Vontade Ferrenha.

Capítulo 28

Após desligar o telefone, doutor Salomão foi até a casa de Clarice para saber detalhes sobre a história da viagem de Layse. Depois de conversar com Ceição, se aproximou de Layse para falar em particular com ela. Layse que estava plantando couves se voltou cumprimentando o médico.

– Olá, doutor!

– Oi, Layse! Tudo bem?

– Tudo bem, obrigada! Como tem passado? Tem notícias da Valentina?

Layse perguntou, apertando a mão dele abrindo um largo sorriso. Sempre que olhava para ele pensava que um dia poderia vir a ser o seu sogro. Seria sogro e padrinho, embora ela não se importasse com aquilo dele a ter batizado.

Salomão sorriu refletindo sobre o fato de que sempre que encontrava com Layse, ela nunca deixava de perguntar pela filha. No fundo ele tinha certeza de que elas tiveram um desentendimento no passado. Valentina perguntava muito mais sobre Layse. Gostava de saber detalhes sobre ela. Com quem ela andava, se ficava com alguém, se saía muito de casa. Já Layse era mais comedida, ainda assim, ele sentia algo no ar que ambas teimavam em disfarçar.

– Estou bem, obrigado! Valentina está ótima! Vim até aqui por causa das preocupações da sua mãe com relação ao convite que você recebeu para ir para São Paulo.

– O senhor já ficou sabendo? Quem iria pensar que um empresário de São Paulo fosse querer me contratar para visitar seus estabelecimentos, não é? A minha mãe ficou cheia de preocupações, mas o doutor sabe que eu não sou ruda.

– Sei que não é, mas também nunca foi para São Paulo.

– Isto é verdade, ouço contar que aquilo lá é uma imensidão de prédios e um formigueiro de gente. Agora vou ver com os meus próprios olhos.

– É sim Layse. Houve uma época em que o Estado de São Paulo quis até se tornar um país independente do Brasil. Você já pensou se vai aceitar? Porque se for já andei mexendo os pauzinhos para te resguardar.

– Resguardar? Uai, por quê? O senhor acha que eu vou ficar feito besta pedindo a gente estranha para tomar conta da minha mala? Não sou lerda assim não, padrinho! Posso nunca ter viajado para uma capital, mas eu não confio é em ninguém. Isso é a coisa mais certa, pode escrever que eu assino em baixo.

Foi a primeira vez que Layse o chamou de padrinho. Isto o fez dar um sorriso bonachão.

– Não é isso, Layse! Você vai precisar de pouso seguro. A caminho daqui, liguei para a Valentina e vi com ela a possibilidade dela te dar hospedagem. É só uma semana, não vai ter problema nenhum para ela.

– Eu vou ficar hospedada na casa da Valentina? Uai.

O coração de Layse, botão fechado e guardado, abriu-se feito uma flor germinando. O sorriso que surgiu lhe nos lábios parecia que não teria mais fim.

– Claro que sim, Layse! Vai ser melhor para você e a sua mãe ficará despreocupada. Até eu ficarei mais tranquilo sabendo que estará em segurança com a Valentina.

Embora tivesse ficado eufórica com a ideia de ficar hospedada na casa de Valentina, Layse pensou na estranheza dele já ter até ligado para ela.

– O que você acha dessa ideia, Layse?

– A Valentina aceitou assim de bom grado eu ficar hospedada na casa dela?

Bastou essa pergunta para Salomão ter a certeza de que elas tiveram mesmo um desentendimento no passado. Certamente foi logo após a morte de Agenor, no final de semana em que andaram saindo juntas.

– Claro que sim. A sua mãe me ligou e eu liguei imediatamente para a Valentina. Por que ela não aceitaria te hospedar? Não vejo razões para isso não acontecer. Vocês são amigas desde novinhas.

– É verdade, mas faz quase dois anos que ela não aparece para ver a minha mãe com o senhor, só por isto.

– Isto é porque Valentina sempre que vem fica só o final de semana. Ela sai com as colegas e o tempo, você bem sabe, voa.

– Sim, eu sei que o tempo voa até mais rápido do que passarinho.

– De fato. Quanto a ver a sua mãe, futuramente será a Valentina a executar essas visitas. Ela sabe que a Ceição vai ficar descansada se você ficar sob o teto dela.

– Preocupação de mãe tem hora que é desnecessária.

– Até parece que não conhece a sua mãe. E você tem que ficar feliz dela se preocupar porque isto é demonstração de amor.

– O senhor nem precisa falar disso que já sinto é muito a falta do meu pai.

– Eu posso imaginar. Então está tudo resolvido?

– Uai, ainda não! Falta eu dar a resposta para o homem. Daqui a pouco ele virá aqui.

