Valência

Capítulo 24 – Família

– Vamos fazer uma brincadeira? Eu respondo todas as perguntas que você quiser saber sobre mim, mas você responde as minhas.

Um sino alarmou na minha cabeça. Sabia onde ela queria chegar, só não sabia se eu queria entrar nessa. Ela foi bem esperta. Se me esquivasse, eu estaria me comprometendo e deixaria claro a resposta que ela queria.

– Eva, estamos falando do filho de seu amigo e de Pepa e, você me sai com essa, por quê?

– Algo que passou pela minha cabeça. Do que você tem medo?

– Eu não tenho medo nenhum. Só não sei o que você espera com isso, mas tudo bem, vamos lá. Eu concordo, contanto que eu comece.

Ela me olhou desconfiada. “Peguei você, Eva”. O sorriso dela morreu e ela elevou a sobrancelha.

– Muito bem. Pelo menos, vamos saber se nosso envolvimento é frágil ou não. Pode começar.

Será que eu queria saber algo do passado dela? Um frio tomou meu estômago.

– Você teve algum relacionamento depois que seu marido morreu?

– Namoro eu não tive.

– Não estou perguntando de namoro. Isso já me contou. Quero saber de qualquer tipo de relação.

– Tive algumas relações que eram quase um negócio.

– Você se relacionou com pessoas por questões comerciais? – Falei chocada.

Ela começou a rir, mas logo perdeu o riso quando olhou para mim. Acredito que eu estivesse demonstrando eto no meu semblante.

– Não foi por conta dos negócios da granja ou algo parecido. Disse que as relações que tive eram quase relações comerciais. Anos atrás, procurei uma agência de relacionamentos. Tive algumas mulheres com quem sai, mas não era um relacionamento de cunho afetivo. Deu para entender?

Não sei se essa informação me aquietou ou me deixou mais chocada do que já estava. Entendia que a situação que envolvia a vida de Eva era complicada, mas pagar para ter sexo?

– Eva, qual a diferença de se envolver com alguém emocionalmente e pagar para ter sexo? Você estava se relacionando com mulheres do mesmo jeito!

– Eu não falei que eu pagava pelo sexo, mas isso respondo depois, se quiser, porque agora é a minha vez. Respondi a mais do que uma pergunta sua.

– Certo. – Falei angustiada.

– Você já transou com Lúcia?

Ah, ela foi direta. Ela queria saber de Lúcia e nem fez um carinho antes. Perguntou de pronto.

“Burra. Eu sou burra. Devia ter perguntado logo da Leonor”. – Pensei.

– Já. – Falei desanimada. – Mas tem uma explicação! – Logo me adiantei.

– Pode ter uma explicação, eu acredito, mas por que, quando eu perguntei, você se esquivou e mentiu?

– Eu não menti. Esquivar, talvez, mas não menti. Eu nunca namorei a Lúcia e você insistia nisso. Já transei com ela, mas nunca namorei. Você tinha ciúmes dela e nós duas estávamos num momento indefinido em relação ao que queríamos. Você não queria nada sério comigo e eu comecei a me apaixonar por você. Como falaria que eu e Lúcia tivemos uma amizade em que tentávamos bastar nossa solidão, mas sem compromisso? Você entenderia? Você aceitaria?

– Eu entenderia, Olívia. Você não me conhece, mas eu entenderia. Talvez meu ciúme aumentasse um pouco, mas só durante um tempo. Eu não condenaria você.

– Você falou tudo. Eu não te conhecia. Não sabia por onde iam seus valores. – Apressei-me em justificar.

– E hoje, o que ela é para você?

– Ah não, senhora! Agora é a minha vez, não é assim?

– Ok. Vai lá. – Fez um gesto para eu continuar.

– E a Leonor? Já teve um relacionamento com ela?

Ela gargalhou e ainda tirou onda.

– Você faz as perguntas erradas para essa brincadeira, Olívia. – Riu cínica. – Posso dizer com tranquilidade que tive um relacionamento comercial com ela.

– Ah, para, Eva! Sabe o que perguntei… – Foi quando me toquei. – Não acredito que tenha achado a Leonor através de uma agência! Então, ela não é uma duquesa?

Eva me fitou diretamente. Seu semblante endureceu. Se jogou contra o encosto do sofá, numa postura cansada.

