Valência

Capítulo 21 – Confronto nosso de cada dia

Me virei e fui para o quarto que era destinado a mim. Queria tomar uma ducha rápida. Estava com cheiro de sexo. Não ia prestar. Quando cheguei à sala, Eva já se encontrava acomodada à mesa, tomando café com Pepa. Ela me olhou e assenti, ligeiramente, para tranquiliza-la.

– Gostei de ver você se alimentando melhor de manhã. – Eva falou para Pepa, rindo. – Comendo só salada de frutas e um suco?

– Ah, para, mãe! Eu não precisava me preocupar com isso antes, né? Você adora mexer comigo.

Eva apoiou o cotovelo sobre a mesa, colocando o queixo sobre a mão. Olhou a filha. O sorriso que trazia na face era irônico.

– Você não sabe que eu implico com quem eu mais amo?

Me olhou de rabo de olho, porém, logo voltou a olhar para a filha.

– E você deu para ser melosa e dramática. Não tô acostumada. Vamos treinar.

Pepa riu, arrancando risadas de mim e de Eva. Levantou-se da mesa, caminhando em direção a porta dos fundos da casa.

Não podia ser diferente para Eva. Ela havia montado um galpão, na parte de trás da casa, em que abrigava uma sala com pista de treino para esgrima. Eva me olhou, sabendo que eu não poderia ficar muito mais tempo.

– Vou lá, com Pepa. – Me encarou e tinha uma postura desolada. – Sei que não pode ficar. Tem seus negócios e suas atividades, mas quero que saiba que ontem foi importante para mim. Gostei de contar muitas coisas para você. Obrigada.

– Vai lá. Sempre que puder eu venho, Eva. Tenha certeza disso.

– Eu tenho… – Se virou e falou baixo, como se falasse para si mesma. – Hoje meu coração tem essa certeza.

Fui para o quarto pegar algumas coisas, antes de ir embora. Fiquei com uma vontade louca de vê-la. Tinha que saber que não acabaria por ali, como das outras vezes. Peguei minha bolsa e saí em direção ao galpão de treinos. Cheguei sorrateira, como se estivesse fazendo algo às escondidas, como da primeira vez que a vi, lá na granja. Abriguei-me na beira do portal, olhando as duas treinar. Fiquei admirando, mãe e filha, num digladiar. Era mais como uma dança do que, propriamente, uma luta. Sorri ao ver que Pepa se irritava. Não entendia nada de esgrima, mas pelo jeito das duas, parecia que Eva não dava mole para a filha.

“Ela é linda!”.  Pensei. Ridículo, mas pensei.

Num átimo, vi a cabeça de Eva virar em minha direção e…

– Consegui!

Pepa gritou, alegre. Tinha avançado com o florete em direção a Eva e esta, não reagiu a investida, sendo tocada pela ponta do florete da filha. Eva retirou o capacete de proteção e olhou em minha direção, sorrindo.

– Você não cansa de fazer estragos com a sua presença, não?

Me perguntou, com um sorriso cínico, me fazendo lembrar de nosso encontro conturbado na pista de treinos da granja.

– Mãe!

Pepa exclamou, ao escutar a mãe, pensando que ela estava sendo grosseira comigo.

– Deixa, Pepa. Não esqueça que sua mãe implica com quem ela gosta.

Respondi, fazendo o sorriso de Eva ficar maior e Pepa a olhar, gargalhando logo em seguida.

– Mãe, acho que preciso me acostumar com esse humor que você adquiriu nos últimos dias.

Fui embora com a sensação de que poderia dar certo. Tinha que dar certo. Se não desse, acho que me arrasaria.

****

Cheguei a minha tienda e olhei o espaço, orgulhosa. Tudo se ampliara. Coloquei mais dois funcionários e agora, Carmem era minha gerente. A garota estava feliz, pois o salário aumentou e podia pagar o curso universitário que queria fazer na parte da noite.

– Olívia, inseri os dados do último fornecedor no sistema. Escaneei, também, as notas fiscais.

– Arquivou as notas fiscais físicas?

– Sim. Estão guardadas no arquivo.

Eu estava feliz. Queria que o mundo fosse feliz. Olhei para ela e ri.

– Gostou do “cafofo” que fiz como escritório lá atrás, né? Agora não tem mais que aturar cliente chato no caixa. – Mexi e ela bufou.

– É, não tenho que aturar cliente chato. Só tenho que aturar fornecedor chato e que enrola na entrega, além dos incontáveis registros de saída e entrada que tenho que fazer e, mais o balancete. Mas isso você já sabia, não é dona Olívia? Pois era a sua função e me deixou de bandeja. – Resmungou, mas riu.

