Valência

Capítulo 17 – Voltando ao Lar

Foram duas semanas bem complicadas. A Pepa aceitou minha sugestão de treinar muito para a competição. Todas as horas que eu podia, substituía a garota para ela cuidar das suas coisas. Eva já não chorava mais com a minha presença, porém não conseguia conversar muito com ela. Ela não dava muito espaço e ficava muda. Um dia, eu cheguei e entrei no quarto sem fazer barulho. Não queria incomodar ou acordá-la e sem querer escutei a conversa dela com Pepa. Meu coração doeu muito pelo que escutei da boca de Eva, ao mesmo tempo em que se alegrou pelo que a Pepa falava.

– Mãe, eu não entendo. A Olívia está incansável, me ajudando em tudo. Ela é uma pessoa maravilhosa.

– Eu sei que ela é uma pessoa maravilhosa, filha, não estou falando disso. – Suspirou. – Seu avô é um homem difícil e você mesma disse que ele está cada vez pior por eu não estar lá. Se ele souber que uma pessoa, estranha a ele, está aqui comigo…

– Ele não vai fazer nada, mãe! O que ele poderia fazer?

– É. Nada…

– E depois ele já sabe que a Olívia está revezando comigo aqui. Falei para ele que chamei uma amiga, porque não estava dando conta de tudo.

– Você o quê? – Eva perguntou, alarmada.

– Não se preocupa, mãe. Eu me entendi com ele.

– Se entendeu como?

– Ah, mãe. Não quero aborrecer a senhora. Fica calma. O médico falou que a senhora vai sair em breve, mas que não pode se chatear com nada. A senhora vai ter que ficar um período, longe de problemas. Ele falou que sua crise passou, mas que vai continuar o tratamento.

– Filha, eu só quero saber o que está acontecendo e se não me contar, vou ficar remoendo isso na cabeça.

– Droga! Eu sabia que tinha que ficar com minha boca fechada. Não quero que a senhora se estresse, mãe. – Falou agoniada.

– Eu vou me estressar se não me contar o que está acontecendo, Pepa.

– Tá, eu conto. Fica calma. Lembra quando a senhora assinou aquele documento de emancipação para que eu pudesse assinar pela granja, já que meu avô não podia e nem a senhora? Pois bem. Meu avô fez uma procuração para que eu pudesse gerenciar as coisas. Lógico que o Ramirez está cuidando de tudo, mas eu tenho trazido os documentos comercias da granja para a Olívia ver. Ela entende de administração e eu não queria me orientar só com a opinião do Ramirez. Não que eu não confie nele mas… Sei lá. Eu queria ter mais uma opinião de alguém que entende. Nunca fui ligada nas coisas que aconteciam lá.

– Tudo bem, filha. Entendo que a Olívia tem sido uma força para você e a agradeço, mas o que isso tem a ver com seu avô?

– É que outro dia, quando fui vê-lo à noite, ele me perguntou quem estava no meu lugar aqui no hospital. Aí falei da Olívia e disse que era amiga nossa lá do clube. Ele surtou. Começou a chamar a senhora de algumas coisas… Eu mandei ele calar a boca. Disse que ele estava ficando senil e que se não parasse de lhe ofender, eu o interditaria.

– Você disse o quê para seu avô?! Filha, por favor, não compre briga com ele…

– Mãe, me escuta. Se hoje a senhora está aqui, em parte é por causa dele. Não vou admitir que ele faça mais isso. Eu não entendo e nunca entendi essas reações dele e nem da senhora. Agora, nem quero mais saber. Só quero a senhora de volta.

Eva suspirou. Ficou calada por um tempo.

– Você falou para ele quem era Olívia?

– Eu disse que era minha professora no clube. Que era alguém que eu confiava e que por isso pedi que ela ficasse conosco. Aí ele calou aquela boca idiota dele. Mãe, quando você sair daqui, vou leva-la para a fazenda “Esperanza”. Ramona cuida da senhora quando eu ou a Olívia não puder estar lá.

– Você foi lá? Você não vai lá há tanto tempo…

– É, eu fui. – Pepa pareceu um pouco envergonhada, mas continuou a explicar. – Pensei nisso quando o médico disse que a senhora tinha que se afastar de tudo, por um tempo. Fiquei boba com o que conseguiu fazer lá, mãe. Não imaginava. A casa é uma gracinha e a vinícola está linda.

Escutei o riso de Eva. Depois ela falou animada.

