Valência

Capítulo 8 – “Dualidad”

Saí vestida e a encontrei olhando uma estante de livros, que ficava próximo à porta da varanda, ao lado de uma mesa pequena, onde pousava um laptop. Ela passava os dedos sobre as lombadas dos livros, como se estivesse lendo os nomes para ver qual lhe interessava e por fim, retirou um da estante. A cena me atraiu como uma mariposa se atrai pela luz. Me aproximei devagar por trás e a abracei, apoiando meu queixo em seu ombro e olhando o que tinha nas mãos. Segurei suas mãos para virar a capa e ler o título.

– Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf? – Perguntei intrigada. – Gosta de Virginia Woolf?

Ela virou a cabeça para me encarar e nossos rostos ficaram muito próximos. Trazia um leve sorriso e não resisti, beijei seus lábios rubros de leve e quando me afastei, ela abriu mais o sorriso. Encarou-me por instantes e voltou seu olhar para as mãos, abrindo em uma página.

Não sou exatamente uma fã de Virginia Woolf, mas gosto deste livro. Em alguns momentos, ou melhor, quando leio algumas passagens, me sinto como a personagem. Como nesta passagem aqui. – Apontou o trecho. E começou a ler em voz alta. – “Horrível, pensava, adivinhar mover-se nela aquele monstro brutal! ouvir ramos estralejando e sentir aqueles cascos nas profundezas dessa floresta cheia de folhas, a alma; nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura, pois a qualquer momento o animal podia estar movendo-se; ódio que, especialmente depois da sua doença, fazia-lhe sentir um doloroso arrepio na espinha; causava-lhe uma dor física, todo o prazer da beleza, da amizade, do bem-estar, de sentir-se amada, de tornar a casa deliciosamente acolhedora, tudo vacilava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor-próprio! E aquele ódio”!(Mrs. Dalloway, Virginia Woolf)

Ao escutá-la recitando o trecho, pensei que ela poderia se ver ou se sentir assim, mas eu a enxergava de outro jeito. Lógico que estava longe de saber sobre a vida dela, seus anseios e a relação truculenta com seu pai.

Ainda abraçada por trás, passei minhas mãos por sua cintura, chegando ao livro em suas mãos. Segurei-as, fazendo com que ela manuseasse o livro, como se fosse um fantoche, e eu a sua manipuladora. Escutei uma gargalhada refrescante aos meus ouvidos e ri junto com ela. Obriguei-a a abrir numa página conhecida minha, apontei um trecho e lhe pedi:

– Lê para mim.

Ela olhou a página e ouvi outro som risonho saindo de sua boca.

– Por que quer que eu leia esta página?

– Só leia e depois eu te falo.

Eva voltou seu olhar e iniciou a leitura.

– “Via o que lhe faltava. Não era beleza; não era inteligência. Era essa coisa central que se comunica; alguma coisa de cálido que quebra a superfície e encrespa o frio contato de homens e mulheres entre si. Pois isto ela obscuramente compreendia. Embora a irritasse, embora tivesse um escrúpulo vindo quem sabe de onde, ou, como sentia, inspirado pela natureza, a verdade é que às vezes não podia resistir ao encanto de uma mulher. Não de uma menina, de uma mulher que lhe confessava, como às vezes acontecia, alguma aventura, algum deslize.

Ou fosse por piedade, ou pela beleza, ou por ser mais velha que a outra, ou por algum acidente infortuito – como um suave perfume, ou um violino na sala próxima (tão estranho é o poder dos sons em certos momentos) ela então sentia indubitavelmente o que os homens sentem.  Só por um momento, mas era bastante”. (Mrs Dalloway, Virginia Woolf)

Ela ficou muda por instantes, olhando as letras no papel de cor pálida que estava em suas mãos. De olhos fechados, jogou a cabeça para trás, apoiando-a em mim.

– É assim que me vê? – Perguntou.

– Não exatamente desse jeito, mas se tivesse que escolher um trecho deste livro para descrever o que percebo a seu respeito, certamente seria esse.