– Não reclama que te perguntei se queria a função. Azar o seu se achou que era “molinho”.

Rimos juntas. Ela sabia que eu não deixaria tudo por conta dela. A maior parte dos registros, era eu quem fazia à noite, antes de dormir. Mas que ela estava me dando um grande alívio, isso ela me dava.

Liguei para Lúcia. Estava com saudades dela e queria vê-la.

– Oi, Olívia! O que é que manda?

– Tô com saudades da sua carinha alegre. Pode deixar o bistrô hoje à noite na administração do Paco? Pago um jantar para você, no lugar que você quiser. Agora eu posso. – Gargalhei de minha própria piada.

– Ih, Olívia, hoje não dá. Deixa para outro dia…

– Legal. Amanhã, você pode?

– Amanhã também tenho um compromisso. Posso te ligar depois? Aí, marco com você certinho.

– Falou. Então me liga.

– Beijo, tenho que ir.

– Beijo.

A ligação fora interrompida. Estava de frente para o meu carro, para ir até o clube. Olhava para ele sem saber o que fazer.

– Que porra foi essa? – Falei comigo mesma. – Tá rolando alguma coisa e ela não me contou nada? – Falei ensimesmada.

*****

Cheguei ao clube. A turma da manhã tinha reduzido, hoje. Pepa trancou, por conta dos afazeres da granja e dos treinos de esgrima. Ela estava empenhada para o campeonato. Mas por que o Lito não veio? Tive um arrepio passando por minha nuca. Deixei para lá e dei minha aula, normalmente. Ao final, me banhei, como sempre e, quando estava me vestindo, meu celular tocou.

– Alô!

– Senhorita Ávila?

– Sim.

– Aqui é da delegacia distrital. A senhorita conhece o senhor Manuel Viveiraz*?

– Sim, conheço, mas… o que houve?

Eu sei que, depois da ligação, despenquei para a delegacia. O que Lito estava pensando, quando se meteu numa briga de rua? Cheguei, me inteirei de alguns fatos. Chamei a advogada que me assistia na tienda. Ela não cuidava dessa área, mas era melhor do que nada. Conseguimos libera-lo.

– Merda, Lito! Que porra você foi fazer ecando um cara?

– Olha só, Olívia, não julga, tá? Eu sei que exagerei, mas o cara é um escroto! Ele ficava, todo dia, na porta da escola esperando a Pepa. Comecei a pegar Pepa, por conta desse babaca. Agora deu para escorá-la na saída do clube.

– Você está detido desde ontem?

– Não. Essa briga foi hoje de manhazinha. Não fui pegar Pepa ontem à noite no clube e ele escorou ela. Eu sabia que hoje ela estaria na fazenda. Eu peguei o cara na porta da casa dele mesmo. Tinha certeza que pelo “naipe” do carinha ele não era de nada, sem os amigos por perto.

– Para. Isso é paranoia de namorado, ou tá falando que Pepa tem um cara que persegue, de verdade?

– Tô falando sério, cara. O Idiota dava em cima dela. Ela disse para mim(,) que sempre detestou o cara. Tipo maior escroto. Aí quando a gente começou a namorar, o cara começou a chegar junto, tipo fazendo pressão e meio que ameaçando.

– Fala direito! – Arranquei com o carro. – Se acalma e me conta essa história direito.

Lito estava falando rápido, e eu, não conseguia entender, ou melhor, estava entrando na pilha dele. Se ele continuasse a contar a história daquela forma, eu embarcava e era capaz de tomar rumo para a casa do cara e ajudar a quebrar o indivíduo de vez.

Lito contou que o garoto era filho de um figurão da cidade. Conhecia Pepa desde sempre, mas que ela não gostava dele. Achava-o imaturo e arrogante. Dispensava sempre que estavam nas mesmas festas e espaços sociais. Quando ela começou a namorar Lito, o garoto começou a abordá-la, mais agressivo, a ponto de xingar até a família de Pepa.

– O que?

– É isso aí. Toma cuidado porque ele já berrou na cara dela que a mãe era maior sapata e que só ela não sabia.

Eu paralisei.

– Por que ele falaria isso? Você escuta coisas de Eva por aí?

– Não. Quer dizer, já escutei um monte de coisas dela, mas que ela é sapata, nunca.

Dei um tapa na cabeça de Lito.

– Para de falar sapata! Eu posso falar sapata, quando estou sacaneando comigo. Posso falar sapata com amigos. Você, não!

– Por quê? – Perguntou indignado.

– Seus amigos chamam você de “escrotinho”, “viado”, “corno” quando estão de boa?

