Valência

Capítulo 5 – A Batalha continua

Eu continuei na minha rotina o resto da semana. E me dei o prazer de fazer uma visita na “Cidade das Artes e das Ciências1”, coisa que vinha planejando e sempre adiando. Não por ser distante, na verdade, ficava nas cercanias do centro histórico e sempre passava por lá, mas visitar que era bom, nada. Como Lito era novo na cidade, resolvi embarcar no “tour” que a Lúcia fez com ele por Valência. Fiquei maravilhada e me odiando por não ter visitado antes. Era um complexo magnífico, construído há pouco tempo e a arquitetura “neofuturista” de Santiago Calatravas2 harmonizava, incrivelmente, na área das cercanias com as construções seculares do centro histórico. Não era só de passado que Valência vivia. Eu sempre fui de admirar a diversidade que existia pelo mundo. Aqui, a diversidade arquitetônica dava o tom da cultura passada e abraçava, carinhosamente, o futuro.

Uma coisa me incomodou bastante durante estes dias; às vezes, lembrava do beijo que roubei da criatura que mais me perseguia. Elas vinham sem aviso. A boca convidativa, os lábios macios e a língua pulsante, movendo em sincronia com a minha, propiciou um encaixe bem gostoso. Aquele beijo foi muito breve, mas em alguns momentos, me pegava nesta lembrança e uma fisgada acometia meu ventre, dando sinais que meu corpo reagiu, positivamente, àquela mulher. Eu sabia exatamente o que era. Sempre gostei de mulheres de personalidade forte, mas isto era demais! Tudo bem, que os desafios comumente me atraíam, mas a tal da Eva era a maior “algema enferrujada e perigosa”. Tinha que extirpar esse tipo de pensamentos e nem deixar que esses sentimentos me instigassem.

Descobri, em conversa com algumas pessoas, que ela era viúva. Pepa não chegou a conhecer o pai, que morreu num acidente no trabalho, enquanto Eva estava grávida. Depois disso, a mulher nunca mais casou. Parece que o cara era dono de uma frota de barcos de pesca turística, além de ser dono de uma construtora. Outra coisa que descobri é que o dedo dela era podre para homens mesmo. Quem conheceu o cara, disse que ele era o maior grosseirão, asqueroso e tinha o triplo da idade dela na época. Algumas bocas mais saidinhas falaram que o casamento tinha sido arranjado. Eu não acreditei muito nessa conversa; afinal, ela tinha um temperamento do cão. Não acredito que concordasse com um casamento destes e, efetivamente, se casasse. E lá estava eu pensando nela de novo e, o mais grave, tentando saber da vida daquele ser.

A semana de folga do clube passou e meu empréstimo estava em vias de sair. Pois é, resolvi me endividar, aceitando a oferta de meu senhorio. Iria comprar o prédio onde havia minha tienda e meu apartamento. Provavelmente, ficaria encalacrada durante uns bons tempos.

Cheguei ao clube para dar a aula da manhã, acompanhada de Lito. O cara se incentivou em praticar uma luta e resolveu fazer jiu-jitsu comigo nessa turma que era praticamente de iniciantes. Conversávamos, animadamente, quando entramos na alameda que dava para a construção em que meu tatame se localizava. Eis que esbarro com a criatura, para meu azar e, acompanhada da filha. Estavam sorridentes, porém, logo que ela me viu, desmanchou o sorriso, deu um beijo no rosto da filha e tomou o rumo do caminho lateral. Pepa veio de encontro a nós, com o mesmo sorriso no rosto.

 – Aquela era a tal recalcada?

Lito perguntou ao pé do ouvido. O garoto era antenado. Só pela cara que fiz e pelo passo que retardei, ele sacou de cara de quem se tratava.

– Era. – Respondi de cara fechada.

– E quem é essa gatinha que tá vindo em nossa direção?

Olhei para ela, rindo do que ele tinha perguntado. Ele não tirava o olho da Pepa. Lá ia eu, mais uma vez, ser acusada pela “dona da verdade” de incentivadora de romances tortos, sob o olhar social que a “magnânima” tinha, lógico. Gargalhei.

– É a filha dela.

– Por Cristo! Espero que ela não seja chata e retrógrada como a mãe. Seria um desperdício…

Eu ri mais ainda com as palavras do garoto.

– Não vai me arrumar encrenca, einh? Se pegar, não sacaneia a garota.

Pepa se aproximou e ele não teve chances de retrucar. Abriu um enorme sorriso e se postou ao meu lado, como se quisesse ser visto. Acho que ele não tinha noção do tamanho dele. Não dava para um cara grande daqueles, cheio de tatuagens, não ser reparado, nem que ele quisesse se esconder.