Inspirou fundo e desencostou de mim, caminhando para a mesa de refeições.

– Vem. Vamos jantar, se bem conheço minha filha, ela ligará logo para que eu a substitua.

– Acho que você não acredita muito na Pepa. Ela é uma garota legal. – Me pronunciei, pois não acreditava que Pepa faria isso com a mãe, ao mesmo tempo que sabia que adolescentes costumavam rivalizar em casa, para poderem ser reparados.

– Pois tenho certeza que se ela não fizer, será porque você falou com ela. É provável que não queira ficar mal com você, mas ela é adolescente e não tem muita paciência com essas coisas.

– Que seja porque falei. Como você disse, ela é adolescente e, se não ligar para que você a substitua, aproveite para descansar. Seus olhos estão vermelhos e tenho certeza que não dormiu nada naquele hospital.

Sentamos à mesa e me servi de uma porção de “risoto de chouriço”1 e, um “estufado de ternera”2. Ela serviu vinho em dois cálices e se serviu da comida também. Quando levei o vinho à minha boca, o sabor era tão intenso, quanto delicado ao paladar, que emiti um som de satisfação ao degusta-lo. Ela me olhou e elevou uma de suas sobrancelhas.

– Gostou?

– Nossa! E como!

Olhei o rótulo negro com a escrita em relevo na cor prata. O nome do vinho era “Dualidad” e o símbolo era uma pequena machadinha de dois fios, em estilo medieval, na cor bordô-brilhante. Símbolo este que me chamou a atenção por seu significado, porém não me pronunciei sobre o assunto.

– É produzido aqui, pelo visto. Muito bom vinho. Tem um sabor marcante, mas agradável ao paladar.

Ela sorriu e me lançou um olhar divertido.

– Aprecia vinhos, então. Que bom que gostou. Esse vinho é de minha adega particular. Na verdade, queria começar a produzir um vinho diferente do que nós comumente produzimos, mas meu pai foi contra.

– Pelo visto, ele não conseguiu deter você.

Falei com um ar de deboche, pois pelo que eu percebia dela, não era mulher de se deixar convencer facilmente. Ela olhou seu prato e mexeu na comida, por uns segundos, depois ela se voltou para mim e seu semblante estava endurecido.

– Na verdade as uvas não são cultivadas aqui. Eu tenho umas terras um pouco mais ao sul da cidade. Terras que são minhas e não estas que são de meu pai. Este vinho é um corte das uvas Cariñena e Grenache e ele não permitiu que eu cultivasse. Segundo ele “para que eu não fizesse a maluquice que eu queria”.

– Entendo… A maluquice seria fazer vinho com a uva Cariñena, pelo que percebi.

– E pelo que percebo, você conhece vinhos.

– Não muito, mas aprecio sim. Sei que esta uva era considerada de menor qualidade por especialistas.

– Sim, era. A verdade é que se trata de uma uva de difícil cultivo, no entanto grandes produtores, hoje em dia, estão conseguindo vinhos de qualidade a partir dela. O fato de não conseguirem boas safras é muito mais por não conseguirem cultivá-la adequadamente, do que propriamente pela qualidade da uva. Eu queria inovar. Sei que é uma uva de sabor marcante e estruturado, então, fiz um corte com Grenache.

Eu comecei a sorrir, reparando no quanto Eva parecia orgulhosa do que conseguiu produzir.

– O que foi? – Me perguntou.

– Nada. Só reparando em você e no quanto se orgulha do seu feito. – Abri mais meu sorriso.

– Agora quem está sacaneando quem, einh? – Falou amuada.

– Eu não estou te sacaneando, Eva. Só achei uma gracinha o jeito que falou. – Ela me atirou o guardanapo, rindo. – Ei, nada de bagunça à mesa. – Ralhei com falsa indignação. – Mas sério, devia pensar em comercializar. Ele é muito bom. Seria fácil ganhar o mercado.

– Seria, mas meu pai se recusou, então… – Encolheu os ombros – Vou produzi-lo só para mim.

