenha desestabilizado.

– Tudo bem. Eu chamarei vocês.

Minha fala era de uma pessoa arrasada e a enfermeira percebeu.

– Não se culpe. Se for um colapso nervoso por estafa, é normal que isso aconteça.

Podia ser normal para ela, para os médicos, a biologia e a psicologia, mas não era normal para mim.

– Obrigada.

Agradeci, dispensando a enfermeira chefe, e voltei para a poltrona ao lado de Eva.

***

Pepa chegou logo cedo para ver a mãe e Eva ainda não havia acordado depois do episódio da noite. Eu não tinha dormido nada. As coisas estavam confusas e não conseguia encaixar a imagem de Eva, naquele estado, em minha cabeça. Falei com Pepa sobre o episódio e ela falou que não sairia mais do hospital.

– Pepa, eu entendo a sua agonia, mas, daqui a três semanas, você tem uma competição importante e também tem o colégio.

– Eu consegui dispensa da escola e o pessoal está me enviando a matéria. Estou estudando daqui para as provas semestrais e…

– … A enfermeira me falou que foi só porque ela viu alguém diferente. Se ela se acostumar comigo, não vai rolar mais isso.

Eu falava isso para Pepa e para convencer a mim mesma. Não queria acreditar que Eva abominava a minha presença.

– Você também tem as aulas da noite, três vezes por semana. – Pepa retrucou.

– A gente se ajusta. Tem o Carlito que pode me substituir um dia ou outro e você pode treinar nos outros dias. Eu não vou deixar você sozinha nessa e nem sua mãe.

A garota me abraçou forte e eu começava a me incomodar com a opinião dela sobre mim. “A hora que essa garota souber que estou apaixonada pela mãe dela, vai querer me ver queimando no inferno”. Espremi meus olhos para ear o pensamento.

– Agora eu vou embora. Tenho que dar a aula da manhã e depois cuidar da “tienda”, mas à noitinha estou aqui e você vai para seu treino.

****

– Lito, pode ficar um minutinho para eu falar com você?

 – Tá.

Eu tinha terminado o treino e quase não encontrava mais o garoto a não ser lá. Ele não era do tipo de falar nada de ninguém, mas eu precisava saber.

– Lito, você tá namorando a Pepa sério, não tá?

– Aí, cara, você acha que tô só de rolo com ela?

– Não é nada disso! Só quero saber se ela é gente boa, se tem cabeça legal, falou?

– Eu tô namorando com ela, não tô? Se tivesse cabeça ruim eu não tava “de boa” com ela.

Eu comecei a me impacientar. Parecia que ele estava na “retranca” comigo. Cocei minha cabeça. Não queria falar com ele nada a meu respeito com Eva. Tinha certeza que Lúcia não havia falado nada, pois não era o feitio dela, mas Lito não era bobo.

– Olha, não tem nada a ver com você e Pepa. Só que…

– … na moral! Eu não quero saber nada de você e nem da mãe dela. Tô percebendo que rola alguma coisa, mas não quero saber de nada, beleza? Não quero ficar de calça arriada com Pepa. Mas vai por mim, Pepa tem cabeça boa, só que não chega de tranco porque é foda pra qualquer um.  Era isso que você queria saber?

Olhei para o cara e ri.

– Era. – Sorri. – Valeu!

Ele saiu em direção ao vestiário, mas se voltou novamente para mim.

– Aí! Aquele recado que tu me deu com Pepa, tá valendo para mim. Se tu foder com Lúcia, “tá amarrada” comigo, valeu?

– Beleza…

Respondi quase num sussurro. Por essa não esperava. Fiquei de cara. Será que eu estava vacilando muito com Lúcia?

****

Passei no banco para tirar um extrato. Tinha feito uma compra grande e ia, finalmente, marcar a data com meu senhorio para comprar o prédio.

– Caralho! Que porra é essa!?

Falei alto e em português. As pessoas olharam para mim. Estava de frente para o caixa eletrônico, dentro do banco e tive uma vertigem quando vi meu saldo. Olhei para os lados.

– “Perdóname”

Pedi desculpas na língua nativa. Voltei meu olhar para a minha conta. Saí do banco e peguei meu celular. Liguei para minha mãe.

– Oi, Olívia! Você não me ligou a semana toda. Tava com saudades…

– Desculpa, mãe. A semana foi ruim, mas tô ligando por outra coisa. Peguei meu saldo hoje e…

– … A Ávila não depositou seu lucro pessoal?

– Não, não é isso. Tem alguma coisa errada. Tem mais de setecentos mil euros na minha conta…

– …Sim, eu sei. É seu lucro pessoal da Ávila.

– Como é que é? Não é possível!

– Como não é possível? Você acha que renderia mais?

– Mais? Como assim mais, mãe? Eu não achava que seria tanto!

Escutei o riso frouxo de minha mãe do outro lado da linha.

– Desculpa, Olívia, mas achava que você tinha noção do que era a Ávila. Eu até fiquei impressionada por você ter aberto mão, tão fácil, da vice-direção. Me orgulhei de você. Só que desde que começamos a nos falar novamente, vi que você tinha levado sua vida de forma mais tranquila. Percebi também, que você nunca se inteirou, realmente, do que seu avô construiu. Esse é o seu lucro pessoal. Deve oscilar um pouco, mas se a Ávila tiver uma direção boa, esse valor não vai ficar muito distante disso.

