Valência

Capítulo 30 – Pro dia nascer feliz

Após a conversa de Eva com Ramon…

– Como foi?

Perguntei para Eva, assim que ela entrou em meu apartamento.

– Previsível. Ramon tentou negociar uma renúncia minha. Lógico que neguei. Eu não quero mais ficar no clube, mas quero que o conselho tenha “cojones” para me colocar para fora. Quero que eles exponham e quero colocar um processo por conta disso, nas costas deles.

– Para que isso, Eva? Deixa para lá.

– Deixar para lá? Lógico que não, Olívia. Eu não me importo com o dinheiro, mas eles foram coniventes. Cada vez que me enfronho mais nessa história, vejo que meu pai teve apoio do conselho e de conhecidos dele. Alguns sabiam o que aconteceu comigo e com Antonella, contado por meu pai. Foi quase um pacto de sangue feito com ele.

– Calma. De qualquer forma, você já está negociando com o Clube Senderos. Vai montar sua própria sala de treinos de esgrima.

– É. O mais engraçado é que não escondi o motivo da minha saída do clube Aragon e eles aceitaram. – Eva me abraçou e deu um beijo, de leve, em meus lábios. – E você? Vai aceitar dar aulas lá?

– Não sei, Eva. Agora as coisas estão começando a complicar para mim. A tienda está fornecendo para restaurantes de outras cidades e minha mãe me convenceu a colocar produtos brasileiros nela. É um diferencial. Por conta disso, aumentou a minha clientela. Imigrantes brasileiros têm vindo comprar comigo e, agora, dois restaurantes especializados em comida brasileira também. Não sei se vou dar conta com as aulas.

– Vai por mim. Nem que seja num horário só, e à noite. Dar aula relaxa a gente. Nisso, eu e você somos parecidas. – Sorriu. – Não acha que está na hora de sondar o dono do prédio ao lado da sua tienda? Do jeito que está indo, em breve terá que aumentar o espaço novamente. – Eva andava otimista.

– Ih, para! Você e minha mãe tem que dar as mãos. Deixa eu ir devagar. Estou indo bem assim, do meu jeito.

****

– Tem certeza, Pepa? Por que não vem morar comigo na fazenda? Deixe a granja só para os negócios. Ou acha que…

– O que mãe?

– Bom, não sei… As pessoas estão falando de mim por aí e, sei que não deve ser fácil para você.

– Ah, qual é mãe? Deixa de paranoia. As pessoas falam sim, mas não compensam a alegria que a gente está tendo, certo? E depois, eu ter ganho o nacional na esgrima pelo clube Sendero foi o máximo. Adorei. – Gargalhou. – Encontrei Ramon no bistrô da Lúcia e fiz questão de cumprimenta-lo. Ele me deu os parabéns pra lá de engasgado. 

Eva riu com gosto. Estavam vendo as mudanças na casa da granja. Pepa fizera dezoito anos e Lito estava morando com ela. Ela contratou um arquiteto e designer de interiores. Falou para a mãe que aquilo parecia um mausoléu e queria repaginá-lo. Eva não foi contra. Aquela casa trazia lembranças que ela não queria ter. Talvez se ficasse com uma cara diferente, ela se sentisse mais à vontade. Eva ia todos os dias para a granja, ajudar Pepa na administração, mas não queria mais seu nome vinculado aos negócios de “Tierra Roja”.

– Mãe, deixa eu te mostrar outra coisa. Olha isso aqui.

Pepa abriu um portfólio em cima da mesa do escritório. Eva começou a ler e observar as chamadas do panfleto em sua mão.

– “Villa del Vivas”? Filha, você está querendo mudar o nome da granja?

– Eu estou querendo mudar muita coisa. Uma delas é o nome da granja, mas não se assusta. Eu vou começar a lançar esse nome para todos os nossos clientes, antes de mudar. Farei gradualmente. “Tierra Roja” não é mais o seu lugar e, muito menos, o meu.

Eva fez um carinho no rosto da filha, beijou seu rosto e não resistiu; abraçou-a emocionada. Eva estava me saindo uma “bela manteiga derretida”.

*****

Quase dois anos havia se passado e com ele muitas coisas ocorreram, uma delas foi Eva voltar a competir em campeonatos de másters.

– Calma, Eva! Vai dar tudo certo.

– Tudo certo? Ai, Jesus! Já estou velha para isso. – Falou em desespero.

– Me olha. Olha para mim, agora. – Segurei sua face, entre minhas mãos. – Isso é um campeonato de másters. Todas que estão aqui tem a sua idade ou mais.

– Não. Você não está entendendo. Isto aqui é o campeonato mundial de másters. Eu não participo de campeonatos assim desde os meus dezoito anos, Olívia.