Sua voz transmitiu certa tristeza na fala. Tratei de mudar de assunto. Pelo que entendi, era um ponto nevrálgico na relação de administração da granja com o pai.

– Bom, vamos terminar de comer que eu colocarei a senhora na cama e irei embora.

Dei ênfase ao “senhora” para mexer com ela e ri, fazendo-a rir também. Quando ela se permitia relaxar, em determinados momentos, sua expressão suavizava e seu rosto adquiria uma luminosidade e beleza fascinantes. Terminamos de comer entre uma conversa e outra, nada muito profundo. Eva Gallardo se esquivava de algumas questões e, na maioria das vezes, quando não queria responder algo, tratava o assunto com superficialidade. Não consegui conhece-la tanto quanto eu queria. Comecei a pensar que estava andando por um terreno instável e nebuloso. No entanto, não conseguia refrear o sentimento que começava a ganhar espaço no meu peito.

Levantamos da mesa e pedi para tomar um banho antes de sair. Ela me deu toalhas limpas, tomei meu banho e me senti revigorada, mas as cenas do amor que fizemos, voltaram a minha mente e pensei em como seria daqui para frente. A nossa história começara com o pé trocado e acabamos entre os lençóis.

“E agora, dona sabichona? O que vai fazer, einh? Sair pela porta e amanhã olhar para a mulher como se nada tivesse acontecido?”

Enquanto me enxugava, ficava pensando o que foi tudo aquilo e como eu iria me portar dali para frente. Saí enrolada na toalha, pois minhas roupas ainda estavam espalhadas no quarto. Eva estava sentada na beira da cama, me esperando. Olhei ao redor e vi que ela tinha pegado as minhas roupas e dobrado, deixando-as em cima da poltrona.

– Por que não dorme aqui? – Seu tom de voz era baixo.

– Não acha que vão estranhar alguém dormir aqui?

– Você deu uma boa desculpa para Ramirez. Não vão me questionar.

Me aproximei e fiz um leve carinho em seu rosto. Suas pálpebras cerraram devagar, me permitindo observar, mais uma vez, a beleza dela, entregue. Não resisti e beijei-a, delicadamente. A princípio, um encontro leve entre nossos lábios, que foi superado por nossas aspirações e desejos. Ela estava tão desejosa quanto eu, pois separou as pernas, pousando as mãos em meus quadris, me puxando para que me aproximasse. Enlaçou minha cintura e apesar de estar de pé e meu rosto mais elevado do que o dela, conseguiu alcançar, com uma de suas mãos, minha nuca e intensificar nosso beijo.

Ofegou entre nossos lábios e deixou cair seu corpo lentamente, puxando-me para que me deitasse sobre ela. Alcançamos o meio da cama.  Ela desfez o laço da toalha, abrindo-a de vagar, observando meu corpo com os olhos e com seus dedos. Eles deslizavam sobre a minha pele, numa delicadeza ímpar. Era quase uma reverencia, o que seu olhar transmitia, ao varrer os traços de meus seios. Um dedo passou de leve sobre o bico túrgido, fazendo-me arrepiar inteira. Não consegui conter o gemido que escapava de minha garganta, só de observar os gestos e a forma como Eva acariciava meu corpo. Tão macio o toque, tão enérgica a reação que tinha, diante desse modo delicado dela.

Ela me empurrou, levemente, pelos ombros, para que me afastasse. Eu permanecia sentada em seu ventre. Retirou a blusa e me afastei para que retirasse o short de algodão que impedia que nossas peles se tocassem. Voltei a me encaixar em seu quadril e ela me fez um pedido singular.

– Fica assim. Deixa eu só te ver e te tocar. Não faz nada.

