Valência

Capítulo 20 – Quando se ama alguém

– Assim fica difícil, Olívia.

– Difícil o que?

Não sabia onde ela queria chegar com aquela frase.

– Difícil não querer ter você perto de mim.

– E por que você quer me afastar?

Ela ia se desprendendo de meus braços e eu a segurei.

– Hoje nem me importo mais com meu pai, mas não suportaria a rejeição de Pepa.

– Pepa tem uma cabeça boa, Eva e…

– … Ela é minha filha! – Se alterou. – Imagina saber que a mãe está indo para a cama com uma mulher! Sua mãe que descobriu que você era lésbica e não o contrário, Olívia.

– Tá. Calma! Também não… Ah, Eva, eu tenho pensado sobre isso e entendo você, de verdade.  Só que, às vezes, o monstro é maior dentro de nós do que do lado de fora.

– E, às vezes, não. Como garantir? Imagina você sendo uma garota de dezessete ou dezoito anos, heterossexual e que sempre viu sua mãe como uma pessoa normal.

– Eu sou normal. Você é normal, Eva!

Ela bufou e levantou da cama, procurando sua blusa. Voltou-se para mim.

– Eu sei que somos normais, mas a maior parte das pessoas não sabe.

– Ok! Tudo bem… tudo bem. Não precisa ficar nervosa e a Pepa não vai descobrir. Se acalma.

Tinha medo que ela se descontrolasse, novamente. Era muito recente o colapso e eu já me encontrava enfiada na cama com ela. Eva sentou na beirada da cama, colocando as mãos na cabeça. Me aproximei devagar e a abracei.

– Eu devia tê-la educado de outra forma. – Falou, derrotada. – Devia ter conversado com ela sobre essas coisas, lá atrás. Mas meu pai me colocava tanto medo… – Balançou a cabeça.

– Eu não sei… Apenas não vejo Pepa como uma pessoa preconceituosa. Eu só sei que você não pode ficar assustada a cada vez que seu pai ameaça em contar para ela.

– Depois da minha crise, comecei a pensar sobre isso, só que é muito forte o medo que sinto.

– Porque seu pai levou anos fazendo terror psicológico e construindo esse medo dentro de você.

Puxei Eva para ficar de frente para mim e abracei-a mais forte. Vi uma lágrima correr por seus olhos e ela virou o rosto, tentando se desvencilhar.

– Ei. Vem cá. – Trouxe-a de volta para meus braços. – Você vai trabalhar isso, aos poucos e Pepa não vai saber sobre nós. Só se você quiser, e quando quiser, ok? – Falei suave, sorrindo. – Agora deixa eu me vestir que vou esquentar o jantar de uma certa pessoa…

Eva se aprumou, meneou a cabeça e devolveu o sorriso que havia lhe dado.

– O jantar é só meu? Você não vai comer comigo, não?

Ela tentava, aos poucos, se distrair desse medo que sempre a pegava em cada ato que fazia.

– Ai de você, se me proibir de comer!  Estou morrendo de fome.

– Já percebi que você adora comer. – Riu.

– Eu não adoro comer. Só que quando passa da hora, eu fico faminta e toda vez que a gente vem para cá, – apontei a cama – já passou da hora e ainda gasto mais energia.

– Tudo bem. Então não farei mais isso com você. Não trago você mais para cá.

– Você nem é maluca!

Ela gargalhou, pegou meu rosto e me beijou, ainda rindo entre nossos lábios.

-Vamos fazer o seguinte: toma um banho e se veste que eu esquento o jantar.

– E você sabe fazer essas coisas?

– E por que eu não saberia? – Perguntou, indignada.

– Do jeito que você vive, achei que nunca tinha entrado numa cozinha na vida. – Mexi e ela empurrou meu ombro.

– Engraçadinha. Cozinho muito bem. Não é só a sua “amiga” Lúcia que sabe fazer isso.

– Ei. Sem ciúmes de Lúcia. Ela é só minha amiga. O que eu sinto por você é algo muito além de qualquer coisa que já senti por alguém.

– Pode ser que hoje ela seja apenas sua amiga. Não duvido do que sente por mim, Olívia, mas dá para perceber a interação que vocês têm.