– Olá, Olívia.

– Oi, Pepa, tudo bem?

– Tudo certo. – Ela olhou para ele. – Aluno novo? – Sorriu, olhando nos olhos de Lito.

– Sim. Esse é o Lito, enteado de uma amiga. Ele se mudou para cá e resolveu praticar “Jiu”.

– Eu sou Pepa. Prazer em conhecer.

Estendeu a mão para ele que foi pega para o cumprimento, mas o cara paralisou. Ficou olhando para a menina e balbuciou um tímido “oi”. Eu ia cair muito na pele dele depois.

– Vamos que a aula vai começar e ainda temos que trocar de roupa.

Falei rindo e voltei a caminhar, deixando que eles andassem lado a lado, conversando e se conhecendo. É, acho que a senhora Gallardo teria alguma coisa a mais para colocar na minha conta…

Dei minha aula e fui me banhar como sempre. Era estranho ver a outra porta que dava para a sala contígua a minha. Bem, agora era acostumar. Tirei minha roupa e fui para o chuveiro. Escutava a água do outro chuveiro caindo, como sempre. Devia ser a Pepa se banhando para ir à aula no colégio. Abri a minha água e deixei que caísse sobre minha cabeça, escorrendo pelo meu corpo. Era outono e os dias começavam a ficar mais frios. Apesar de já ter morado em outros lugares frios, ainda não tinha me acostumado com essas temperaturas baixas. Iria passar mais um inverno em Valência e sofreria por isso.

“- Droga de calor! Ninguém merece um calor de quarenta e cinco graus!

– Não reclama, Olívia. Queria ver você passando um inverno abaixo de zero.”

Sempre reclamei com a minha mãe do calor que sentia no Rio de Janeiro e agora, prevendo outro inverno aqui, em Valência, entendia perfeitamente o que minha mãe falava. Sorri ao lembrar dela ralhando comigo.

Escutei murmúrios do lado de fora do reservado. As alunas da esgrima deviam estar entrando para tomar banho e se arrumarem. Inspirei fundo. Essa semana seria difícil e importante para a adaptação de todos, inclusive a minha. Desliguei a ducha e peguei minha toalha, apoiada na porta do box, para me enrolar. Inspirei fundo, mais uma vez, tomando alento para sair e ver as caras que circulavam por ali. Saí.

Ela me olhou de cima a baixo e um arrepio percorreu minha coluna, desde a base até minha nuca. Ela estava apenas de calcinha, os seios, como o restante do corpo, todo à mostra. Pelos céus! A imagem dessa mulher nua era tudo que eu não precisava ter fixada em minha mente. Forcei-me a caminhar até minha bolsa, apoiada num banco no canto, tentando transparecer naturalidade.  Fiquei de costas para me vestir e não ter que olhar diretamente para ela. Quando escutei o barulho do chuveiro, relaxei. Já estava quase toda vestida e coloquei minha blusa de mangas compridas, que era a última peça do meu vestuário. Arrumei minhas coisas para sair e me virei. Ela ainda estava do lado de fora do box, olhando para mim.

– Minha presença te incomoda, senhora Ávila? – Ela perguntou, cínica.

Ela queria me provocar. Queria que eu deslizasse em qualquer coisa e a intenção era atacar a minha sexualidade. Ficou claro como água para mim. Queria provar que, o fato de ser homossexual, faria com que eu fosse uma mulher lasciva e leviana. Uma ira me tomou.

– Sim, mas não por sua presença em si. O que me incomoda são suas atitudes. Você está sempre procurando um jeito de me fazer perder a linha. Vai precisar se esforçar um pouco mais. – Virei-me para sair, mas da porta voltei para ela, falando. – A propósito, tem um corpo magnífico para sua idade.

Apressei o passo, pois não quis ficar para escutar os “bichos” que sairiam pela boca da senhora Gallardo, dirigidos à minha pessoa. Ela não poderia vir atrás de mim, pois estava nua em pelo. Só se quisesse escandalizar o povo besta daquele clube. Ri de mim mesma, no entanto sabia que, o que havia feito, teria troco por parte dela. Eu que me preparasse para a batalha.

Fui direto para minha mercearia. Hoje era dia de entrega e queria conferir, pessoalmente, o que o pessoal do novo atacadista iria entregar. Fui até meu apartamento, fiz um lanche rápido e desci. Falei com Carmem e Pepe. Os dois estavam enrolados naquele dia. Carmem, com um ensaio do curso de fotografia para fazer e Pepe com uma multa que precisava contestar. Não achava que ele conseguiria, pois levou uma multa por estacionamento proibido e, até onde eu sabia, o local onde ele levou a multa, tinha uma placa indicando que não se podia parar ali. Resultado: eu ficaria sozinha na minha “tienda”.