– Então vou esperar para conhecê-lo com você.

Layse olhou para Salomão comentando séria:

– Sei me cuidar muito bem, viu padrinho! Eu lido com cada homem difícil que só eu que sei. Este empresário é só mais um homem.

– Realmente, mas nós não o conhecemos e é bom que ele veja que você não é uma mulher desprotegida. O seu pai já não está entre nós, mas eu faço questão de te apoiar e proteger. Fui eu que te trouxe ao mundo e sou o seu padrinho! Gostei de ouvi-la me chamando de padrinho.

– É, saiu. Só não estou entendendo o que o senhor está querendo dizer com desprotegida. Não sou desprotegida coisa nenhuma. Eu sei me defender muito bem.

– Você faz ideia da quantidade de garotas que aceitam propostas de emprego de estranhos e nunca mais dão notícias para os seus familiares?

– Não estou aceitando um emprego, já tenho o meu e dele não abro mão. Isso é só uma intera que eu faço. Ganhei dinheiro em alguns estabelecimentos em Vassourinhas. Até em Vista Prateada e o dinheiro que recebo não é qualquer dinheiro.

– Já foi até em Vista Prateada? Estou impressionado!

– Então não fui? Fui sim e ganhei um dinheirão que nunca vi igual. A transformação do bar do Juarez correu de boca em boca e os comerciantes não param de me procurar. Estou pagando a faculdade sem precisar da ajuda de D. Clarice e guardando um tantão ainda. Vou até comprar um carro.

– Sim, isto é muito bom. O bar do Juarez virou outro. Você fez um grande bem para ele chamando-o à razão. O pobre homem vivia atormentado com o filho em tempo de bater as botas.

– Estou sendo chamada até para outras cidades, mas eu…

– Você?

– É que não gosto de ficar viajando para muito longe de casa.

– É, mas São Paulo é muito longe da sua casa.

Mas em São Paulo tem a Valentina, nas outras cidades não tem. Este pensamento Layse guardou para ela, dando um meio sorriso.

– É verdade. De qualquer das maneiras um dia eu acabaria por conhecer São Paulo, mas espera aí doutor.

Layse calou-se encasquetada caindo em si.

– O senhor disse que o filho do Juarez andou em tempo de bater as botas, foi?

– Como andou, quase morreu o garoto. Agora está vendendo saúde porque Deus é muito bom.

– Quando foi que isso aconteceu?

– Foi há uns dois anos. Por isto que o Juarez mudou daquele jeito passando a maltratar os fregueses. O filho estava definhando de câncer. Juarez até amaldiçoou Deus e a coisa ficou feia para o lado dele.

– Ah, que triste! Não ouvi falar sobre isso! E eu soltei os bichos nele. Se eu soubesse, poxa vida, então eu peguei pesado demais. Pisei na bola.

– Nada disso, para o Juarez passou a ser Deus na terra e você no céu. Ele te tem em alta conta. Não faz mal para ninguém ouvir umas verdades quando se está fazendo uma asneira atrás da outra. Tudo piora quando uma pessoa perde o passo. Ele estava sem rumo e você o fez refletir e voltar a ser o bom homem que sempre foi.

– Se é assim. Mas o que importa é que o filho dele ficou curado.

– Exatamente. Vamos tomar um café até que o empresário venha?

– Podemos, é lógico! Como o café de D. Clarice não tem igual. Ah, até que tem! O café da Darlinda também é de tirar o chapéu. Já tenho saudades do café dela.

– Estou certo que quando a Valentina voltar de vez e isto não vai demorar muito, você vai aparecer lá em casa para tomar muitos cafés.

Layse olhou para o médico tentando entender o que ele quis dizer com aquilo. Depois deu de ombros entrando com ele. Sentaram na sala enquanto Clarice providenciava um café. O que mais gostava nas visitas do doutor era que ele falava com orgulho sobre a filha. Que melhor forma de saber notícias sobre a mulher que amava se não através do pai dela? Assim, Layse ficou ouvindo o médico conversando com sua mãe e Clarice enquanto tomavam café. Ceição não perdia o costume de fazer perguntas sobre Valentina, as quais Salomão respondia cheio de orgulho. Mesmo desiludida por Valentina viver a sua vida sem lembrar-se dela, Layse continuava cada vez mais enamorada. As únicas pessoas que sabiam do seu amor por Valentina, continuavam sendo Clarice e Isadora. Aquele segredo estava muito bem guardado, já que ambas eram inteiramente discretas.

 

Naquela noite, quando Denise apareceu, Valentina contou da chegada de Layse:

– Vou hospedar uma amiga da minha cidade aqui em casa por alguns dias.

– Por alguns dias?

– Sim. Por quê?  

– Ora, sei lá. Achei estranho! Desde quando são amigas?

