Valência

Capítulo 27 – Ele fez o que prometeu

Entramos e tudo pronto, não houve grandes surpresas vindas do homem desprezível que era Antônio Gallardo. Ele deixou tudo para a neta, restando a Eva somente vinte e cinco por cento da parte que herdara de sua mãe. Eva se sentiu aliviada, afinal, já não se imaginava mais como dona da granja “Tierra Roja”. O velho Antonio não imaginava o bem que havia feito para a filha. Continuaria ajudando Pepa, como prometera e não queria mais fazer parte de um lugar que a fez sofrer tanto. Ela se sentia oprimida entre as cercas daquela granja.

À Pepa foram entregues os termos do testamento e, em algumas semanas, a documentação estaria pronta, em nome dela. Também entregaram as chaves de todas as portas da granja, bem como um envelope com as senhas dos dois cofres que existiam na casa: o da biblioteca, onde se encontrava tudo referente aos negócios de “Tierra Roja” e outro no quarto de Antônio Gallardo.  Ela estava constrangida diante da mãe. Nunca compreendera seu avô e, mais uma vez, ele deixara claro que os sentimentos que nutria por Eva não era amor.

– Mãe…

Eva sorriu e a abraçou. Sabia o que passava pela cabeça da filha. Entendia que o pai tinha colocado Pepa numa situação difícil.

– Agora está tudo no lugar certo, filha. A granja é praticamente sua, como deve ser. Não pense nos “por quês”. Seu avô era um homem singular e estou feliz que esteja tudo com você.

Singular era uma “porra”. Ele era um homem odioso na minha opinião, mas Eva sempre colocava panos quentes, para não passar essa imagem do avô para a filha.

– A senhora vai voltar para fazenda Esperanza hoje?

– Vou sim. Amanhã tenho que acompanhar, logo cedo, o envasilhamento da nova safra de vinhos, ainda tem alguns barris que não engarrafamos. Depois de tudo encaminhado, venho para cá para ajudar Ramirez e você.

– Tá. Então, amanhã eu espero a senhora. – Sorriu.

Nos despedimos e Eva me deu uma carona até o centro. Eu tinha que ver questões da minha tienda e depois iria para o clube dar a minha aula. Não dormiria com Eva naquele dia. Eu comecei a implicar com ela, dizendo que não morava mais no meu apartamento e estávamos comprovando a velha teoria das lésbicas: quando começam o namoro, logo vão morar juntas. Ela ria e perguntava se eu não estava gostando. Como não gostar de dormir todo dia agarrada a ela? Isto era outra coisa que me fazia pensar, pois nunca quis isto para minha vida. Era estranho não estar mais satisfeita em ter a minha liberdade e gostar tanto de ter minha vida atrelada a alguém. No entanto, cada vez que pensava sobre este assunto, eu eava de meus pensamentos, porque não queria estragar a paz que começou a se fazer entre nós, mesmo que frágil ainda.

***

Eva acordou cedo e fez, exatamente, o que tinha planejado. Monitorou o envasilhamento da nova safra de vinho, pegou o carro e foi para a granja. Quando chegou, foi abordada pelo Ramirez, logo na porta.

 – Dona Eva… – Chamou.

O administrador estava envergonhado e não sabia como se reportar a ela.

– Minha filha está na granja, Ramirez? – Perguntou.

Ramirez estava visivelmente consternado. Não sabia o que tinha ocorrido, mas fora avisado por Pepa Gallardo que não deixasse sua mãe entrar. Ela não queria vê-la.

– Dona Pepa pediu para que a avisasse que gostaria de ficar sozinha e que não queria ver a senhora, dona Eva. Disse para não deixa-la entrar.

– Não me deixar entrar? Ela quer ficar sozinha? O que aconteceu, Ramirez? – Perguntava Eva, alarmada.

– Eu não sei, dona Eva. Ela disse que ontem, quando saíram, foi verificar o cofre do quarto do avô. Ela queria saber o que havia dentro, pois achava de tinha coisas da família. Foi quando reafirmou a ordem de não deixar que a senhora entrasse aqui na granja, mas não me falou o motivo. Só disse que achou coisas interessantes dentro do cofre.

Eva estava parada em frente à entrada da casa, escutando tudo que Ramirez falava. Fechou os olhos, apertando-os com força. Tremeu, imaginando o que seu pai havia deixado naquele cofre. Os olhos lacrimejaram e olhou para cima em direção à varanda do quarto de Pepa.  Pode ver Pepa, retornando ao quarto, quando a mãe a olhou.