O pessoal do atacado chegou e entregaram tudo como o combinado. Estava me virando em atender e colocar as coisas no estoque. Era fim de tarde e faltavam apenas alguns minutos para fechar.

Estava no fundo da loja, quando vi uma mulher entrar a passos firmes e postura ereta. “Ai, meu Deus! Eu não acredito”. Foi o que pensei quando divisei melhor a pessoa que entrava. Veio na minha direção e a cara dela não estava boa.

– Eu havia prometido para minha filha que não me dirigiria mais a você, mas hoje foi o cúmulo da falta de respeito!

“Como assim, ela entra na minha loja, pagando para mim e não me dá nem um oi?!”

– Falta de respeito? Você se dirige a mim, insinuando coisas, e reclama de falta de respeito?

– Eu lhe fiz uma pergunta simples…

– … cínica, você quer dizer! Você não fez uma pergunta simples. Foi, simplesmente, cínica! Isso é tudo que recebo de você, desde que comecei a dar aulas!

Eu estava alterada, pois ela não dava nenhuma brecha. Continuava a se aproximar, até que parou a um palmo de mim, bufando.

– Você me faltou com respeito todas as vezes que nos encontramos e na minha casa também. Ainda teve o disparate de me agarrar e me beijar. Vou fazer uma reclamação por escrito para a diretoria. Você vai sair de lá, num piscar de olhos!

Ela, também, falava alterada. Minha vontade foi agarra-la novamente. Não sou dessas mulheres que acha que, numa hora dessas, temos que mostrar quem manda ou algo parecido. Ou que acha que a mulher está querendo alguma coisa por enfrentar. Apenas por que ela me despertava um tesão danado. “Ela é uma mulher bonita, tem uma boca deliciosa e é cheirosa pra cacete!” Controlei meus pensamentos para não entornar o caldo de vez. Inspirei fundo.

– Olha, eu não quero brigar e não tenho nada pessoal contra você. Estou fechando minha loja e, sinceramente, não sei por que veio aqui. Tudo bem que eu tenha um temperamento forte, mas há de convir que, em todas as vezes, eu respondi a uma provocação sua!

– Uma provocação minha?! Você foi na minha casa, sabendo que eu não lhe tolerava, enreda minha filha para esse esporte truculento, me agarra e…

– Alto lá! Beijei para mostrar um ponto de vista e talvez, se não tivesse feito, você inventaria milhões de coisas a respeito de mim, com relação à sua filha, por eu ser homossexual! A minha orientação sexual é a única coisa que passa pela sua cabeça para pautar o seu entendimento enviesado de caráter.

– Não é por você ser homossexual. Acha que sou homofóbica ou algo parecido? – Falou indignada.

– Acho! É o que tem me mostrado. Você mesma insinuou que eu teria um relacionamento com Lúcia e por isso, aludiu que eu seria capaz de me cercar de alunas, no caso, sua filha!

Enquanto respondia à ela, caminhei para fechar as portas da minha loja. Pisava forte, estava alterada e essa mulher começava a me tirar o tino. Já estava mais que na hora de fechar e, o que menos queria, era que alguém escutasse aquela discussão. Tinha uma clientela fiel pelas cercanias e não queria instigar fofocas.

– O que está fazendo?

Terminei de trancar a porta e a olhei. Pela primeira vez, vi receio em seu olhar.

– Fechando a minha loja que, por sinal, passou da hora. Por quê? O que achava que estaria fazendo? – Encarei-a.

Ela começou a ofegar e se apoiou na bancada do caixa. Estava perdendo os sentidos e eu corri para ampará-la.

****

– Pode ir, Lito, e obrigada.

– Ainda bem que a Lúcia me pediu para pegar alguns mantimentos com você, senão estava ferrada com essa mulher. Não ia conseguir subir com ela desacordada para seu apartamento, nem por um cacete. Ela é pesada, viu?

Eu ri do cara. Fez maior esforço para subir com Eva nos braços até meu apartamento. Eva, apesar de aparentar ser magra e ter um corpo longilíneo, tinha músculos bem delineados. Evidente que eu reparei no corpo dela, quando ela estava nua no vestiário. Quem não repararia?

– Tem certeza que quer ficar sozinha com ela? Parece que quando ela acordar no seu sofá, vai ter outra crise.