– Te faço perguntas sobre as suas amizades por acaso?

Valentina perguntou, depois bebeu um gole do suco que tinha nas mãos.

– Tem razão. Só espero que ela não seja bonita.

– Para com isto Denise. Que importância tem ela ser bonita ou feia? Eu hein!

– Se você ficar bancando a babá dela nós nem teremos tempo para ficarmos juntas.

– Nossa, mas você também gosta de um climão. Se for necessário vou levá-la em alguns lugares, afinal ela não conhece nada daqui. Não vou deixar que ela fique perdida nessa cidade.

– Só estou falando por que…

– Vamos encerrar este assunto. A casa é minha e eu hospedo quem eu quiser. Nunca fui indelicada com nenhuma visita e não será agora que vou começar a ser.

– Ok, desculpa! Não precisa se exaltar.

– Tudo bem.

– Assunto encerrado. Vamos para o quarto?

– Não, quero ficar deitada no sofá descansando. Estou pregada hoje.

– Isto quer dizer que não vamos transar de novo, porque ontem você já não quis.

– Isto quer dizer que eu estou pregada como estava ontem. Quando formos para cama veremos se vamos transar. Já te ocorreu que para fazer sexo é preciso estar disposta?

– Você tem um gênio muito difícil.

– Vai trabalhar em um hospital e depois vem me falar de gênio difícil.

– Já que é assim, vou correr um pouco.

Pegando o livro que estava lendo antes dela entrar, Valentina sequer se dignou a responder. Denise perguntou olhando-a desconfiada.

– Está chateada comigo por alguma razão?

Valentina a olhou ela sem a menor vontade de conversar.

– Tenho motivos para estar?

– Sei lá! Por isto que estou perguntando.

– Não estou com vontade de conversar, estou estudando. Posso?

– Certo, fique à vontade. Não demora e vai falar que está com dor de cabeça.

– Olha aqui Denise, eu não invento dores para me esquivar de intimidades. Quando não quero falo logo e fim de papo. Aff…

– Estou sabendo. Já vou, não demoro.

Valentina ouviu a porta fechando, dando um suspiro. Irene entrou na sala cubando o ambiente para ver se a patroa estava mesmo sozinha.

– O que foi, Irene?

– Vim só saber se já quer que eu sirva o jantar.

– Ainda não. A Denise foi dar mais uma das corridas dela. Depois que ela voltar você serve, obrigada!

– Posso perguntar uma coisa?

– Claro que pode.

Valentina respondeu voltando-se. Neste momento abriu um sorriso que fez Irene relaxar lançando a pergunta:

– A patroa está cheia da Denise, não está não?

– Ai, Irene! Relacionar é tão difícil, boba! Às vezes fico pensando porque começo sabendo que vai dar nisso. Tem dias que só quero ficar quietinha sem ter que aguentar azucrinações no meu juízo.

– Relacionamento é difícil mesmo. Tive um namorado que só queria ficar fazendo o trem o tempo todo. Isso cansa, né não? Eu queria dançar, passear e ele nada. Quando íamos ao cinema nem me deixava ver o filme. Safadeza é bom, mas tem outras coisas boas para se fazer na vida também.

– Como tem Irene. Falou tudo. Adoro sexo, mas não suporto ser pressionada. Irrita-me, sabe? Sexo é bom quando flui naturalmente. Do contrário nem relaxo. 

– Então não sei? Reparei que a patroa perdeu a paciência com ela.

– Falando muito sinceramente perdi mesmo. Saber que ela andou remexendo as coisas aqui em casa não me agradou nada. Mas, como diz o meu pai, ninguém é perfeito.

– Concordo, mas ser entrona é um dos piores defeitos que eu conheço. Não dá para confiar em gente assim.

– Vou conversar com ela sobre este assunto. Mas você sabe quando a pessoa começa a te dar preguiça até de conversar?

– Uai, então danou-se foi tudo agora.

– A verdade é que estou triste comigo mesma. É péssimo cair na real e ver que mais um relacionamento foi um erro. Sinto uma sensação de fracasso. Bom, mas deixa isso para lá. A Layse vai chegar e quero mais é estar bem disposta para recebê-la.

– Ah, o nome dela é Layse? Que nome bonito sô.

– Sim, é um nome lindo. Ela também é muito bonita.

– E é bonita? Virge Maria!

Valentina começou a rir da cara de Irene.

– De fato é uma mulher muito bonita pela qual tenho muita estima. O meu pai é padrinho dela. É muito querida e eu… Bem… Ela merece ser bem acolhida. Faz dois anos que não nos encontramos. Há dias em que me pego pensando tanto nela. O passado, muitas vezes volta tão forte. Quem nunca fez besteira nessa vida, não é? 

