Vontade Ferrenha.

Capítulo 22

Layse seguiu a semana trabalhando sem querer prosa com ninguém. Nem com Clarice se dispunha a conversar quando entrava para tomar o café da tarde.

No sábado, ao meio dia quando Layse guardou as ferramentas para ir embora, entrou para se despedir de Clarice.

– Já estou indo embora, Clarice!

– Já vai? Muito bem! Layse, antes de você ir, eu preciso ter uma conversa séria com você.

– Claro, pode falar.

– Andei te observando essa semana. Notei que não cantou mais. Não te vi dando nem um sorriso.

– Ah, Clarice, não estou muito para sorrisos.

– Sim, sim, claro que não está. Entendo muito bem seu estado de espírito. É muito triste se desiludir, não pense que desilusão é o fim do mundo. Foi a sua primeira, mas tudo depende de como você vive as tormentas que te afligem nesta vida.

– Desculpa falar assim, principalmente porque sei que tem muita experiência de vida e deve ter passado por poucas e boas, mas eu sou assim mesmo. Sinto uma chaga aberta dentro de mim e não sei muito bem como curá-la. Não acredito que algo que me diga amenize o que sinto. Perdi os meus sorrisos e é só o que eu sei neste momento.

– Nem eu acho que vou conseguir amenizar a sua dor. Justamente por isto que não falei nada quando você me contou o que resultou da sua entrega para a Valentina. Nem se eu fosse curandeira de almas, Layse, daria cabo da sua dor. O que eu quero falar é sobre o seu futuro.

– Meu futuro? Como assim?

– Eu sei como a sua mãe é. Sei que ela nem sonha o que você está passando e até mesmo por isto não pode contar com o apoio dela. A verdade é que você precisa de ajuda e companhia. Precisa distrair a cabeça. Eu andei refletindo e decidi te convidar para mudar aqui para casa com a sua mãe. Você não terá mais preocupações com o aluguel da casa e os outros gastos que tem para mantê-la. Vai poder guardar dinheiro para a faculdade e até poupar algum. Terá dinheiro sobrando para comprar roupas, as coisas que tem vontade de ter e até mesmo àquela bota que gostou tanto noutro dia, recorda?

– Sim.

Os olhos de Layse ganharam um brilho novo enquanto ouvia a idosa.

– Estou te oferecendo apoio total. Você precisa de segurança. Quando se tem o coração ferido e o bolso vazio tudo fica mais difícil. Mas se tem o coração ferido e a bolsa com dinheiro sobrando, pode acreditar, fica mais fácil suportar as agruras vida.

Layse passou a mão nos cabelos enquanto refletia sobre a oferta. Encostou-se à parede correndo os olhos pela sala espaçosa daquela casa.

– Vivo sozinha nesta casa imensa. Tenho espaço para receber você e a sua mãe com muito conforto. Talvez tenha chegado o momento de você ter uma vida arranjada sem precisar se sacrificar tanto.

– Clarice, eu não quero ter boa vida de graça. Quero continuar trabalhando para conquistar tudo que sonho.

– Filha, quem quer ter boa vida é gente malandra. Sei bem o quanto você é lutadora. Não se trata de te dar boa vida. Não confunda as coisas. Reflita com calma e se decidir aceitar, segunda-feira vou ter uma conversa com a sua mãe para falar sobre essa minha oferta.

Layse esboçou algo que lembrava um sorriso. Estendeu a mão segurando a de Clarice, falando agradecida.

– Não sei o que fiz para cair nas suas boas graças. Só sei que gostei da oferta. Pode deixar que vou pensar com muito carinho no seu oferecimento.

– Eu sei o que você fez e faz todos os dias, garota. Agora vá descansar antes que comecemos as duas a chorar feito umas bobas.

– Tá certo. Falamos depois. Bom final de semana!

– Igualmente! Vá com Deus!

– Amém! Fique com ele também!

                Na segunda-feira, assim que chegou a casa de Clarice, Layse a informou que iria aceitar a oferta. No final daquele dia, Clarice seguiu com Layse para conversar a respeito do assunto com Ceição. Chegando lá, Clarice fez o convite oficialmente explicando todas as vantagens que as duas teriam se mudassem para sua casa. 

Após ouvir a senhora atentamente, Ceição a fitou, falando o que passava por sua cabeça.