Assenti num aceno leve com a cabeça, tentando entender o que significava aquele pedido. Eva começou a deslizar uma de suas mãos pelo meu corpo e a outra pelo dela. Acariciando a mim e ela, ao mesmo tempo. Este gesto inusitado, deixou-me em fogo. Era erótico, sensual e a extrema delicadeza com que se tocava, fazia meus sentidos aumentarem, a tal ponto, que eu não conseguia mais divisar qualquer coisa à nossa volta. Só conseguia percebê-la, como se tudo estivesse difuso e apenas ela em meu foco. Desceu a mão por seu abdômen, devagar, soltando pequenos gemidos por seus lábios, atiçando minha audição e me fazendo estremecer. Seus dedos tatearam a vulva, que agora acreditava pulsar entre eles. Outro gemido, porém mais forte, atingiu meu ventre, o fazendo contrair. Neste momento, observando seus gestos e meus ouvidos captando os ruídos que emitia, meu corpo reagia, sentindo. Não ouvia mais. Apenas sentia seu gemido refletir em mim.

O dorso de sua mão, entrava em contato com meu sexo, pois ainda estava encaixada em sua pelve. Olhava para baixo e observava todos os delicados movimentos que fazia em suas próprias entranhas. Eu começava a experimentar a tortura de não lhe tocar. Quis sentir o sabor dela em minha boca, quando vi o fluxo de seu deleite resvalar na mão que movia, dando o prazer na medida que ela queria. Aflita, não suportava mais ficar passiva e não toca-la e, apressada, me posicionei entre as coxas que vibravam, diante na satisfação que ela mesma se dava.

– Não…

A voz dela saía tremula e sem muito êxito, tentou afastar com as mãos meu rosto, que ensaiava entremear a língua entre os dedos agitados. Senti o sabor acre-doce, e não consegui mais me segurar. Resvalei a boca para receber o que fazia meu corpo inteiro se agitar. Um urro de satisfação ecoou no quarto e eu a segui, não contendo o som que ganhou o ar, saindo de meu peito. Finalmente, nossa gostosa agonia acabou. Ela relaxou as pernas e retirou sua mão, deixando que eu me deleitasse com suas dobras e seu núcleo, completamente tomados por minha boca. Eva estava no seu limite e quando deslizei minha língua sobre seu clitóris intumescido, senti que tremia e sua umidade derramava abundante, para meu prazer. Senti meu próprio líquido escorrer e uma dor aguda em meu centro, esperando a liberação. Me toquei e, em apenas alguns movimentos, senti a descarga vir com força e acompanhei os tremores que ainda agitavam o corpo de Eva.

Que loucura! Que deliciosa loucura!

Um tempo depois de nos refazermos, conversamos um pouco e Eva pegou uma roupa para eu dormir e vestiu sua camisola. Ela estava exausta e segundos depois de nos ajeitarmos, resvalou para o sono profundo. Eu não estava atrás. Dormi tão profundamente que horas mais tarde, quando o celular de Eva tocou, escutei ao longe. Fui acordando aos poucos, ficando completamente desperta, ao sentir o peso do corpo dela deixar a cama.

– O que foi? – Perguntei ao vê-la com uma toalha na mão, indo em direção ao banheiro.

– São seis horas da manhã e Pepa está querendo dormir um pouco antes de ir para o colégio. Vou substitui-la.

– Vou levantar e ir embora, também. Preciso ir para minha tienda e colocar as coisas em dia. Fiquei muito tempo fora. Hoje não tenho aula no clube, mas amanhã recomeço minha rotina.

O clima ficou estranho. Eva se banhou rápido e trocou de roupa. Quase não se dirigiu a mim. Ela me deu carona até o centro e a sua postura era evasiva. Respondia as minhas perguntas, superficialmente, e quando nos despedimos, esquivou-se até do beijo no rosto, estendendo a mão para mim. Meu sentimento foi de vazio. Não consegui reagir, pois fiquei sem chão.