– Vou parar com esse jogo. Eu conto a você o que é essa agência, como eu cheguei até ela e tudo que envolveu minha vida e meus relacionamentos. Acho que comecei essa brincadeira porque eu queria falar para você e não sabia como. Hoje, quando Leonor esteve aqui, ela me perguntou por que eu não contava tudo a você. Disse-me que um relacionamento real precisa de confiança, mas o fato é que eu tenho medo de me desnudar e contar as coisas que permearam minha vida e você se assustar.

– Acho que tô começando a gostar dessa mulher… – Falei para mim mesma.

– O quê?

– Dessa Leonor. Acho que tô começando a gostar dela.

Eva me fitou e riu, sem muito ânimo da minha piada sem graça.

Ela contou tudo. Desde quando começou, como descobriu e o que era a tal agência. Falou até as conversas que teve com Leonor, sobre nós. Quando terminou, eu não sabia o que dizer ou o que sentir. Ao mesmo tempo em que eu sentia uma dor pelo que me contou, ficava imaginando as duras provas da alma de Eva e daquelas pessoas que procuravam este tipo de relacionamento. Tudo para ocultar o que eram. Na minha cabeça era loucura. Mas o que essas pessoas passavam, como se sentiam presas, tão oprimidas e tão arrasadas eu não tinha vivido. Os monstros da minha alma eram outros e eu não conseguia alcançar o que elas passavam nas suas vidas.

– Não vai falar nada?

– Falar o que, Eva? Tudo isso faz parte de um passado e de uma vida que teve onde, para você ou até mesmo para ela, parecia ser a melhor saída.

Eu também estava desgastada. Talvez não tão cansada quanto Eva, ao expurgar as bestas que corriam dentro dela, mas estava cansada. Estávamos sentadas lado a lado, jogadas no sofá. Virei de lado para repará-la. Seu semblante, antes pesado, suavizara e agora estava de olhos fechados, talvez imaginando que eu falaria ou faria.

– Tudo bem. – Falei por fim. – Não implico com Leonor e você não implica com Lúcia. – Decretei.

Ela abriu os olhos e permaneceu muda por instantes. Depois se virou para mim, olhou-me durante um tempo e, por fim, disse:

– Ok, mas não pense que meu ciúme passou. Se Leonor provoca você, a Lúcia também faz comigo, tá? E depois, você ainda tem que dizer que tipo de relacionamento tem com ela, hoje em dia.

Nós começamos a rir. Estávamos ridículas pensando nas pessoas que passaram por nossas vidas. Ou melhor, que faziam parte de nós. Algo tão superficial, dentro do emaranhado dos problemas que tínhamos que vencer, que aquilo era uma pluma plainando no ar. O pior é que fazíamos a pluma se transformar em um tijolo de concreto.

– E você?

– O que tem eu?

– Nunca teve problema com a sua sexualidade? Nunca ninguém questionou quando você entendeu que era lésbica?

Eu olhei para Eva e pensei que, tudo que tive era menor diante do que ela passou. Vivi durante um tempo com a dor, no entanto pude caminhar. Mas Deus! Como pesava em mim e como me esforçava para deixar ali, quieto no canto. Não cansava de ver Eva como uma pessoa muito forte, diante dos anos de tortura que passou com o pai.

– Eu me apaixonei, a primeira vez, quando tinha pouco menos da idade de Pepa. Estava tudo lindo, contanto que ninguém soubesse, claro. – Sorri irônica e Eva me acompanhou. – Um dia, viram a mim e a minha namorada nos beijando num parque, que costumávamos ir. A gente se encontrava lá por achar que ninguém conhecido nos encontraria. Normalmente, entrávamos pelas trilhas do parque e ficávamos em algum lugar que era pouco visitado.

Parei um pouco e me acomodei, encolhendo meus pés sobre o estofado. Àquela altura, eu e Eva não estávamos mais ligando para nossa aparência ou os vestidos bonitos que colocamos uma para a outra. Inspirei e continuei a contar a minha história, que eu mesma trazia soterrada. Tinha deixado para trás, como quase tudo e todos os lugares em que morei.

