Vontade Ferrenha.

Capítulo 24

Layse chegou a casa de Clarice cumprimentando-a como sempre fazia. Pegou no batente trabalhando calada todo o tempo. Só conversou com o Isaque quando ele perguntava como deveria executar alguma tarefa. Em um destes momentos Layse parou o que estava fazendo para orientar o rapaz.

– Essas mudas aqui você vai enfiando em cada um dos buracos que nós fizemos. Olha aqui, está vendo?

– Tenho que aprofundar mais os buracos?

– Não, só enfia a muda e cobre com a terra.

– Mas e se o buraco…

– Isaque, preste atenção, não tem nada de se. Vou fazer um para você ver. Só olhe e aprenda.

Layse plantou a muda conseguindo a atenção dele.

– Viu? É só isso. Agora faça sem fazer mais perguntas. A minha cabeça está fervilhando, então não esquenta ela ainda mais.

Quando terminou o trabalho, Layse entrou para lanchar. Parou na porta da cozinha falando:

– Com a sua licença, Clarice.

– Tem toda, Layse!

Puxou a cadeira sentando, passando a comer cabisbaixa. Clarice largou o pano de pratos com o qual secava umas vasilhas, falando incomodada:

– Você fale logo o que se passa porque eu não estou gostando da sua tromba. Já fiquei sabendo que foi beber no bar do Juarez. Estão comentando que deu uma bronca naquele mal educado.

Layse a fitou dando um meio sorriso.

– Admita, ele precisava ouvir umas verdades, Clarice!

– Admito com todo o prazer. O que você falou para aquele jumento?

Layse contou tudo que tinha falado, porque lembrava cada palavra que jogou na cara dele.

– A cara dele caiu no chão, não caiu?

– Eu não sei, mas o ambiente naquele bar mudou da água para o vinho. Ficou todo mundo cabreiro e começou um cochicho sem fim. Não dei muita fé, fui lá beber umas cervejas, só isto. Precisava afogar mágoas.

– Eu queria ter estado lá só para ver a reação do Juarez.

– Ele ficou com cara de tacho. O assunto já está na boca do povo. Cruzei com gente que virava a cara para mim, e hoje me cumprimentou do nada. Fiquei foi besta com a mudança no comportamento de tanta gente sonsa.

– Não dê confiança que é tudo falsidade desta cambada. É isto mesmo, você falou foi poucas e boas para o Juarez e aquele lá, do ano passado para cá, parece que assentou o diabo no corpo dele. O homem mostra na cara que foi possuído, crendeuspai nele! Ele sempre era educado e do nada começou a dar coices nas pessoas. Parece que não pensa que precisa mais dos clientes do que eles dele. Porque de bar a cidade está cheia, repara bem que vai ver que tem mais bares do que salões de beleza. Também as mulheres agora vão mais para o bar do que para a igreja. Repara se alguma delas entra na igreja. No meu tempo, se uma mulher sentasse em um bar para beber ficava logo difamada. Recordo de uma vez que passei na porta de um bar com o meu marido, ele olhou para uma mesa onde estavam sentadas duas moças, e balançou a cabeça em sinal de reprovação. Falei na hora para ele deixar de ser atrasado. Hoje sim está tudo mudado, Layse! A mulherada caça e não disfarça. É um fogo no rabo sem fim. Eu já tive os meus tempos de bar antes de me casar.

Layse ouviu tudo que Clarice disse silenciosa. Quando ela acabou de falar, falou apenas uma frase.

– A senhora falou foi muito engraçado.

– E você está muito caladinha, que bicho te mordeu? Você saiu para beber por conta da conversa que ouviu entre eu e a sua mãe?

– Em parte foi sim, fiquei muito decepcionada com o que a minha mãe falou para a senhora.

– Minha filha, mãe é mãe e você não deve ficar magoada com ela.

– Eu sei que não devo ficar magoada e decidi ir beber. Estava precisando pensar com calma e tomei uma decisão.

– Que decisão?

– Vou avisar que só vou pagar mais um mês de aluguel. Depois vou aceitar o convite que me fez e vou mudar para cá.

– Sem a sua mãe?