– Eu pensava que talvez um dia pudesse ir morar lá. É um lugar que me traz paz.

– Agora a senhora vai passar uns tempos lá. Só volta para a granja quando quiser.

Eu não sabia se entrava no quarto e interrompia essa interação das duas, mas a hora avançava e Pepa tinha que treinar. Inspirei fundo, retornei pelo pequeno corredor que dava acesso a porta do quarto e fiz um barulho qualquer na maçaneta para mostrar que alguém havia entrado.

– Oi, meninas!

As duas me olharam e Pepa me sorriu. Eva se retesou. Eu percebi quando ela fechou a mão, agarrando o lençol. Aquilo me entristeceu. Saber que eu lhe causava isso era duro para mim.

****

Dois dias depois, eu levava Eva e Pepa para a fazenda “Esperanza”. Eva vinha na frente, ao meu lado, e Pepa atrás. Meu carro era hidramático e Eva começou a me olhar de soslaio.

– Você dirige carro com marcha mecânica?

Eva me perguntou com um sorriso leve, bordando seus lábios. Olhava para frente, observando a estrada, quando perguntou. Eu sorri, pois mantinha minha mão em cima da marcha, mesmo sem precisar passa-la.

– Sempre dirigi. – Respondi. – Embora ache carro hidramático mais confortável, gosto de carros com marcha mecânica, também.

– É. Acho que é o gosto de quem busca o controle na direção das coisas…

Eu abri um enorme sorriso. Era a primeira vez, desde que Eva fora para o hospital, que conversava comigo sem restrições. Olhei pelo retrovisor, pois a gente sempre tem aquela coisa de estar dando bandeira. Queria ver a reação de Pepa. Ela estava distraída com a paisagem e relaxei no acento.

– Sabe onde é a fazenda, Olívia?

Pepa me inquiriu, pois em momento nenhum perguntei sobre o trajeto, causando estranheza na garota. Olhei Eva e vi que sua respiração suspendeu, momentaneamente. Apressei em explicar.

– Sua mãe me deu mais ou menos a direção, mas acho que não vou saber onde é a entrada.

– Ah, tá. Eu também não sei muito bem. Tinha muitos anos que não vinha aqui e quando eu vim, foi com o chofer. Mamãe pode lhe falar quando for a hora.

– Falo sim, filha.

– E por que você não vinha aqui, Pepa?

Minha curiosidade não deixava que eu ficasse com a boca calada, algumas vezes. Tentei corrigir.

– Não é por nada, mas você me disse que gostou tanto do lugar quando veio falar com a tal Ramona…

– Ah, mas lá antigamente não era nada do que tem hoje. Só era um monte de pastagens sem nada. Nem cerca tinha. O que eu iria fazer num lugar que não tem nada? Minha mãe que gostava de ir e me levava, quando eu era criança, e olhava para aquilo como se fosse a maior maravilha do mundo.

– E era. Eu via terras produtivas se conseguisse fazer algo por lá. Você que não tinha imaginação…

Eva mexeu com a filha. Eu a olhei e sorri. Ela sabia ser bem-humorada quando queria. Tinha algo de menina que eu conseguia divisar, mas se tolhia o tempo todo.

– Ai! Podia ir para a cama “sem essa”, Pepa! – Sacaneei.

Eva gargalhou e Pepa riu junto, porém, não deixou por menos.

– Não, senhora! Eu era a criança da história. Quem manda a senhora não estimular o lado da imaginação da sua filha.

– Estimular como, engraçadinha? – Eva retrucou.

– Sei lá. Podia me colocar grudada nas suas costas e fazer cavalinho, dizendo que estávamos procurando tesouros ou outra coisa qualquer.

– Ah, tá. E a gente se esborrachar no meio de mato e pedras!

– Mmm, fresca! – Sacaneei. – Nunca brincou de cavalinho, não?

– Já brinquei com Pepa e muito, mas não no meio de mato e pedras! – Retrucou.

O resto do trajeto foi bem leve e vi Eva sorrindo, novamente. Meu coração se encheu de alegria. O último mês, não consegui ver um único sorriso dela e parecia que eu não conseguia mais sorrir, também.

Quando chegamos em frente à casa, enquanto Eva saía do carro e Pepa chamava Ramona, eu pegava as bagagens que a filha havia preparado para ela na mala do carro.