– É verdade. Posso fazer só mais uma pergunta?

Valentina voltou a rir porque Irene acabava por diverti-la com a sua forma de ser. Gostava dela e sentia muita confiança em sua pessoa também. Irene era muito leal. Por isso mesmo quando se dava conta já estava se abrindo com ela.

– Pode sim, Irene. Faça lá as perguntas que quiser.

– A última vez que o doutor veio aqui ele falou que não vê a hora de ter a patroa de volta em casa. Fiquei pensando que vou ficar desempregada. Vou perder meu emprego?

– Olha Irene, foi bom tocar neste assunto. Dentro de pouco tempo devo concluir a especialização e vou embora sim. Você gostaria de ir comigo para Cielo? Não queria ter que te dispensar. Não sei se encontro uma pessoa tão valiosa como você.

– Se eu gostaria? Uai, eu vou é amar ir! Assim vou poder ver meus pais mais vezes. Vai ser maravilhoso! Aceito com muito gosto.

– Fico feliz que deseje ir comigo. Já estou muito acostumada com o seu jeito. Você vai gostar muito da Darlinda. Ela é um amor de pessoa.

– Acredito que vou gostar sim. Com licença, então!

 

                No dia seguinte o doutor levou Layse ao aeroporto. Quando desembarcou em São Paulo, um motorista estava à espera dela a mando do empresário Matias. Levou-a até ao endereço que Layse lhe passou.

Chegando à portaria do prédio, se identificou para o porteiro.

– Sim, a doutora Valentina avisou sobre a chegada da senhorita. O elevador fica bem ali. O número do apartamento é 224.

– Muito obrigada! Com licença!

Layse subiu no elevador toda apreensiva. Tocou a campainha aguardando ser atendida. Quem abriu a porta para recebê-la foi Denise.

– Oi! Você é a Layse?

– Olá! Sou eu sim. Boa tarde!

– Boa tarde! Vai entrando.

– Com licença!

Layse entrou na sala reparando ao redor com bastante atenção. A namorada de Valentina ficou olhando-a de cima a baixo dando-se conta do quanto ela era bonita. Ficou mais incomodada por uma mulher bonita como aquela ficar hospedada ali.

– Você e a Valentina se conhecem há muito tempo?

Perguntou à queima-roupa.

Layse soltou a mala no chão voltando-se para a mulher que a observava sem esconder a curiosidade.

– Somos amigas desde crianças.

– Não fazia ideia. Ela não falou sobre você. De repente contou da sua vinda.

– O que ela teria para falar sobre mim para quem nem me conhece?

– Muita coisa, afinal sou a namorada dela!

Layse a olhou de cima a baixo perguntando sem disfarçar o descaso:

– Você? Uai, sabia disso não.

– Sou sim, por quê? Valentina não te contou que tem uma namorada?

– Importa não.

– Importa sim! Por que quê não importa? Não estou te entendendo.

– Precisa me entender também não. Vou ficar aqui só uma semana. Não gosto de ser motivo de preocupação para ninguém.

– Melhor que seja assim mesmo. Não se meta com a Valentina porque o meu estopim é muito curto. O meu apelido é sem paciência.

– E eu com isso?

Layse questionou sem se importar com a expressão ameaçadora de Denise diante dela.

Ainda acrescentou, admirada:

– Agora vê só.

– Ah, você é metida a engraçadinha? Já estou te flagrando.  

– Ta flagrando eu por quê? Não sou bandida para ser flagrada. Se fosse piada iria morrer de rir agora. Acontece que a estupidez não me dá a menor vontade de rir.

– Está me chamando de estúpida?

– Pareceu que chamei? Sei disso não, foi um mero comentário. Gosto de amenidades, não me parece ser o caso aqui.

– Acho bom você abaixar a bola comigo porque para cima de mim ninguém cresce!

Layse pensou que aquela mulher não fazia ideia de que ela e Valentina tinham feito amor gostoso várias vezes. Embora não tivessem voltado a se falar depois disso, ainda eram conhecidas da mesma cidade. Conhecidas que se tornaram próximas por causa do doutor. Porque os caminhos das suas famílias se cruzaram como o de muitas se cruzavam. Porque o pai dela era o seu padrinho também. Por outros fatores que não interessava aquela mulher. Tanto, que Valentina não lhe tinha contado nada. Se não contou é porque aquela criatura não devia passar de uma mosca. Pela atitude arrogante tratando-a daquela forma grosseira, imaginou como Valentina, sendo uma mulher tão refinada podia estar se relacionando com um ser daqueles. Arriscando um palpite instantâneo, concluiu que na frente de Valentina aquela doida devia ser uma pessoa e longe dela, outra. Só podia ter duas caras.

Continua…



Notas:



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