– Diga para ela que estarei na fazenda Esperanza. Que eu estarei sempre disponível para quando ela quiser conversar.

– Sim, senhora. – Ramirez falou e se retirou.

Eva me ligou, falando o que ocorrera. Chorava copiosamente e eu a escutava soluçar. Meu coração se apertou. Quis me encontrar com ela, mas me falou que se Pepa a procurasse, queria conversar com a filha a sós. Foi quando liguei para Lito, tentando descobrir o que acontecera. Ele não me atendeu. Insisti, mas ele não atendia o celular de jeito nenhum. Comecei a me desesperar. O que aquele velho tinha feito dessa vez? Resolveu dar sua última cartada de maldade para quando não estivesse mais aqui nesse chão? Eu imaginava milhares de coisas, como ele ter investigado minuciosamente a vida de Eva, por exemplo, e deixado as coisas lá dentro do cofre. Não dava para saber o que ocorrera. Meu nervosismo com a situação aumentava cada vez mais. Liguei para Lúcia e lhe contei o que Eva me falou.

– Calma, Olívia. Pepa ligou para o Lito ontem à noite, chorando. Ele foi até a granja e ficou com ela, até hoje cedo. Parece que o senhor Gallardo deixou uma carta e alguns outros documentos, como fotografias, não sei bem ao certo. Não sei de detalhes, pois ele foi superficial e saiu logo depois. Foi visitar uma loja para alugar. Ele quer abrir o estúdio dele.

– Como assim, foi superficial? Lúcia, isso é grave! Lito não vê que aquele velho pode destruir de vez a vida de Eva e da Pepa?

– Olívia, eu sei que pode parecer falta de compromisso do Lito, mas a verdade é que se a Pepa pediu para ele não contar nada, o garoto vai ficar numa encruzilhada.

– Que merda! – Gritei. – Eu vou ligar para Eva. Ela tem que saber pelo menos isso. Não pode ficar às escuras.

– Está bem. Eu vou tentar falar com o Lito, hoje à noite.

Liguei para Eva e ela me atendeu reticente. Contei sobre a tal carta e especulamos coisas a respeito. Dava para imaginar o que aquele velho asqueroso colocou na tal carta, mas não sabíamos como contou, ou melhor quais fatos ele colocou e como os descreveu. Isso era uma das angústias de Eva. Quis ir até a fazenda e, mais uma vez Eva pediu para que não fosse. Falou que, diante do pouco que sabíamos, gostaria de esperar pela filha. Se a garota fosse procura-la para conversar, minha presença poderia complicar tudo. O problema é que Pepa não a procurou, nem naquele dia e nem nos subsequentes. Eu sofria por Eva não querer me ver e, me preocupava por saber que ela poderia estar desmoronando de novo. Ela ainda estava em processo de recuperação do colapso. Procurei Pepa. Ela também se recusou a me encontrar. Eva pediu licença no clube, novamente, e comecei a me desesperar.

 Um dia, fui até o apartamento de Lúcia. Queria falar com Lito, pois ele também não estava mais indo às aulas de jiu-jitsu. Eu sangrava e queria parar essa “coisa” dentro de mim. Assim que cheguei, vi Lúcia sair do prédio acompanhada de Alonso. Ela retornou o passo, pedindo para que ele a esperasse no carro. Ela se aproximou de mim e me abraçou.

– Que loucura! Como você está?

– Como acha que estou? Um trapo. Pepa não quer ver a mãe, e Eva não quer me ver, pois acha que o pai pegou algo entre nós e não quer dar motivos à Pepa para não recebe-la. A gente nem sabe o que aquele velho escroto colocou na carta ou as outras coisas que deixou.

– Que loucura do senhor Gallardo! Hoje acredito que ele, realmente, odiava Eva.

– Você sabe o que tinha escrito na carta? O Lito te contou alguma coisa? Tenho certeza que ele sabe do que se trata e não quer me ver, porque não quer ficar mal com Pepa.

– Ele desabafou comigo, pois a Pepa não anda nada bem. Apesar dele falar com ela que o avô era dissimulado, parece que o senhor Gallardo teceu bem a cronologia dos fatos. Disse na carta que Eva odiou Pepa, desde o momento em que soube da gravidez, por ser a causa de não realizar o sonho da vida dela. Disse que ele é quem fazia Eva trata-la bem e que, um dia, descobriu que Eva viajava sozinha para participar de orgias com mulheres. Que ela só não fazia aqui na cidade, porque ele a ameaçava tirar tudo.