Eva subiu a escada da varanda e se voltou para olhar a sua fazenda. A cena me pegou em cheio. O frio estava começando. As videiras estavam sem folhas, e a paisagem parecia sem vida, mas ela era imensamente bela. Ao longe, víamos os morros na cor marrom, anunciando os sinais da estação. O inverno estava se aproximando. Em Valência, não costumava nevar como em outras cidades mais para o norte da Eha, porém as estações eram bem marcadas. Com o frio intenso, as arvores perdiam as folhas, indicando que as lareiras teriam que ser acesas para esquentar as casas. Apesar de abatida, percebia que os olhos de Eva admiravam o seu refúgio e se regozijava com ele. Ela entrou e me deixou solitária da bela imagem que gravei dela, em minha mente. Um rapaz veio ajudar com a bagagem. Deixei a seu encargo e entrei na casa.

Eram onze horas da manhã e Ramona tinha preparado alguns petiscos, antecedendo o almoço, para nos recepcionar. As taças e o vinho estavam postos na mesa, junto com as iguarias. Era muito comum nos costumes ehóis, beliscos com vinho antecederem as refeições. Não era apenas uma tradição, era o modo de vida deles.

– É. Acho que não vou poder beber meu vinho do almoço… – Eva comentou, com pesar.

– Pode sim. – Falei.

– Eu tô tomando medicamentos…

– … o medicamento que vai tomar, daqui para frente, não tem contraindicação com álcool. Eu conversei com o médico. Desde semana passada, você não toma mais antidepressivos. O que está tomando é só para regular a serotonina. Ele me garantiu que você pode voltar para sua vida normal, mas com os cuidados que prescreveu e com acompanhamento.

Pepa veio de dentro da casa, alegre e tagarelando.

– Mãe, aquele quarto que a Ramona disse que eu poderia usar, foi a senhora que decorou? Ficou lindo!

O semblante de Eva se tornou risonho com o entusiasmo da filha.

– Eu decorei para você, Pepa, se acaso um dia quisesse dormir aqui.

– Que legal! Adorei!

Pepa foi de encontro a mãe e a abraçou. Vi os olhos de Eva marejando e sorri. Era uma cena maravilhosa de se ver. Ok. Eu era suspeita, pois cada vez mais meu sentimento por aquela mulher crescia, sem controle, e vê-la feliz, me fazia bem.

– Já chega de “melação”. – Eva falou, encabulada. – Vamos comer algo que tem gosto, porque comida de hospital, é dureza. Vou tomar um pouco de vinho também. Que falta sinto disso!

– Ah, mãe, não vou poder ficar. Desculpa.

– Por que não? – Eva desalojou Pepa dos seus braços.

– É que…

– Fala, Pepa. Acho que sua mãe vai amar a notícia e não acho que afetará na recuperação dela. – Incentivei.

Pepa olhou para mãe com um enorme sorriso.

– Sabe que o regional de esgrima já aconteceu, não sabe?

– Sim. Pelo cronograma, foi na semana passada.

– Eu ganhei no florete na minha categoria e me classifiquei para o nacional.

– Que maravilhoso, filha! – Eva a abraçou e quase içou a filha do chão. – Como eu perdi isso… – Deixou que as lágrimas descessem por sua face.

– Eu queria tanto contar para a senhora… mas o médico me falava que a senhora não podia ter muitas emoções e…

– Bobagem! Eu amaria ver o campeonato na televisão. Poderia ter visto.

– A Olívia foi ver e filmou. Depois a senhora vê. Eu fiz as provas do semestre e já passei. Entrei de férias. Estou aproveitando para treinar nas tardes que não precisam de mim na granja. O nacional é daqui a dois meses e quero me preparar direito, mãe. Por isso que não quero ficar. Eu almoço algo leve no clube e vou para o treino.

– Então vai, filha. – Eva me olhou sorrindo. – A Olívia fica aqui comigo para almoçar.

O olhar de Eva para mim, tinha um misto de alegria e agradecimento. A emoção que tive com aquele olhar, foi algo tão bom, que meus olhos se encheram de água. Olhei para os meus pés, por não ter para onde mirar e disfarçar meus sentimentos.

Pepa se foi.

****

– Vem. – Ela me falou, assim que sua filha saiu. – Já que posso beber e comer um pouco…

Se justificou, ao pegar minha mão e me conduzir para a pequena mesa de petiscos posta no ambiente da sala de estar.