– Tenho sim. Pode ir, Lito, pois do jeito que a mulher pensa, vai achar que carreguei ela para cá e chamei um amiguinho para participar de alguma orgia com ela. – Ri e ele me acompanhou.

– Você é que sabe. Se cuida, aí. Tem maluco para tudo. Esse povo que se faz de “todo certinho” é que pensa as maiores merdas.

– Pode deixar. Se ela der escândalo, grito e digo que ela me agarrou e enlouqueceu. Saio pela rua berrando para todo mundo ouvir, com cara de donzela assustada!

Ele gargalhou, se despediu e foi embora. A mulher estava apagadinha no sofá. Comecei a me preocupar, pois ela teve “flashes” de que acordaria e desabou novamente.

Fui até a cozinha para pegar água para quando ela acordasse, efetivamente. Quando voltei, ela tentava levantar sem sucesso. Estava sem forças. Coloquei o copo de água sobre a mesinha de centro e sentei para tentar ampará-la. Coloquei sua cabeça apoiada em meu colo e ela relaxou. O semblante, agora sereno, denunciava um rosto de traços finos, pele suave e delicada. Não parecia a Eva que sempre me afrontava. Estava frágil e a palidez que assumiu quando desmaiou, começava a perder espaço para a cor levemente corada. Seus olhos estavam fechados e não conseguia ver o que poderia estar passando por sua mente.

– O que…

– Shhii. Você desmaiou. Toma um pouco de água.

Estendi o braço até o copo e o peguei, levando-o até seus lábios. Amparei sua cabeça para que bebesse. Era incrível que ela estivesse tão tranquila, talvez desnorteada pelo desmaio. Sua boca sugando a água na borda do copo, fez com que me perdesse naquele sabor gostoso que senti no dia que a beijei. Cerrei os olhos para etar esse pensamento e, quando abri, ela me olhava diretamente. Os olhos redondos, brilhantes e, eu podia estar enganada, mas pareciam zombar de mim.

– Ééé… está… está melhor? – Gaguejei, debilmente.

– Sim, obrigada. – A voz saiu fraca. – Tenho que ir.

Tentou se levantar e mais uma vez, cambaleou e, ainda sentada, perdeu as forças caindo sobre meu colo novamente.

– Não precisa se apressar. Quer que chame um médico?

– Não precisa. – Continuava balbuciando as palavras.

– Eu levo você quando melhorar, ok? Desculpe se fiz você se sentir mal.

Não sei porque estava me desculpando, se a mulher é que tinha vindo tirar satisfações comigo. Não entendi essa minha submissão, já que meu temperamento costumava ser azedo e explosivo, diante de pessoas que me afrontavam. Um brilho acendeu nos olhos cor de mel, que me miravam diretamente. Eu paralisei, capturada por aquele olhar intenso e, de repente, ela sorriu, arqueando uma das sobrancelhas.

– Então você correria pelo bairro, berrando como louca, falando para todos que eu te agarrei ensandecida, hum? Acho que não acreditariam em você.

Terminou de falar, abrindo um pouco mais o sorriso. Pela primeira vez, ela não me atacava. Enrubesci, por saber que ela escutou a conversa que tive com Lito. Ela percebeu o eto estampado em meu rosto, pois continuou a falar, amena.

– E também faz um juízo errado de mim. Não acharia que você promoveria nenhuma orgia, se acordasse com aquele rapaz aqui.

Nesta hora, eu quem arqueava minha sobrancelha, dando sinais de incredulidade nas suas palavras.

– Suas atitudes comigo, até o momento, me levam a acreditar que sim. – Retruquei, mas num tom baixo e calmo.

Ela suspirou e, não fez qualquer menção de tirar sua cabeça de meu colo. Estranhava aquela atitude, mas se ela achava meu colo confortável, eu é que não reclamaria. Começava a gostar da situação em que nos encontrávamos.

– Não é exatamente você, Olívia, mas está desestruturando algo que levei anos para consolidar no clube. A esgrima está decaindo, eu não posso suportar ver isto.

– Não acredito que seja o jiu-jitsu que faça isso, Eva. Pense. Vocês estavam lutando para manter as atividades esportivas, antes mesmo que eu chegasse e…

“Meu Deus! O que ela está fazendo?!” – Pensei, abismada e estática.

A língua calorosa sondava minha boca com gula. Levei um tempo até reagir ao beijo que ela iniciou, intempestiva, e quando segurei o rosto para tomar mais daquela boca embriagadora, ela se apartou e levantou do sofá. Eu estava ofegante e ela parecia que tinha acabado de tomar um café com gotas de menta. Imparcial, apenas se dirigiu para porta a passos calmos, falando, pouco antes de abri-la e sair.