– Mm…

– Você está bem, filha?

O que eu ia falar para minha mãe? Que estava surtada?

– Tô legal, sim. Você tinha razão. Não vou precisar do empréstimo.

– Mas, e você? Como está aí?

Aí foi um blá blá blá e, saudade dali e, saudade daqui. O fato é que minha cabeça não saía dos inúmeros zeros que eu vi no extrato.

“Merda! O que eu vou fazer com essa grana?” – Esse era o meu pensamento assustado. Coisa de quem nunca teve muito dinheiro. Evidente que existiam muitas coisas a se fazer com dinheiro, mas não era como se tivesse jogado numa loteria. Esse dinheiro vinha de meu avô. Um cara que nunca quis saber de mim e que eu pensava que tinha me deserdado. Liguei para o meu senhorio e marquei com ele. Eu compraria o prédio naquela semana e depois eu via o que faria com a grana. A perspectiva de ter esse valor, todo mês, na minha conta me deixou confusa. Eu nunca havia passado necessidade. Depois que me formei, nunca fiquei mais que dois meses desempregada. Em certas ocasiões o dinheiro até foi curto, mas sempre dava para eu me segurar. Trabalhei na França, fui para um país oriental e depois, juntei algum dinheiro quando cheguei a Portugal. Lá trabalhei numa empresa de administração de imóveis. Foi quando resolvi vir para a Eha. Balancei a cabeça eando os pensamentos. Eu não ia “entrar numa”, agora. A minha vida já estava muito bagunçada para eu pensar sobre isso.

****

Entrei no bistrô da Lúcia e perguntei ao Paco se ela estava. Ele me respondeu e fui até o escritório dela. Bati na porta e ela mandou entrar. Estava ao telefone com um fornecedor. Fez um gesto para que eu sentasse. Terminou de falar e desligou.

– Que honra é essa! Você por aqui?

Ela estava irônica. Eu não a culpava. Fiquei calada a olhando um tempo.

– Desculpa.

Ela suspirou e relaxou o corpo na cadeira.

– Sabe o que é pior, Olívia?

– Não.

– É que a gente se contentava em ter o que a gente tinha, só que às vezes isso não basta, quando aparece outra pessoa. Tem gente que se basta com isso. – Deu de ombros. – Mas a gente não é assim e não te culpo. Eu comecei a me ver depois que você se apaixonou por ela. Sinceramente, espero que você consiga, pois comecei a ver que eu gostaria de ter uma paixão assim, também.

Ela me deu um sorriu fraco e eu afundei na cadeira. Lúcia tinha o poder de me deixar “pequenininha”.

– Você vai ficar no lugar da Pepa, hoje?

– Vou. A garota tem só dezessete anos. Eu me lembro bem dos meus dezessete anos. É uma barra e a garota tá indo muito bem, mas é cruel isso que ela tá passando.

– Eu estive com Alonso e…

– … Quem?

– Alonso é um amigo da família Gallardo. Na verdade, ele é mais próximo da Eva.

Lembrei do cara do Bistrô no dia que encontrei Eva jantando com ele. O ciúme me pegou. Amuei a cara, mas acredito que Lúcia não tenha percebido, pois continuou a falar.

– O filho dele é horrível e ele está passando uma barra com o garoto. Outro dia, estava aqui, comendo sozinho. Ele sempre vem e, quando eu fui fazer “às vezes” de dona do bistrô, ele me pegou para conversar.

– E aí?

Não estava entendendo onde Lúcia queria chegar.

– E aí que, a gente que é dono de restaurante, acaba ouvindo coisas. Ele foi visitar Eva e ficou abalado. Falou que achava que o pai era o ponto de ruptura dela.

– Isso não é uma novidade. O pai dela é um “cretino-asqueroso” pelo que tenho percebido!

– Sim. O problema é que todos conseguem lidar com Eva Gallardo, mas não conseguem lidar com o pai dela. As pessoas estão começando a especular que se a Eva não conseguir sair dessa, o que vai ser da “Granja Tierra Roja”. Nessa semana que a Eva está internada, ninguém fechou negócio com a granja. Palavras do Alonso.

Fiquei furiosa com o que ela disse. As pessoas nem esperavam as coisas acontecerem para especular e fofocar. O que achavam que estava acontecendo com Eva?

– Eva está com um problema de saúde que ainda está sendo investigado. Será que dá para a mulher adoecer em paz?

– Ei calma! Só estou te dizendo isso, porque se ama essa mulher e quer ajudar, dê muita força para Pepa, Olívia. As pessoas confiam em Eva e não em Antônio Gallardo. O pior é que a própria Eva não deve se dar conta disso.

Assenti. Esse era meu plano.

– E você? Como você está?

Perguntei da forma mais torpe. Consciência pesada era o que não me faltava em relação a Lúcia.

– Se amanhã você almoçar comigo, posso ficar melhor.

O sorrisinho cínico estava, ali, nos lábios dela. Lúcia não dava trégua. Balancei minha cabeça, devolvendo o sorriso.

– Pode ser em um restaurante? Assim a gente não “dá mole”.

Ela deu uma gargalhada gostosa. Daquelas que a gente fala: “Tá com medo, né?”

– Pode. Quero me desapegar dessas coisas mundanas, também. – Gargalhou, novamente.



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