– Fico muito agradecida com o convite e vou ser muito sincera, o que me incomoda são os comentários de que ocê e minha filha mantém um relacionamento às escondidas.

– Relacionamento às escondidas? É mesmo, Ceição? Você tem titica de galinha na cabeça ou um cérebro?

– Ô Clarice, ocê vai me desculpando, porque sou mãe e ver o nome da minha filha no meio desse falatório todo é ruim dimais da conta sô.

– Desde quando você dá ouvido para falatório desta gente tacanha? Desta cambada de hipócritas? Destes fariseus?

– Clarice eu só estou contando o que vivem falando a boca miúda.

– Me contando? Acha que eu não sei o que falam sobre mim? Imagino só se não falassem a boca miúda. Mulher de Deus, o que você está ganhando ouvindo este povo?

– Ocê sabe? Mas…

– Claro que sei! A língua do povo é a voz do diabo, mulher, cuidado, muito cuidado! Essa cambada destrói famílias num piscar de olhos. Vê lá, se eu uma mulher com a idade que eu tenho vou virar lésbica. Até poderia, não é? Ninguém tem nada a ver com a minha vida. Agora, se eu me tornasse lésbica, pode ter a certeza que não iria querer ter uma relação logo com a sua filha. Uma pessoa séria e íntegra como só ela é. Com tanta mulher no mundo, era o que me faltava! Você pode me dar dúzias de desculpas, mas essa lorota? Essa eu não engulo, nem aceito. Logo você que vive rezando o terço? Que vive com o rabo metido nos bancos da igreja? Deixa de ser hipócrita, Ceição!

– Sei que é desagradável, Clarice, mas ocê tem que ver que os presentes que deu para Layse deixaram as pessoas “com a pulga atrás da orelha.”

– Eu dou o que eu quiser e ninguém tem nada com isso! Falavam também que o Salomão pagava o aluguel dessa casa porque era o pai da Layse. Isto também era verdade? Você se deitou com ele, foi?

– Tá doida mulher?

– Vou te perguntar a mesma coisa: Tá doida mulher? Está vendo a sua burrice agora?

– Oh, eu só sei que…

– Você deve até ter pensado que só dei um emprego para a Layse para me aproveitar dela. As pessoas não suportam ver ninguém ajudando os outros que já pensam um monte de insanidades.

– Ah, eu pensei foi muita coisa, Clarice! Nem sei o que falar procê, essa é a verdade.

– Claro que você não sabe, você virou uma “Maria vai com as outras”, não é? Quando que eu acreditei quando falavam que o Salomão era o pai da Layse? Eu tenho bom senso, não sou de acreditar em todas as besteiras que andam de boca em boca.

– Fiquei confusa com os boatos.

– Ficou confusa? Sei, é fácil ficar confusa! Não é boato, é calúnia! Bem fazia a Layse quando dava uns murros na cara de uns e outros por aí. Ela que não nos ouça, graças a Deus que ela parou com isso. Pelo menos para dar conselhos para a sua filha eu servi. Vim apenas fazer um convite e não tinha necessidade de ouvir essa blasfêmia que você soltou nos meus ouvidos. A sua filha, eu não sei não, crescendo neste meio de gente maldosa, pobre de espírito, sei lá o que vão conseguir fazer com a índole dela. Essa cambada vai ter a sua ajuda, porque você acredita em tudo que te falam. Deus que me livre! Vou embora porque para mim já deu. Fica aí com as suas confusões que eu tenho mais o que fazer. Até mais ver!

Ceição levou a mão à boca sem saber o que fazer tamanha a falta de jeito por ter ouvido tudo que escutou da idosa. Layse entrou na sala neste momento, porque a casa era um ovo e ela ouviu toda a conversa.

– Precisava disso mãe?

– Minha filha…

– A senhora acha que eu teria alguma coisa com a D. Clarice? Uma mulher que nos tirou da miséria? Que me deu um emprego? Não acreditei quando a senhora falou aquilo para ela.

– Filha? As pessoas estão falando cada dia mais que ela é lésbica, que ela te engodou. Que ela te compra com dinheiro. Comprou um celular procê, essa televisão, te comprou roupas e agora quer até te levar para morar com ela. Ocê não percebe porque é muito nova e não tem maldade nenhuma no coração…

– Que tristeza ter que ouvir isso da sua boca. Agora eu sei o que é ingratidão. Só lamento pela senhora ter dado ouvidos a essa boataria. D. Clarice tem toda razão, a língua do povo é a voz do diabo. Que vergonha! Onde a que senhora enfiou o oitavo mandamento? “Não levantar falso testemunho.” Esqueceu-se dele?