– Você passou por seletivas e se classificou. Tem tanta capacidade como qualquer outra que está aqui.

– Olívia, meu desespero é um pouco maior. Todas que estão aqui, são as mesmas garotinhas de dezessete e dezoito anos da minha época de adolescente. Competiam comigo naquela época, com uma diferença: elas disputaram mais mundiais que eu e também disputaram Olimpíadas. Todas podem estar, hoje, num mundial de másters, mas eram muito boas e tem uma vivencia maior que a minha. Deus! O que eu estou fazendo aqui? Minha filha tem só vinte anos e daqui a uma semana vai dar uma recepção lançando a nova marca da granja!

– Para, Eva! – Segurei-a novamente. – Sua filha está ali na arquibancada, feliz da vida.  Olha para mim. – Sacudi seus ombros, de leve. – Isso não é para você ganhar ou perder. Está aqui para a adrenalina da competição circular por suas veias, novamente, ok? Não importa se vai ganhar. Apenas desfrute.

Ela parou com o surto e me fitou. Inspirou fundo e deixou o ar vazar pela boca, relaxando os ombros.

– Tudo bem. Foi uma histeria momentânea. Eu sabia que Stella Bravo estaria aqui, mas vê-la em carne e osso, acho que me destemperou.

– Quem é Stella Bravo? – Perguntei, sem entender o que Eva falava.

– É a maldita italiana que quase me desclassificou quando tentava índice para a Olimpíada.

Eu comecei a gargalhar.

– Não acredito que você ainda se lembra disso. – Falei rindo.

– O quê? Eu vivia perdendo para essa mulher! O que Antonella tinha de simpática, essa bruxa tinha de arrogante! Ainda por cima, vai ser minha primeira disputa.

– Ei! Qual o combinado? Nada de falar de ex.

– Olívia, Antonella morreu. Isso não entra no rol de “não falar qualidades de ex”.

– Morreu, mas é a pior. Você foi apaixonada por ela!

Para minha surpresa, Eva me agarrou no meio da área de aquecimento e me deu o beijo mais gostoso, desde que chegamos a Paris para essa competição.

– Isso é para você não ter dúvidas do que sinto por você!

Falou me olhando, diretamente. Virou para o lado e acompanhei seu olhar. Uma competidora morena, de cabelos fartos, passava nos reparando. Eva sorriu e piscou para ela. A mulher virou a cara, movimentando o florete, cortando o ar. Se postou na área de espera.

– É ela?

– É.

– Por que você piscou para ela? Você queria provoca-la?

– Ela me olhou com cara feia. Continua nojenta como antes. – Encolheu os ombros.

– Você é uma figura, Eva. A gente tem que ter você como amiga, sabia? – Gargalhei.

Eva não cansava de me surpreender. Cada dia ela se mostrava mais, e o pior, às vezes eu tinha que contê-la. Eu ria com as reações dela, mas até compreendia. O problema é que eu já tinha vivido muito nesse mundo, para saber que, mesmo assumidas, em alguns espaços tínhamos que segurar a onda. Não aqui, lógico. Gostei de ver a cara de chocada da tal da Stella. “Bruxas más”, a gente tem que sacanear.

Infelizmente, tínhamos que voltar depois da competição, mas com certeza, traria Eva para passar uma semana em Paris, noutra época. E por que não? França era coladinha na Eha.

****

– Feliz?

– Mm?

– Por sua filha? Você está com um enorme sorriso.

Estávamos de pé, cochichando próximo ao jardim da Villa del Vivas. Era a inauguração da nova marca. “Tierra Roja” ficaria no passado daquela granja.

– Não é por isso. Minha filha já mora com Lito há um ano e meio, já conduz a granja com certa segurança. Tem ideias ótimas para alavancar os negócios e vai bem na faculdade. Aliás, nem sei por que ela quis se juntar com ele. Eles são tão novos…

– Não derrama suas frustrações sobre a garota. – Impliquei com ela. – Pensa só que ela vai sair por aquela porta e caminhar entre os convidados como a nova empresária no ramo de vinhos e haras.

Falei implicando, mas não entendia ainda o grande sorriso de Eva. Está certo que tudo ia bem com a recepção, mas era um sorriso diferente.

– Por que está com esse sorriso, então?

– Porque estava me lembrando da competição. Apesar de ter ficado em segundo lugar, tirei a bruxa da Stella nas eliminatórias. “Vingancinha” pessoal.

– Que horror, Eva Vivas!

Sorri, satisfeita. Eva estava com este sorriso cínico desde o mundial de másters, mas não me falava o que era. Achava que ela ficaria decepcionada com a medalha de prata, o que não ocorreu.