– Foi um primo dela que nos viu. Ele ligou para a mãe dela, que no pé que soube, acareou a filha quando chegou em casa e ligou para o meu avô. Eu morava com minha mãe e com meu avô. Meu pai tinha largado a gente quando eu ainda era criança, mas meu avô era um cara legal comigo, até aquele dia. Ele me surrou. Ah! Como ele me bateu!

Eva se retesou e pousou a mão em meu braço, fazendo um carinho suave. Talvez ela sentisse que tínhamos histórias parecidas. De certo modo, eram iguais no motivo, no entanto muito diferentes na conclusão.  Quantas histórias como a minha eu já tinha escutado na vida? Quantas outras de armário, como as dela mesma e, tantas outras de descobertas maravilhosas, cujos pais abraçaram seus filhos carinhosamente. Eu conhecia muitas histórias. Algumas tão duras e outras tão belas e agradáveis.

 – Ele me bateu tanto que tive duas costelas fraturadas. Batia e me xingava, ao mesmo tempo. Minha mãe tentou interferir e ele a empurrou, mandando-a para o quarto. Como ela não parava de segurá-lo, ele a agarrou e arrastou, trancando-a num dos quartos da casa.  Eu já estava quase sem forças, mas quanto mais ele falava, que se até à semana seguinte eu não estivesse com um namorado dentro de casa ele me expulsaria, mais eu o contrariava. Eu tive uma raiva tão grande… Não entendia por que não podia amar quem eu amava. Ele batia e eu falava que nunca ficaria com um homem.

– E você tinha essa certeza? Você nunca ficou com um homem?

– Já tinha ficado com garotos e a verdade é que eu não sabia se ficaria algum dia com outro homem, ou não. Ela era a primeira garota que eu namorei, mas me recusava a ceder diante das agressões dele. Em um determinado momento desacordei e quando voltei à consciência, já era madrugada e estava toda suja, embaixo de uma marquise, numa rua que eu não conhecia.

Eva se desencostou do sofá com o rosto crispado.

– Ele jogou você desacordada numa rua qualquer?!

Eu tinha um sorriso triste nos lábios e, naquele momento, eu vi o quanto meu avô me ajudou. Olhando Eva, eu fiquei imaginando o inferno que seria se ele não tivesse me descartado, principalmente pelo temperamento que eu tinha quando era adolescente e pelo que ele fez.

– Acredite, Eva, foi o melhor que ele poderia ter me feito. Lógico que se minha mãe não me encontrasse, minha vida poderia ter sido outra, ou talvez nenhuma. Eu estava tão machucada e tudo doía tanto que, naquele momento, só pensava que tinha que ir para um hospital. Não conseguia me mover, até que senti pessoas me segurando. Sabe essas pessoas que saem de madrugada para dar comida para moradores de rua?

Inspirei, tentando tomar alento diante de minhas lembranças, que não eram fáceis também. Vivi durante muito tempo, expurgando-as.

 – Naquela hora, eu acreditei muito que existia alguma força no universo olhando por nós. Eles me levaram para um hospital público. Como eu tinha visíveis traços de ecamento, a polícia de plantão assumiu o caso, só que eu não ficava consciente muito tempo. Isso foi outra sorte, pois quando eu tive condições de falar algo que me identificasse, já haviam se passado dois dias. Eu só conseguia dizer; “eu quero falar com a minha mãe; eu quero falar com a minha mãe”. – Parei um pouco, tentando me refazer e depois voltei a falar. – Eu sabia que se falasse alguma coisa de meu avô eles iriam atrás, mas eu estava tão doída por dentro e tão assustada, que nem isso eu queria mais. Queria ver minha mãe e sumir. Tive muito medo que fossem atrás dele e depois ele fazer algo comigo ou com minha mãe. Durante muito tempo, fiquei como medo do meu avô descobrir que eu estava viva e onde morava.

 Olhei Eva e uma lágrima corria por seu rosto. Estendi a mão para amparar a lágrima e acariciar a face dela.

– Ei. Isso já faz muito tempo, Eva. Não quero que fique assim por mim.

– Eu estou bem, só que… Deus, Olívia! Será que as pessoas só sabem agredir? É só essa forma que as pessoas sabem conversar?

– Não, Eva. Eu já escutei histórias tão bonitas de amigas minhas e seus pais… Mas, infelizmente, ainda existe muita ignorância e muitas sociedades alimentam essa ignorância.



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