– Ela virá comigo. Na rua é que não vai querer morar nem eu a deixaria sem um teto. Este dinheiro que vou economizar do aluguel vai ser útil para pagar a faculdade. Não quero ser uma pobretona a minha vida toda. Não quero que a mulher que eu amar, me olhe nos olhos e me diga que não vai ter nada comigo porque nem estudo eu tenho. Para as pessoas ricas quem não tem dinheiro e estudo não é digno delas. Eu sou digna com dinheiro ou sem dinheiro, mas como é o dinheiro que comanda, vou olhar por mim que eu faço mais.

– Nunca pensei que te ouviria falando tantas verdades.

– Eu cansei, Clarice! Fiz tanto e para quê? A minha mãe jogar na sua cara o que ela jogou foi a minha maior vergonha. Sinto muito que tenha passado por aquilo.

– Layse, releve e esqueça. Eu relevei. Quero mesmo que você venha viver aqui com a sua mãe. Pode ter a certeza que vou tratá-la muito bem. Exatamente como trato você.

– Tenho certeza disto e só tenho a agradecer. A senhora é uma pessoa que não tenho palavras para definir.

– Se eu contar quantas vezes você já me agradeceu durante todos estes anos não vou conseguir parar de contar.

– Creio que não vai mesmo. É isto, está decidido! Não dizem que quem paga é quem manda?

– Dizem por que é verdade.

– Pois sou eu que trabalho e sustento a casa, então sou eu que decido onde vamos morar.

– Meus parabéns por ter aberto os olhos. Olha, com relação a continuar os teus estudos, pode contar comigo que eu te ajudo a pagar a faculdade se você precisar. Vai ser um grande prazer investir no seu futuro.

– Muito obrigada! Vou aceitar a sua ajuda sim. Toda essa humildade que os meus pais incutiram em mim não me levou a nada.

– Não diga isto. A educação que os seus pais te deram é um tesouro que você possui.

– Sei lá se é. Bom, agora vou dar a notícia para minha mãe.

– Vá e boa sorte! Tenha uma boa noite!

– A senhora também. Até amanhã!

         Layse entrou em casa encontrando a mãe bordando com a televisão ligada. A televisão era a mesma que Clarice havia dado de presente no passado.

– Oi, minha filha! Já chegou? Vou tirar a janta procê.

– Carece não mãe, obrigada! Comi qualquer coisa na casa de D. Clarice. Só preciso ter um dedo de prosa com a senhora. Coisa pouca.

– Mas é claro, minha filha. Sente-se aqui do meu lado.

Ceição respondeu sentando novamente olhando-a em suspense.

– Preciso sentar não. A questão é que eu pensei bem e tomei uma decisão.

– Decisão? Que decisão?

– Vou pagar o último mês de aluguel e deixar conversado com o proprietário que vamos entregar o imóvel.

– Uai, minha filha. Isto não vai ser bão não. Vamo morar aonde?

– É exatamente o que a senhora está pensando, nós vamos morar na casa de D. Clarice.

– Eu não quero mudar para a casa da Clarice! Acho isto muito errado porque o povo vai falar ainda mais e não vai dar em coisa boa. O nosso nome andando aí de casa em casa, até na igreja vão me olhar de cima a baixo.

– Tem nada que querer não e o povo que vá para o quinto dos infernos. A senhora vai morar aonde se não mudar comigo?

– Nesta casa aqui, uai!

– Nesta casa? Vai trabalhar para pagar o aluguel?

– Ocê sabe que não tenho condições de trabalhar. Ocê paga o aluguel para mim.

– Eu? A senhora está pensando que sou um burro de carga? Desde que me entendo por gente que trabalho para sustentar essa casa e a senhora sabe o que eu tenho?

– Não precisa se exaltar…

– “Eu tenho é bosta de Zé Rosa.” A senhora escute a verdade, eu não tenho porcaria nenhuma que seja minha! Não tenho um computador, não posso comprar uma roupa nova, e olha essa minha bota, qualquer dia vai correndo para o lixo sozinha. Não tenho um celular que é que nem bunda e até varredor de rua tem. A senhora sabe o que é um celular? Sei que sabe, pois nunca pude comprar um. Estou usando o que D. Clarice comprou para fazer os negócios dela, mas tenho é muita vergonha de usar por que não é meu. Trabalho, trabalho e o dinheiro que eu ganho vai todo para os remédios da senhora, para o aluguel desta casa, para a comida, para a luz, para a água, o gás e eu vou viver assim até quando?