– Filha? Se não é verdade…

– Mãe? Eu vou dar uma saída. Preciso refrescar a cabeça.

– Aonde que ocê vai?

– Uai, pergunta para o povo desta cidade, mãe. Eles não sabem tudo da minha vida?

– Ô minha filha, o povo adora falar, ocê sabe que o povo malda e não fui eu que espalhei essa história. Se meti os pés pelas mãos me perdoe.

– Quem tem que perdoar a senhora é Deus, mãe! Tchau!

Layse foi direto à casa de D. Clarice. Bateu na porta e a senhora apareceu olhando-a seriamente. Clarice percebeu a falta de jeito dela, enquanto Layse batia o bico da bota gasta no batente na porta sustentando os olhos dela.

– Vim saber se ainda posso voltar para trabalhar amanhã.

– Que pergunta que é essa? É claro que você pode voltar! Pode e deve! Que coisa, Layse!

– Muito obrigada. Então estarei aqui no mesmo horário. Com relação a minha mãe, não ligue não, ela foi envenenada pelo povo, mas vai perceber que está errada. Vamos dar tempo para ela chegar as ideias no lugar.

– Vamos sim.

– Boa noite e me desculpe qualquer coisa.

– Não tenho nada que te desculpar. Você não tem culpa pelo que a sua mãe fala. Boa noite!

Sentindo-se desamparada, perdida, completamente arrasada, Layse decidiu ir para um bar. Nunca tinha colocado uma gota de álcool na boca, mas naquele momento, se não bebesse alguma coisa não sabia o que faria.

Entrou então no bar do Juarez Silva, o bar aonde o pai chegou a beber algumas cervejas segundo Clarice lhe tinha contado. O bar ficava localizado exatamente no centro da cidade. O ponto estratégico do estabelecimento atraia a clientela, principalmente os jovens que ficavam sempre namorando na praça principal. Lá dentro, cumprimentou as pessoas que conhecia, chegando até o balcão, onde se dirigiu educadamente ao dono.

– Boa noite, senhor Juarez! Pode me servir uma cerveja, por favor?

Juarez a olhou com a cara fechada sem se dignar a responder. Virou-se pegando a cerveja na geladeira socando a garrafa em cima do balcão, falando grosseiramente:

– Você é menor de idade. Pega essa garrafa e vai beber lá nos fundos do bar. Se quiser outra, não volte aqui, pede para a garçonete que ela leva até lá. Vê se não fica bêbada que eu não quero ter mais problemas do que já tenho na minha vida!

Layse ergueu os ombros olhando a cerveja sobre o balcão. Olhou para a cara fechada de Juarez, respondendo:

– Se eu ficar bêbada o problema é meu! Cuida da sua vida!

– Olha como fala comigo, garota! Não vem com grosseria não que eu te coloco para fora do meu bar em dois tempos!

– O senhor é o quê? Hein? Oficial de justiça? Nem sabe tratar um cliente. Admiro muito este bar ainda estar aberto. O povo tem razão de falar que o senhor é um jumento que vive dando coice em todo mundo que entra aqui!

Juarez completamente chocado continuou olhando para Layse surpreso. Ficou mais cabreiro justificando apertado.

– Só avisei que menor tem que beber lá nos fundos…

– Têm que beber nos fundos é o quê? Quem está pagando bebe onde quiser. Vou beber nos fundos porque não vim aqui para ver ninguém. Vim foi para me esquecer da ruindade que vejo nas pessoas. O senhor vende bebida alcoólica para os menores, os destrata e os humilha mandando-os beber nos fundos como se eles não fossem ninguém. O dinheiro de todo mundo é igual. Não sabia disto não? Vim beber e faço questão de ser tratada com gentileza e respeito. Perdi o meu pai, mas não perdi a dignidade! Eu respeito o senhor se o senhor me respeitar. Ninguém fala assim comigo não! Estamos combinados ou não, senhor Juarez? Se não estivermos acordados pode voltar com essa droga cerveja para a geladeira e fim de papo!

Continua…



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