– Acho que os dois são novos demais para tanta responsabilidade.

– Que coisa estranha ver o Lito num terno “embecado”. E ainda por cima branco.

– Pepa disse que queria uma recepção de gala, como manda o figurino, e ele disse que só colocaria terno se fosse branco. Falou que “Pinguim de Batman” era ridículo.

Eu ri um pouco mais alto e o pessoal que estava sentado em mesas próximas, olhou para nós. Eva me cutucou nas costelas.

– Pelo menos, ele colocou uns alargadores fashions naquelas orelhas. Tem até uns brilhinhos. Parece uma bichinha.

Dessa vez, foi Eva quem riu, chamando a atenção para nós.

– É de ouro branco e brilhantes. – Eva completou, rindo.

– Sei. Entendi. Pepa deu para ele também.

– Esse aí, ela não deu. Ele que comprou e mostrou ontem. Disse que já que estava amarrado nessa “babaquice”, não podia ficar por baixo.

– Ih… fodeu! Vou sacanear o moleque.

Eva prendeu o riso.

– Para, Olívia. Todo mundo já está reparando na gente.

– Não é por que estamos gargalhando. Você não sabe que estão reparando porque a gente é “sapatão”?

Eva prendeu mais o riso. Se virou e saiu pela lateral, indo em direção à casa. Depois retornou, acompanhada de, nada mais nada menos que, a duquesa de Lerma e uma amiga dela. Eva e Leonor estavam sorridentes. Me segurei para não ir até elas. Se eu ainda tinha ciúmes de Leonor? Sempre. Meu ciúme com ela não diminuiu, mas me segurava, pois sabia que uma das poucas pessoas que deram força para Eva foi a duquesa. O problema é que Leonor não parou de me provocar, nem quando disse que estava feliz com a vida que Eva conquistou junto a mim. Eva me procurou com o olhar e fez um gesto para que eu me aproximasse.

– Como vai, Leonor? – Falei, estendendo a mão para ela.

– Ah! Vou muito bem e, agora, mais feliz ainda por me chamar de Leonor, finalmente.

Riu um pouco mais alto, me deixando envergonhada. Ela não podia deixar passar. Por este motivo que eu me batia com ela, será que ela não via? Eva não tripudiou, abafando o riso, mas dava para perceber que ela fazia uma força enorme para isso. De repente, eu mesma abanei a cabeça, me rendendo.

– Tudo bem, senhora duquesa de Lerma, poderia me deixar em paz ao menos hoje?

Perguntei debochada e sorri. Ela devolveu o sorriso, pela primeira vez, sem aquele ar irônico que sempre a acompanhava. Fez um pequeno gesto com a cabeça e se voltou para a sua acompanhante.

– Queria apresentar uma amiga. Esta daqui é a condessa Paloma Javier e temos estreitado, muito, nossa amizade.

Falou instruída. Não pude deixar de reparar nos olhos da duquesa, com aquele ar apaixonado. Sabia que elas nunca se assumiriam, socialmente. Sabia que Leonor nunca deixaria o casamento e, se esta condessa também fosse casada, idem. Pelo menos, justificariam perante a sociedade estarem sempre juntas. Faziam parte do mesmo círculo social e não seria difícil, olhando por este lado. Vi que Eva estava feliz pela amiga.

– Bom, pelo menos vocês poderão se juntar na sala de costura da casa de uma de vocês e fazer meias, sem que alguém perturbe. – Falei.

A gargalhada foi geral e a resposta da tal condessa foi melhor ainda.

– Prefiro me juntar na cozinha e bater um bom bife com Leonor.

Fiquei chocada com a tal condessa e ri horrores! Gostei da mulher de Leonor. A duquesa não estava com o marido, pois o despachou com um “amigo” para que fossem esquiar nos alpes. Mais tarde, conversando, entendi que o arranjo do casamento de Leonor havia se dado por conta dos dois. O problema deles é que tinham que ser muito discretos e cumprir determinados protocolos, como ir à recepções juntos, demonstrando amor transbordante, como se o casal estivesse eternamente enamorado. Enfim, cada um com seus problemas e arranjos.

****

Houve uma cerimônia de benção da “Villa del Vivas” por um pároco. A cerimônia foi muito bonita. Com direito a Eva chorar; eu e Lúcia também. Parecia até casamento com todo mundo chorando, só Pepa e Lito não choraram. Eles traziam no rosto um sorriso de orelha a orelha. Eu comecei a achar que estava amolecendo de vez.