– Que canalha! Isso é mentira! Nada disso aconteceu.

– Só estou resumindo, pois parece que a carta tinha umas quatro ou cinco páginas com assuntos bem detalhados. Pelo que Lito contou, parece que ele também foi claro quanto a sexualidade de Eva. Disse que ela tinha um romance com uma mulher. Falou que mandou investiga-la e mandou tirar fotos. Para bom entendedor, pingo é letra. Você é que tem andado com Eva, constantemente e, talvez por isso, Pepa não queira lhe ver. Ela também é teimosa demais para escutar o Lito.

– Droga! Não fui eu que aquele cretino fotografou. Bom, pelo menos da última vez que ele mandou um detetive atrás de Eva. A não ser que ele o tenha mandado novamente…

– O quê? Então Eva já teve um relacionamento anterior a você?

– Não. Quer dizer… Ah, Lúcia, isso é uma longa história. Depois, se tiver oportunidade, eu conto. O fato é que estou muito preocupada com Eva. Ainda estava se recuperando. Tinha crises de ansiedade, eventualmente, além de instabilidade de humor. Tinha dias que ainda acordava com angústia, tristeza e abatida. Eu estou com medo que ela faça uma besteira qualquer.

– Apesar dela confiar e te amar, você também está ligada a toda essa confusão. Talvez pense que o velho tenha falado que ela era homossexual e que a filha ligue você a isto tudo, o que de fato ocorreu com Pepa. Falou para Lito que agora entendia a mãe se abrir tanto com você.

– Que merda, Lúcia! – Falei desesperada. – O maior medo da vida de Eva era que Pepa soubesse e a odiasse por isso. O pai sempre colocou na cabeça dela, através de ameaças, dia após dia, ao longo da vida, este medo.

– Eva vai manter você longe para tentar fazer com que a filha vá falar com ela. Lito falou que ela liga todos os dias para Pepa. Seria bom se ela tivesse alguém que confiasse o bastante para se abrir.

– Você me deu uma boa ideia.

– Não vai aprontar nenhuma besteira, Olívia.

– Não, não vou aprontar nada.

Eu disse para Lúcia que não ia aprontar nenhuma besteira, mas eu, definitivamente, ia fazer alguma coisa. Não podia ficar passiva.

****

– Você acha uma boa ideia, Lúcia? Pepa nem conhece você direito. Não gosto de me meter no problema dos outros.

– Alonso, não é problema dos outros. São pessoas ligadas a nós. Lito está mal, porque a namorada está mal. Olívia está mal, porque Eva está mal e você mesmo, tem demonstrado preocupação com Eva. Parece que nos enfiamos num ciclo de conspiração astral. Todos ligados a nós estão mal! – Lúcia decretou.

– Você sabe o que representa para Eva se esse assunto começar a ser ventilado na cidade, não sabe? Tenha cuidado, pois se os empregados escutam, não ficam com as línguas presas na boca. Não gostaria de ver Eva sofrer mais ainda por conta dessa história. Ela tem sofrido ao longo da vida inteira.

– Pode deixar.

– Vou ficar do lado de fora.

Lúcia subiu as escadas da varanda da granja, acompanhada do rapaz que guardava os carros. Entrou na sala e o menino pediu que aguardasse. Olhou o living, sala de estar e as escadas. Já eram sete horas da noite. Um tempo depois, viu Pepa descendo as escadas.

– Oi Lúcia, tudo bem?

– Tudo bem, Pepa. E você, como anda?

– O Lito deve falar algo a meu respeito para você, então… – Encolheu os ombros. – Na medida do possível.

– Por isso que vim conversar com você. Gostaria de lhe falar, em particular.

– Se está querendo livrar a barra da Olívia, pode esquecer, Lúcia. Sei que é amiga dela. Ela não foi transparente comigo.

– Não estou querendo livrar a barra da Olívia. Meu assunto é o Lito, no momento.

– O Lito? O que tem o Lito?

– Podemos conversar num lugar mais reservado?

– Sim, pode me acompanhar até a biblioteca.

Andaram pelo corredor e entraram na biblioteca. Aquela que tinha uma porta para um ambiente de estudos, em que a Eva havia me levado uma vez. Entraram e Pepa sentou numa poltrona.

– O que está havendo com o Lito?

– Está cada dia mais acabrunhado e triste com o que tem acontecido com você.