– Assim como a duquesa de “sei lá o que”, que estava aqui hoje? Eu também percebi uma interação entre vocês. Morri de ciúme.  Eva, toda vez que a gente vem a esse assunto brigamos. Por favor, Lúcia é uma pessoa cara à mim.

Ela meneou a cabeça e se levantou, saindo do quarto.

Tomei um banho e, outra vez, pensava nas coisas que conversamos. Eva tinha o poder de me deixar em xeque. Eu sei que precisaria falar sobre mim e Lúcia, em alguma hora, mas esta não era a hora. Ainda não sabia como nós ficaríamos. Eva levaria muito tempo até se desintoxicar das loucuras que o pai fez com ela, ao longo da vida. O pior é que eu concordava com ela. Como saber que Pepa não a rejeitaria? Isso poderia acabar de vez com ela. Por outro lado, ela não negou nada do que eu falei com relação a tal duquesa. Isso me incomodou.

****

Eva estava arrumando os pratos e baixelas de comida na mesa, quando entrei na sala com uma grande bolsa de viagem na mão. Tinha ido até o carro pegar.

– O que é isso? – Me perguntou.

– Uma coisa que Pepa pediu para trazer. Ela esqueceu quando fez sua mala, assim que saiu do hospital.

Coloquei a bolsa em cima do sofá. Encolhi os ombros como se eu não soubesse. Eva veio até a sala de estar e abriu o zíper da bolsa. Vi um grande sorriso estampar seu rosto.

– Minhas roupas de esgrima!

– E os equipamentos estão na mala do carro. – Sorri diante da alegria dela. – Pepa quer saber se pode vir amanhã de manhã treinar com você. Pediu para ligar para ela, pois se você não estiver disposta, ela treinará no clube.

O brilho no olhar de Eva e o sorriso aberto, me deram a certeza de que eu tinha acertado na decisão. Convenci Pepa de que a melhor pessoa para treina-la para o nacional seria a mãe dela. De quebra, Eva voltaria ao contato com aquilo que tanto amava.

– Se ela quiser… – Falou tímida.

Me aproximei de Eva e cingi sua cintura a encarando sorridente.

– Ela quer ser treinada pela melhor técnica do clube. Está ansiosa com a possibilidade de, pelo menos, ficar numa boa posição no nacional.

– Ela nunca gostou muito de esgrima e…

– … ela sempre amou a esgrima. Apenas existiam as inúmeras comparações com você, que as pessoas faziam. É normal para uma menina sentir medo diante disso e acabar recuando, como ela fez. Ela nunca deixou de treinar e, tenho certeza, que nunca deixou escapar uma única orientação que você deu em treinos. Mas agora ela está motivada.

Ela beijou meus lábios com ternura.

– Sei que você tem a ver com isso. Escutei quando conversou com ela, lá no vestiário do clube, uns tempos atrás.

Dei-lhe um sorriso sem graça e baixei os olhos. Eva me pegou de surpresa. Ela gargalhou diante do meu jeito encabulado e me deu outro beijo. Dessa vez, bem mais intenso.

– Uau! Vou começar a dar mais conselhos para Pepa. Gostei da recompensa.

Eva me empurrou com o ombro, num gesto de reprimenda pela minha brincadeira.

– Ah! Lembrei de outra coisa. Trouxe também aquele florete medieval, em que você quase me assassinou no dia que fui treinar com Pepa na granja. Saiba que foi contra a minha vontade. Pepa quem quis que trouxesse, nem sei por quê.

Eva gargalhou, novamente, se desvencilhando de meus braços e caminhando em direção ao ambiente de jantar.

– Você mexeu muito comigo, quando te vi lá no clube à primeira vez. Eu tinha conseguido me blindar por muito tempo, nos meus sentimentos, desde Antonella. Não foi só sua aparência, Olívia, eram seus gestos, forma de falar e se posicionar. Você é uma mulher impositiva, quando quer, sabia? – Eva riu, contando em como se sentiu quando nos conhecemos. –  Eu comecei a me atrair por você e isso estava revolvendo muitos sentimentos dentro de mim. Estava com medo e tentava abafar o que estava surgindo e aí, me deparo com você, junto à minha filha, dentro da minha casa.

– O que você está querendo dizer? Que eu poderia ter morrido, pelas suas mãos, naquele dia? – Perguntei jocosa.