– Ocê é nova ainda e tem muita força para trabalhar, Layse…

– Sou nova, não é? Ser nova não me ajuda para nada. Como já falei vou entregar a casa. Se a senhora decidir continuar morando nela, procure o doutor Salomão e peça a ele para pagar o aluguel. Não foi ele que pagou no passado?

– Não seja ingrata!

– Eu ingrata? A ingrata sou eu? Não quero nem saber de render assunto que já está decidido. A senhora está avisada. Eu vou mudar para a casa de D. Clarice. No final do mês o Isaque e mais dois rapazes vão fazer a mudança. A senhora resolva porque eu estou farta de contar tostões. Vou fazer faculdade e o dinheiro que vou economizar do aluguel vai me ajudar e muito.

– Por que ocê tinha que inventar de fazer faculdade? Ocê não tem que ambicionar demais não. Te ensinei “que o pouco com Deus é muito.”

– Não estou ambicionando coisa nenhuma. Todo mundo tem o direito de ter um pouco mais na vida. Só quero estudar para ter um salário que me possibilite comprar as coisas que eu sonho em ter.

– Ocê vai é dar mais motivo para o povo falar de nóis.

– Foi com dez anos de idade que eu comecei a colocar comida dentro de casa. Tirando o doutor que trazia cesta básica e as misturas todos os meses e D. Clarice que me deu emprego, algumas roupas e essa televisão, ninguém desta cidade veio aqui trazer nem um bago de feijão. Ninguém está me ouvindo? Percebe agora qual é a importância desta gente para mim? É nenhuma!

– Mas ninguém tem a obrigação de dar nada para ninguém…

– Exatamente! Ninguém é obrigado de fazer coisa alguma, concordo.

Ceição ficou muda olhando-a sem saber o que falar.

– Que ótimo, parece que está conseguindo ver o meu lado. O assunto está encerrado. A senhora vá embalando as coisas pouco a pouco. Não precisa ter pressa não.

– Já que não tenho outra escolha.

– Não, não tem! Minha escolha sempre foi trabalhar para manter a senhora e o meu pai, que Deus o tenha. “Quem pode escolher é rico, pobre se conforma ou chora!” Vou sair. Boa noite, mãe! 

Layse chegou à praça onde os jovens da cidade se reuniam ainda perturbada. Sentou no banco pensando se não seria melhor entrar no bar para beber. Podia beber para esquecer tudo que a estava chateando. Ergueu-se e parou olhando para Claudia que apareceu na sua frente.

– Oi, Layse! Faz tempo que não te vejo. Sumiu por quê?

– Oi, Claudia! Não sumi, eu trabalho demais. Está de volta?

– Vim para o aniversário da minha mãe. A festa será amanhã. Só termino a faculdade no meio do ano que vem. Depois vou voltar para Cielo e trabalhar com o meu pai.

– Ah, tá!

– Você está namorando?

– Que namorando que nada.

Layse deu de ombros correndo os olhos nos jovens que se aglomeravam pela praça. Eram muitos e não paravam de chegar.

– O trabalho tem feito muito bem para o seu corpo. Está ficando cada vez mais sarado.

– Sarado? Hum.

– Eu perguntei agora mesmo por você para a Soninha. Ela e a galera estavam comentando o que aconteceu no bar do Juarez.

– Parece que não se fala em outra coisa nessa cidade.

– Falaram que você arrasou. Gosto desse seu jeito. Admiro muito mulher que se impõe. Você está com a maior moral.

Layse a fitou por um instante notando como Claudia a olhava com mais interesse.

– Almocei com a Valentina na faculdade e ela comentou que rolou um lance entre vocês. Eu sempre quis pegar a Valentina, mas somos amigas e ela é difícil. Você ficou gata demais, ela com certeza não resistiu à sua beleza.

– A Valentina é difícil? Quase tive vontade de rir com essa.

Layse respondeu sem disfarçar a ironia.

– Valentina? Eu hein, você nem faz ideia do quanto.

– Hum, pensei que ela ficava com meio mundo.

– Hahahahahahahahaha, menina, que nada! Quem me dera. Ou melhor, lá na facu a mulherada do meio é tudo doida para dar uns pegas nela. Além de ser linda, ela tem aquele porte que é uma coisa de louco. A mulherada pira nela.

Layse não riu e muito menos gostou de ouvir aquilo.

Continua…



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