– Chamam. – Disse firme, dando ar de vitória.

– E quando alguém de fora te chama de “escrotinho”, “viado” e “corno”? Você fica de boa?

– Me liguei. Tá beleza! Não falo mais sapata. Lésbica, pode ser?

Arrastou a fala me zoando. Dei outro tapa na cabeça dele e ri.

– Pode. – Continuei a rir. – Por que não chamou Lúcia? – Perguntei.

– Não queria colocar ela nisso.

– Cara, Lúcia é a pessoa mais tranquila que eu conheço, e a mais bem-relacionada na cidade, também. Acha que ela não vai saber?

Ele não falou nada. Calou a boca e ficou olhando para frente.  Aquilo me deixou com a pulga atrás da orelha. Lito não era de se encolher.

– Fala.

– O quê?

– Qual é, Lito? Acha que tô engolindo esse teu silêncio? O que é que foi? Por que não falou com ela?

– Olha, é só uma impressão, tá?

– Desembucha! O que foi?

– Acho que a Lúcia tá querendo pegar o pai desse escroto. Eu conheci o cara. É maneiro. – Se apressou em falar. – Só que o filho é essa “gosma melequenta de camelo”…

Eu fique muda, olhando o transito. Agora entendia porque a Lúcia me dispensou. Se eu me senti traída? Sei lá. Não sabia o que estava sentindo. Uma perda, talvez. Não sabia.

– Tá. – Mudei o assunto. – O negócio agora é ver um advogado que trate desses assuntos para você não se encrencar.

– Nisso eu me viro. Pode deixar.

Parei o carro na rua transversal ao bistrô e apartamento de Lúcia. Na rua dela, não podia passar carros.

– Valeu, Olívia! E… Desculpa aí qualquer coisa.

Eu senti que ele não estava falando só do que aconteceu com ele, mas passei batido.

– Beleza. Sem problemas.

Dirigi para casa pensando no que Lito havia me falado. O que eu podia cobrar de Lúcia? Eu nunca pensei no que aconteceria se alguém entrasse na minha vida, ou na vida dela. Alguém entrou na minha vida. Naquele momento, eu senti o que ela sentiu comigo e Eva. Algo como um vazio, ou uma perda. Não que eu amasse Lúcia como eu amava Eva. Era algo como perder um porto seguro. Não sabia explicar.

*********

Alguns dias se passaram e eu continuava a me relacionar com Eva, que parecia cada vez mais confiante e feliz. Três vezes por semana Pepa ia até a fazenda para treinar com a mãe e coloca-la a par do que acontecia na granja. O pai de Eva estava piorando, pois se recusava aos tratamentos e, cada vez mais, se irritava por Eva não ir vê-lo e, por Pepa não lhe dar espaço para que falasse a respeito da mãe. Um dia, Eva resolveu ir até a granja falar com o pai. Queria saber o que ele tanto queria conversar com ela e, se conseguisse convencê-lo a fazer os tratamentos direito. Parecia decidida. Mesmo assim, me preocupava, pois apesar da evolução do quadro dela e da melhora expressiva que víamos, ela ainda mantinha certa distância do assunto pai. Eu não fui com ela. Eva não queria. Talvez por saber, mesmo que eu não tenha expressado, que eu achava que deveria deixar o pai à mingua.

****

– Bom dia, dona Gallardo! Estamos sentindo falta da senhora por aqui.

O administrador falou, assim que Eva saiu do carro. Mais alguns empregados da granja vieram recebe-la.

– Obrigada. Mas o que é isso? Eu não mudei de cidade, só estou me recuperando. – Sorriu.

A maioria das pessoas achava que Eva tinha sofrido uma estafa. Não sabiam exatamente o que ocorrera. Ela ruiu tão seriamente as estruturas psicológicas, a ponto de entrar em crises de pânico em algumas ocasiões. Eva e a filha, deixavam que assim pensassem. A maioria não compreenderia, além de existirem inúmeros preconceitos em torno de tais doenças. Evitavam o assunto.

– Poxa! Eu não ando fazendo um trabalho bom por aqui? – Pepa mexeu com todos, sorrindo.

– A senhorita tem feito bom trabalho, dona Pepa, mas dona Gallardo também faz falta. – Retrucou Ramirez bem-humorado.

Entraram. Eva olhou o lobby da casa, a sala de estar, corredor que levava ao escritório e biblioteca. Tudo parecia diferente e distante. Não reconhecia aquele lugar como seu lar. Memórias vieram à sua mente, de um tempo em que ainda era uma garota querida por sua mãe. Cerrou os olhos, por momentos. Inspirou fundo.

– Mãe, tudo bem?



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