Uma coisa era ter sexo casual com alguém desconhecido, que a gente encontra na noitada, ou com alguém que sabemos que está na mesma sintonia que nós. Aquilo que aconteceu entre eu e Eva, não se encaixava, dentro de mim, como puro sexo.  Andei pelas ruas do centro histórico, sem muita noção de onde realmente estava, quando me vi, tinha chegado até o bistrô e apartamento de Lúcia. Sacudi minha cabeça, no intuito de colocar as coisas no lugar. Não iria falar com a Lúcia naquele estado que me encontrava. Seria muita sacanagem minha, pois quando cheguei de viagem, mal dei importância a nossa amizade, seguindo direto para o hospital para encontrar Eva. Dei meia-volta e caminhei em direção ao meu apartamento. Precisava tomar um banho e tirar o cheiro daquela mulher que ainda estava impregnado em mim. Ela deixou o recado dela, nas atitudes que tomou, sobre o que aconteceu entre nós: foi apenas aquela noite e eu entendi, perfeitamente.

Tomei banho e segui para a tienda. Tinha que me distrair, até porque, sabia que quando deitasse a cabeça no travesseiro para dormir, eu piraria.

– Oi, Carmem!

– Olívia, tudo bem com você? Estávamos preocupados, apesar de ter ligado quase todos os dias.

– Agora está tudo bem, Carmem. Não foram dias muito bons. Minha mãe ficou muito abalada, mas agora está tudo seguindo na medida do possível. E aqui? Alguma novidade?

– Sim. O gerente do banco ligou. Parece que o empréstimo para a compra do imóvel está disponível há uma semana. Ele queria avisar e falei da sua situação.

– Eu passo lá mais tarde.

– Ainda vai precisar do empréstimo? Pelo que soube você.. é…

Ela estava visivelmente envergonhada para tocar no assunto. As pessoas que conheci em Valência sabiam muito pouco da minha vida. Acredito que a morte de meu avô, a confusão que deu no enterro com os repórteres e mais os dias de especulação da imprensa sobre quem assumiria a presidência da empresa Ávila, fez chegar este conhecimento sobre mim, até as pessoas daqui.

– Eu sou rica? Não é bem assim, Carmem. Eu declinei da vice-presidência e tenho que esperar para ver o que vai acontecer. Além do mais, esse é meu negócio. Comecei com meu suor e assim vamos tocá-lo.

Vi que ela relaxava e não entendi porque.

– O que achava, Carmem? Que eu ia fechar a tienda?

– Ah, sei lá, Olívia. Depois que te vi na televisão e o que você herdou, pensei que fosse voltar para o Brasil.

Eu sorri para ela. A verdade é que eu gostava do Brasil e até pensava em um dia voltar, mas não nessas condições. Quando meu avô me expulsou e consegui terminar a minha faculdade, andei por tantos lugares, que nem me lembro. Depois de tanto tempo, encontrei alguma paz aqui. A simples perspectiva de ter que retornar e encarar meus demônios pessoais, só porque meu avô me pregou mais uma peça, não passou nem um minuto pela minha cabeça.

– Não se preocupe, Carmem, não vou fechar a tienda. O máximo que irá acontecer, será ela crescer e você ter mais trabalho a fazer. – Sorri.

– Contanto que o trabalho venha com um gordo aumento no meu salário, não me importo. – Gargalhou.

– Ah, é, espertinha?! – Segui ela no riso.

Fui colocando as coisas em dia e, ao final da tarde, Lúcia me ligou querendo me ver. Disse que deixaria Paco no bistrô e viria se encontrar comigo no meu apartamento. A verdade é que eu não queria vê-la, pois minha cabeça estava do avesso. Não queria colocar Lúcia nessa minha enrascada. Ela não deu espaço e disse que vinha me ver de qualquer maneira. Não tive como negar.

Arrumei a mesa com bandejas de frios, pastas e torradas, pois não estava com qualquer ânimo de cozinhar. Abri um vinho e que ironia, comprei um tempranillo da granja Tierra Roja no mercado municipal, em vez de pegar um vinho qualquer na minha tienda. Abri e comecei a bebê-lo, antes mesmo de escutar a campainha tocando.  Desci e destravei a fechadura da porta de entrada do pequeno prédio. Quando me viu, Lúcia veio ao meu encontro me abraçando apertado.

– Que saudades dessa brasileira turrona. Por que não me ligou hoje?