– Não.  – Gargalhou. – Mas que eu queria matar o que sentia, ah, isso eu queria! Foi quando me deu aquele beijo. Deus! Não sabe o que senti. Eu queria morrer! Tudo virou uma confusão dentro de mim. Mas, pelos céus! Eu fiquei com o gosto da sua boca gravado no meu paladar!

Eu sorria como boba escutando Eva falar.

– Eu já estava sentindo as vertigens e, muitas vezes, até sentia taquicardias e falta de ar, quando em situações que me deixavam em stress. Foi quando fui tirar satisfações com você, depois daquele dia em que me afrontou no vestiário e vi que ficaria sozinha na tienda com você.

– Desmaiou. O que achou que faria, Eva? Eu não sou nenhuma tarada! Tá. Tudo bem que eu podia até… sei lá. Tinha horas que me dava uma vontade louca de te beijar. – Ri.

– Eu não achava nada. O problema não era você, Olívia, já lhe falei sobre isso. Eu é que não sabia como lidar com essa atração que sentia por você.

Eva fez um gesto para eu sentar à mesa. Assim que sentei, ela começou a me servir, antes mesmo de se sentar. Achei aquilo muito carinhoso da parte dela. Era como se quisesse me agradar ou cuidar de mim. Continuou a relatar, risonha, ao falar de algumas coisas que sentia.

– Em um dos diversos momentos que voltei a consciência do desmaio, senti que estava em seu colo, e você acariciava minha cabeça. Minha vontade era ficar ali e esquecer do mundo, pelo resto da noite. Começamos a conversar e eu olhava sua boca, enquanto falava, me lembrando do gosto do seu beijo. Pensei que precisava tê-lo mais uma vez. Precisava ver, sentir se era algo que realmente mexeria comigo, ou se era uma loucura qualquer.

– Eva, naquele dia você não sabe o que fez comigo. Fiquei “puta”! Mais porque você me acendeu e me deixou no “vácuo”, do que qualquer outra coisa. – Gargalhei. – Se dependesse de mim, tinha pegado você naquele dia mesmo!

Eva deu uma gargalhada gostosa.

– E acha que saí correndo por quê? Meu medo nunca foi o que você fizesse e sim, o que eu poderia fazer. Assim que comecei a te beijar, na mesma hora pensei: O que estou fazendo? Eu quero essa mulher! Eu quero sentir essa mulher em mim!”

– Uhum. Aí me deixou no maior tesão e correu léguas.

– Se eu deixasse acontecer, como olharia para você depois? O que eu iria dizer, hum? Vivia implicando com você. Te atormentava lá no clube o tempo todo.

– Ué? Você pensou nisso quando me atacou no seu quarto à primeira vez?

– A coisa já tinha crescido, mais do que eu suportava e, seu gesto de me levar para casa… de me proteger… Não sei. Eu perdi a razão naquele dia.

Conversamos durante todo o jantar. Passando por esses momentos em que tivemos. Cada vez mais eu pensava que queria Eva junto a mim. Não era justo jogar fora os que a gente sentia e que se mostrava ser tão bonito.

Terminamos de jantar e Eva ligou para a filha, marcando com ela. Fomos para o quarto novamente. Parecíamos adolescentes. Amar Eva estava sendo maravilhoso.

****

No dia seguinte, logo de manhã, escutamos um carro chegar na frente da casa. Acordamos porque Pepa falava com alguém na varanda. Estávamos nuas e Eva saltou da cama apavorada.

– Droga! O que eu faço agora?

Levantei e conferi a porta para ver se estava trancada.

– Calma, Eva! Vai para o banheiro e toma um banho. – Me vestia apressada. – Se ela vier aqui, digo que vim lhe ver agora de manhã.

Eva pareceu se acalmar um pouco e tomou o rumo do banheiro. Quando abri a porta do quarto, Pepa se encontrava, praticamente, diante dela.

– Oi, Olívia! Mamãe só acordou agora?

– Ela está no banho. – Respondi.

– Tá. Então vou ver se o café está pronto. Sai sem nada no estômago. Não fiz o desjejum lá na granja.

– Tá. Eu só vou tomar banho, porque assim que acordei e vim ver sua mãe.

– Beleza, então.



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