– Isso foi o troco por ter me pego desprevenida em minha casa. Quem sabe agora aprenda a beijar de verdade.

Fechou a porta atrás de si e ainda escutei os passos na escada diminuírem até sumir. Eu estava atordoada.

– Filha de uma…agrr! Não acredito que ela me sacaneou dentro da minha casa! – Grunhi de raiva.

****

– Calma, Olívia.

Lúcia falava tentando conter o riso, enquanto eu contava para ela o que tinha acontecido lá em casa.

– Ela é uma cretina! E eu ainda preocupada com a saúde daquela peste!

– Olívia, ela deu o troco, e daí? Pelo menos, uma coisa boa você pode tirar dessa história.

–  O que tem de bom nela me sacanear?

– Ela não é a homofóbica que você pensava, senão nem te beijaria, mesmo sendo para sacanear.

– E o que me importa saber se ela é ou não homofóbica?! Continua me perseguindo, mesmo que tenha conversado tranquila por alguns minutos.

– Beija bem, como ela mesma insinuou?

Lúcia perguntou gargalhando e eu parei de andar de um lado a outro, pensando na pergunta. O pior é que a “bichinha” beijava muito bem! Eu quisesse ou não, a porcaria do gosto dela não saía da minha boca e nem da minha cabeça. Eu estava mais furiosa por conta disso e, isso era um fato. Se dependesse de mim, ia rolar maior interação no sofá lá de casa e a verdade é que Eva me deixou acesa para depois me deixar na seca.

– Para, Lúcia! Eu estou furiosa e você fazendo perguntas descabidas. – Rebati para não responder.

– Ei, você está falando comigo e não com alguém da esquina, ok? Dá pra ver que ficou perturbada, só pela sua reação e não venha me falar que é por conta dela ter te sacaneado. A Olívia que eu conheço, daria uma curtida com essa situação.

Lúcia levantou do sofá e veio em minha direção. Agradeci que Lito não estivesse. Não queria ter mais uma pessoa escrutinando minha vida. Ela ficou de frente para mim e, afastou uma mecha de meu cabelo para trás da orelha, delicadamente. Reparava em meus traços e seu olhar era de pesar. Delineou minha face com a ponta dos dedos, resvalou pelo meu colo, pousando a mão em meu peito.

– Olívia, você é cara para mim. Eu vivi quatro anos em Valência até conhecer alguém em quem confiasse de verdade. Nós duas sabemos que somos muito próximas, à beira de algo que não conseguimos definir.

– Lúcia…

– … Shhhh. Deixa eu falar. A gente tem consciência que se ama, mas não um amor delirante que faz o coração descompassar. É algo mais além, até. Algo indizível, que temos certeza que não se quebraria com intrigas fúteis ou besteiras frívolas de esquemas sociais, que as pessoas se colocam dia a dia em suas vidas certinhas, regradas e sem graça. Só que não é amor de coração que se desafina, se quebra ou se constrói com quereres de vida, proteção e arrebatamento. Você está com um tesão diferente nessa mulher. – Ela sorriu descarada. – Não estraga o que é o melhor de nós. Seja verdadeira como sempre e responda, simplesmente, o que perguntei.

Inspirei fundo… muito fundo. Tive receio, insegurança e até raiva. Por que era tão difícil responder uma pergunta tão simples e boba? O que havia demais falar que a mulher beijava bem? Mirei o teto. No fundo, eu sabia. Aquele simples beijo provocou o meu coração e ele descompassou. Experimentei um sentimento de acalanto, proteção e arrebatamento. Seria capaz de cometer uma loucura qualquer para ter a boca de Eva e seu corpo colado ao meu, novamente. Mais que isso. Seria capaz de apagar todo o meu passado, para ter esperança no presente. E por que isto, agora? Não compreendia.

– Beija.

Respondi simples, pois a complexidade do que sentia, não permitia que respondesse de forma melhor.

– Foi difícil responder? – Arqueou as sobrancelhas.

– Foi. – Respondi seca, outra vez.

Ela sorriu e caminhou de volta ao sofá, tranquilamente.

– Acho que perdi os lençóis quentes de minha solidão. – Abriu mais o sorriso.

– Lúcia…

– Não, Olívia. Entenda. Não permitirei sermos usadas. Antes, nossas carências nos satisfaziam, agora eu não me contentaria, sabendo que meu corpo é asilo de outra mulher e tenho certeza que muito menos você. Sempre nos bastamos e isto não acontecerá mais.

“Merda! Que droga de mulher é a Eva!”

Maldisse o nome dela. Maldisse os meus sentimentos.

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