– Obrigada. – Falou ao sentar no sofá e servir uma taça de vinho para mim e outra para ela.

– Não precisa me agradecer. Tudo que fiz, foi por você sim, mas foi mais ainda por Pepa. Ela é uma garota de ouro, Eva. Gosto muito dela.

– Então, agradeço duplamente.

Sorriu e seu semblante estava feliz e ruborizado. Neste momento, me preocupei com o que o médico havia me falado. “Ela terá momentos de alegria e, em outros, de melancolia. Teve um colapso nervoso de grande monta. Precisará se tratar, senão, poderá apresentar uma depressão severa”. Pensava enquanto olhava a alegria estampada no rosto de Eva. “Nunca tome como pessoal as reações neste momento, ela ainda está se recuperando”.

– Eva… Se a minha presença te angustiar em alguma hora, por favor, me fala, tá?

– Por que está me pedindo isso?

– Porque eu sei que o que tivemos… a minha presença te oprime.

Ela baixou o olhar, e moveu a taça que estava em suas mãos. O líquido rubro moveu, manchando o cristal do corpo da taça. O olhar dela se perdeu no movimento do vinho. Por fim, falou.

– Eu não posso mudar o que sinto, na base da força. Nem por você, e muito menos essas coisas que vem dentro de mim. Também não posso mudar os pensamentos que me assolam, mas como a psicóloga do hospital falou, posso mudar o jeito que encaro e vejo as coisas. Estou tentando. Vou tentar…

Eu senti que era o momento de amenizar a conversa. Queria que ela ficasse bem. Ela entrar numa onda ruim agora, não era uma legal.

– Então, me deixa te contar como foi o regional e o que Pepa fez.

Ela riu comigo falando um bocado de besteiras sobre a esgrima e a competição. Eu não entendia nada daquele esporte e falava barbaridades como: “Pepa mandou uma alfinetada no peito da garota”, e coisas do tipo. Lógico que eu enfeitava as besteiras para ver Eva rindo.

****

Deixei que ela coordenasse a casa, falasse com o administrador da fazenda Esperanza, enfim. Ela estava solta, tomando as rédeas daquela casa, que eu acreditava ser muito mais o lar dela, do que a granja “Tierra Roja”. No fim da tarde, eu precisava ir.

– Agora vou embora.

– Não quer dormir aqui?

Ah, eu queria. Como eu queria! Mas não podia.

– Não posso. Sinto muito, Eva. Tenho que dar aula agora à noite e, amanhã de manhã, tenho assuntos a tratar da minha tienda. Tenho deixado responsabilidades demais para a Carmem.

– Carmem? Quem é Carmem?

Como eu gostei de sentir o tom de ciúme nas palavras de Eva. Me deu vontade de rir e sacanear, mas não queria dar carga ou vazão à essas emoções. Ela tinha que ficar bem e eu queria fazer parte da vida dela. Essa era minha decisão. Eva ficaria comigo. Eu queria e lutaria por isso. Engoli meu riso.

– É minha funcionária. Ela ficou a cargo das coisas da tienda, enquanto estive com você. – Fiz questão de deixar claro, para Eva ver a importância dela em minha vida. – Mas ela é apenas uma funcionária. Não posso deixar correr frouxo, não é?

– Claro!

Se apressou ao falar. Vi constrangimento nas suas palavras. Foi como se tomasse consciência da forma que inquiriu.

– Você vem amanhã? – Perguntou.

– Quer que eu venha amanhã? – Retruquei, mexendo com ela. Não resisti.

– É… Eu gosto da sua presença. Se puder vir…

Ver Eva Gallardo insegura, me trouxe dois sentimentos. O primeiro de satisfação, por saber que ela me queria ali, e não sabia como expressar; o segundo de impotência e de tristeza, pois essa, não era a minha “Eva Gallardo”. A minha Eva era uma mulher de incrível força e personalidade.

– E eu, mais ainda da sua presença, Eva. Você não sabe o quanto.

Segurei seu queixo, fazendo com que ela me olhasse. Encarou-me e num vislumbre, vi “Ela”. Aquela que me pegou de jeito e me fez amar.

Olhou meus lábios e fechou os olhos, ligeiramente, passando a língua pelos lábios para umedecê-los. Inspirou e virou o rosto de lado, evitando me encarar.

– Eu gostaria que viesse amanhã. – Afirmou.

– Então, eu virei.

Fui embora com grande expectativa e um calor afagando meu peito.



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