Pepa estava arrebentando no mundo dos negócios. Ela convidou amigos dela e de Lito, mas esse não foi o foco dela. Convidou grandes compradores da Villa del Vivas e, junto, convidou alguns figurões da cidade. Uns deles eram velhos conhecidos meus e de Eva. Acredito que ela tenha feito isso para “botar no saco”, pessoas como “Ramon e companhia”.

Eu tinha me afastado um pouco. Recepções deste tipo não eram muito minhas amigas e todos sabiam disso. Estava comendo umas coisas gostosas que tinha em cima da mesa, quando Lúcia se aproximou.

– Gostou do buffet?

– Sabia que seria o seu bistrô a fazer. – Sorri. – Está tudo gostoso. O que é isso?

Peguei uma barquinha feita com uma massa, que tinha um creme rosado dentro. Enfiei na boca. Estava gostoso. Lúcia abriu um sorriso tão grande que eu parei na hora de comer. Olhei a mesa e tinha uma plaquinha escrita: “Tortelê de lagosta e chouriço”.

– Agrr! Você me enganou!

Lúcia soltou uma gargalhada que me deixou com raiva. Quase limpei a língua com o guardanapo.

– Não enganei. As plaquinhas estão aí para quem quiser ver. Você é fresca. Até a hora em que leu, estava achando delicioso.

– Não estou mais. – Dei um grande gole no vinho. – Não quero assunto com essa espécie de comida, tá?

Senti minha cintura ser envolvida.

– Está tudo delicioso, Lúcia. Ela é fresca mesmo.

– Amor. Você tinha que me defender!

Eva e Lúcia se juntaram num riso gostoso. Eu nunca imaginaria que chegaria a esse ponto e não pude deixar de rir também. Só Alonso que estava passando uma barra. O filho dele estava preso por atropelar duas pessoas num acidente de transito. Ele era reincidente. Um ano atrás, havia se envolvido em outro acidente, machucando outras pessoas. Desta vez, uma delas morreu. Alonso estava cortando um dobrado.

– O que acha do nome Vivas e Ávila?

– O que?!!

Foi a única coisa que consegui falar diante da pergunta de Eva, ela começou a rir e me acalmou.

– Calma, meu amor! Não estou te pedindo em casamento. Parece até que tem alergia. Se quer ficar dormindo longe de mim… – Deu de ombros. – Eu estava pensando em abrir uma empresa para atender turistas que querem fazer o circuito do vinho e gastronomia. Algo como um passeio entre vinícolas, mas, ao final, almoçariam ou jantariam com vinhos harmonizando.

– Isso tem aos montes, Eva.

– Nem tanto em Valência. A maioria são circuitos gastronômicos. De qualquer forma, a diferença para as outras empresas que fazem este tipo de excursão seria que, em vez de almoçarem ou jantarem num restaurante, proporcionaríamos um passeio de iate, pela baia de Valência e comeriam no iate.

– Gente! Você não para não, Eva?

Eu ficava etada como ela estava sempre pensando em algo novo. A criatura não parava e eu me cansava só de escutá-la falando.

– Só posso lhe falar uma coisa. Vamos pensar nisso depois das nossas férias. Estamos há dois anos sem parar; você na fazenda e na granja e eu, com a tienda.  Quero visitar minha mãe e tô com saudades do Rio e do Brasil. Quer conhecer minha terra e minha mãe, pessoalmente? – Perguntei.

Ela transbordou emoção pelos olhos e meu coração acelerou, só de entender que tinha tocado ela com o convite.

– Vou amar conhecer sua mãe e sua terra… mas…

– Mas?

Fiquei confusa e com uma opressão no peito pela resposta.

– Mas pode ser daqui a um mês e meio? É que, pelo índice que fiz no mundial de másters desse ano, fui convidada para participar do torneio europeu de verão de másters e eu queria participar. 

Essa era a minha mulher. Linda, forte e, hoje, a mulher mais decidida que conheci. Eu era apaixonada por ela, mas quem mais nessa vida conseguiria me convencer a voltar a disputar torneios de Jiu-jitsu também? É, ela fez isso e olha que eu era boa lutadora. Convencida também, mas era boa no que me metia a fazer. Não se esqueçam que eu me empenhei em fazer Eva me amar, me aceitar na vida dela e que ela aceitasse a sua própria vida.  

Fim



Notas:



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Uma resposta para Capítulo 30 – Pro dia nascer feliz

  1. Querida Carolina, que prazer ler esta história! Amo como descreves as situações, os sentimentos, as personagens e seus conflitos, os ambientes e toda a atmosfera que nos leva a viajar na trama. Já li e reli e sempre Valência e sempre me encanto. Um beijo no teu coração, autora querida e até a tua próxima aventura! 😘😘😘

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