Subimos as escadas e entramos no meu apartamento. Lúcia me abraçou novamente.

– Eu estava colocando as coisas em dia aqui. Fui ao banco também. O empréstimo está disponível e tinha que marcar para fazer o negócio com meu senhorio.

Ela se desvencilhou de meus braços e ficou reparando em mim, calada.

– Mmm… Sei. E como foi no Rio?

Sentamos no sofá e contei à ela tudo que se sucedeu nos dias que estive fora. Enquanto isso, íamos bebendo, comendo e ela sempre dava umas opiniões interessantes. Eu estava entornando o vinho e já estava ficando um pouco alta. Acabei contando para Lúcia como foi que eu saí do Brasil e tudo que envolveu minha vida com meu avô. Eu estava fazendo uma catarse. O sentimento de abandono que tive com meu avô, estava lá, latente em mim novamente, só que dessa vez, quem despertou, havia sido Eva com sua atitude logo cedo. Não contaria o que aconteceu comigo e com ela, para Lúcia. Não queria, mas…

– E como foi com Eva ontem à noite?

– Com Eva? – Retruquei, um pouco etada.

– É. Com Eva. E não diga que não aconteceu nada, porque sei que você a levou para casa. Eu já tinha chegado a hora que você ligou para Lito, procurando Pepa. Fui eu que levei os dois até o hospital.

“Droga!” – pensei.

Não queria expor isso para ninguém, mesmo que esse alguém fosse Lúcia. Ainda mais com nosso tipo de envolvimento.

– Tudo bem. Ela estava muito cansada para brigar. – Sorri sem graça.

– Para, Olívia. Você vive de arranca rabo com a mulher e ela deixa você leva-a para casa? Desembucha, vai. Pela sua cara, alguma coisa aconteceu, mesmo que no início tenha sido tranquilo.

– Lúcia, eu não queria falar sobre isso.

– Vai ser assim agora?

– Assim como?

– Olívia, o que a gente sempre teve de bom é que nunca tivemos frescuras uma com a outra. – Falou contrariada.

– Não é isso, Lúcia. Eu não quero te envolver nisso. Não quero que você se… Deixa pra lá.

– Você não quer que eu o quê, Olívia?

– Eu não quero te magoar com essa história. Não é justo com você.

– Me magoar? Olívia, você está se escutando falar? Eu me magoaria por quê? A gente sempre teve um relacionamento legal, mas não temos compromisso algum. Sempre nos falamos sobre isso. Eu seria uma canalha se me achasse no direito de cobrar algo de você. Tá certo. Eu posso até ficar mexida, porque sei que as coisas vão mudar e a gente sempre tem um certo egoísmo e sentimento de posse, mas nunca interferiria na sua felicidade. E tem mais. Se é uma coisa que eu não levo jeito, é para ser a outra na vida de alguém.

– A outra? Quem disse que teria o mínimo de chances disso acontecer?

Eu relaxei no sofá. Coloquei o braço sobre minha cabeça, que estava uma confusão dos infernos e exalei o ar.

– Ah, Lúcia! Seria tão mais fácil se a gente se apaixonasse… Você tem tudo a ver comigo. Cacete!

– Ih! Do jeito que você está falando, a coisa foi pior do que eu pensei. Pelo visto, a sua gentileza não deu em nada. A mulher te dispensou com um passa fora.

– Sim. Depois da gente transar, jantar, transar de novo e dormir juntas, dispensou.

– O quê?!

 



Notas:

1 – Risoto de chouriço – Risoto de um tipo de linguiça espanhola. O chouriço espanhol, diferente do chouriço brasileiro, é feito com carnes nobres do porco e leva um tempero de alho e outras especiarias. A especiaria mais marcante e que caracteriza o chouriço espanhol é a páprica ou “pimenton”, como eles a chamam.

2 Estufado de ternera – Tipo de guisado elaborado com carnes bem tenras. O mais comum é a carne de cordeiro, mas também pode ser feito com carne de novilho.




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