– Lúcia…

– Não, Pepa. Me escute e depois você pode falar, me colocar para fora ou qualquer outra coisa.  – Lúcia que ainda se encontrava de pé, sentou em outra poltrona. – Tudo que tem passado foi desencadeado pela carta que seu avô deixou para que só você lesse, certo?

– Uma carta muito esclarecedora. – Sorriu sem ânimo.

– Uma carta que pode estar recheada de mentiras. Já parou para analisar como seu avô era com sua mãe e com você? E como Eva lhe tratou a vida inteira? Como ele era com as pessoas à sua volta, seus negócios… e como sua mãe se portava diante disso?

– Que pode muito bem ser explicado pelos fatos que ele colocou na carta.

– Ou pode ter enviesado os fatos, só para te colocar contra sua mãe. Qual é o mais provável diante do perfil que ele sempre teve?

Pepa olhou para Lúcia em dúvida, diante das perguntas que ela fazia.

– Você não está dando oportunidade à sua mãe de se explicar, se é que tem alguma explicação para a ação covarde de seu avô. Uma pessoa com boas intenções não esperaria que a morte viesse para lançar, covardemente, uma dúvida sobre a própria família. Independente de existir verdades, ou não, no que escreveu, não existe dignidade no que ele fez. O que por si só, valeria a pena ver o fundo disso.

– Talvez, Lúcia, mas…

– … Eu não acredito que você tenha deixado de gostar da sua mãe de um dia para o outro.

– É claro que não! Eu fiquei muito magoada com ela e tô sofrendo também.

– Pepa. – Lúcia se levantou e se ajoelhou de frente para Pepa, segurando a mão dela. – Não se magoe e não magoe outras pessoas, por conta de uma história que não sabe como aconteceu. Dê uma oportunidade para você, sua mãe e até mesmo, Olívia.

– Então minha mãe e Olívia tem, realmente, um relacionamento?

– Esse não é o caso. Olívia sofre porque sua mãe se isolou na fazenda e não quer ver ninguém. Eva está esperando que você a atenda. Olívia está preocupada com medo que sua mãe faça alguma besteira. Ela ainda estava se recuperando e tinha crises de depressão e ansiedade.

– Ela está sozinha na fazenda?

– Está. E Olívia tenta, todos os dias, falar com ela para saber como está e sua mãe se nega a ver qualquer pessoa.

Pepa olhou através da janela e deixou uma lágrima escorrer. Lúcia continuou.

– Olívia me procurou hoje para tentar falar com Lito. Ele a está evitando e está engasgado com isso, pois gosta dela. Foge de Olívia para não trair a sua confiança, Pepa. Olívia está às cegas e, se eu bem a conheço, vai acabar fazendo alguma bobagem.

– E elas tiveram um relacionamento?

– E isso importa? E se elas tiverem um relacionamento e se amam? E se sua mãe estivesse feliz com isso?

– Mas, Lúcia…

– … Acha que sua mãe interferiria num namoro seu, se visse que você estaria feliz? O Lito pode ser tudo, menos um cara nos padrões que seu círculo social aprova. Por acaso, sua mãe foi contra, quando viu quem era o garoto que você estava namorando? Se ele não fosse um rapaz de caráter, provavelmente, ela interferisse, disso eu tenho certeza. Isto se chama amor, Pepa. Sua mãe não te odeia, como a carta fala. É outra coisa da qual eu tenho certeza.

Lúcia se levantou e pegou sua bolsa na poltrona.

– Agora eu vou embora. O Alonso está me esperando, mas por favor, pense no que lhe disse e não se magoe mais. Outras pessoas estão machucadas com isso tudo, e você também sofre. Seu avô podia ser um monte de coisas: um ótimo empresário, um nome poderoso na cidade, mas nunca foi um bom pai para Eva. Você mesma contou isso para Lito.

Deu um beijo na cabeça de Pepa e saiu. Quando chegou ao carro e entrou, Alonso logo a interpelou.

– E aí?

– Não sei, Alonso, mas sei que ela vai pensar nas coisas que falei. Não pode ser tão cabeça dura.

****

Nota: Como havia dito no outro capítulo, desconheço as leis espanholas em relação a partilhas e testamentos, e tomei como uma “licença, ou liberdade de expressão literária” para colocar da forma que me aprouvesse. Lembrando que Pepa é emancipada, já que seu avô e a mãe fizeram este trâmite para que ela acompanhasse a mãe no hospital quando ela estava internada.



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