Vontade Ferrenha.

Capítulo 4

Após jogar bola com os garotos e bater em um deles, Layse correu para casa, tomou um banho, seguindo feliz da vida para a casa de D. Clarice.

Quando chegou Clarice levou-a até o quarto mostrando alguns vidros de perfume.

– Pode escolher e usar o que você mais gostar.

– Pedi não senhora.

– Deixa de besteira. Estou te ensinando uma coisa fundamental, uma mulher tem que estar sempre cheirosa.

– É? Ainda nem sou mulher, D. Clarice!

– Dentro de alguns anos será. Pode cheirar todos os frascos e o que escolher vai ser seu. Vou lá desligar as panelas. Estou morta de fome.

– E eu então. Já vou ligeira D. Clarice.

– Está bem.

Clarice deixou o quarto e Layse cheirou os perfumes sentindo-se importante. Passou o que mais gostou amando o cheiro em sua pele. Depois foi para a cozinha toda animada.

Clarice serviu seus pratos sentando para almoçar com ela. Viu neste momento um arranhado na testa de Layse.

– O que foi isto aí na sua testa? Machucou no jogo?

– Não senhora! Bati num menino arteiro que passou a mão na minha bunda. Eu sempre bato nos meninos que vem com assanhamento.

– Ah, sei! Você se defende. Entendi.

– Defendo sim. Meu pai sempre diz que homem atrevido tem que tomar uma sova para aprender a respeitar uma mulher.

– Seu pai está certo.

– D. Clarice?

– O que foi Layse?

– Estava aqui matutando se posso fazer uma pergunta para a senhora, mas que ninguém nos ouça. Não tenho coragem de fazer para a minha mãe e tenho vergonha de perguntar para as professoras. Sinto que isto é uma coisa que não devo falar nem em voz alta.

– Pode fazer a sua pergunta. Se eu puder te ajudar, responderei com toda a certeza.

Layse soltou os talheres no prato vazio criando coragem. 

– A senhora sabe se existe muita mulher que gosta de mulher?

Clarice já tinha percebido a tendência dela e sabia muito bem que era lésbica. Como sabia que se ainda não tinha se dado conta, Layse acabaria entendo aquela realidade. Acertou bem no alvo, Layse estava começando a se questionar sobre o tema.

– Existe sim, Layse.

– Ah! Eu pensava que tinha um problema por gostar de olhar para as meninas em vez dos meninos.

– Não, você não tem problema nenhum. Existem mulheres que gostam de mulheres e homens que gostam de homens.

– Eu nem sei se isto é certo. 

– Se você nasceu deste jeito, é lógico que não é errado. Isto só diz respeito a você e a ninguém mais.

– Com essa gente faladeira daqui eu sei lá. Mulher que gosta de mulher nesta cidade eu nunca nem vi, mas homens eu vejo sempre. Sabe aqueles que parecem mulher quando falam e andam? Até tem alguns meninos assim lá na escola.

– Sei sim. Vou passar na biblioteca essa semana para pegar um livro sobre este assunto que você deve ler para entender melhor.

– Vai ser bom demais. Tem muita coisa que fico matutando sem entender.

– Pode deixar. Depois que ler você vai entender porque nasceu assim, como tantas pessoas nascem.

– A senhora não se incomoda deu ser assim?

– Claro que não me incomodo. Você é como é e não deve se envergonhar disto.

– Sinto vergonha não. Só estou falando porque na escola, os alunos debocham dos meninos afeminados. Então devem de debochar das meninas também.

– Nesta vida é assim mesmo, as pessoas se incomodam com quem é diferente. Não liga para isto. Você tem que ser íntegra e honesta. É o que fará de você uma boa pessoa.

– Eu pensava que eu já era uma boa pessoa.

– Você é, é justamente por isto que trabalha comigo e tem toda a minha confiança.

– Foi muito bom saber disto.

– Por mais que você seja boa, sempre pode vir a ser melhor do que é. 

– Sim senhora. Vou pensar muito sobre isto quando deitar na minha cama hoje à noite. Depois que eu pensar na Valentina.

– Valentina? Eu não fazia ideia. Você pensa nela desde quando?

– Penso é muito desde que eu me entendo por gente. Sou doida nela.

– Você quer dizer que é doida por ela.

– Sou sim, mas, é que a Valentina parece não gostar de pobre.

– Você acha? Não sei não, Salomão contou-me que passou a doar a cesta básica para os seus pais a pedido dela.

– Foi mesmo, mas isto porque ela teve pena de mim.

– Pena muita gente sente, mas quem tem preconceito realmente nem faz questão de ajudar. Ela pediu ao pai para ajudar vocês. Não acha que ela foi boa?

– Acho sim. Sou muito agradecida a ela por isto. Mas, quando fui para o sítio com ela uma vez, até perguntei se iríamos namorar algum dia. Ela disse que rico não namora com pobre.

– Que idade ela tinha quando te disse isto?

– Ela tinha doze anos e eu seis.

– Acho que não devia levar tão a sério a resposta que ela te deu. Você não faz ideia como as pessoas mudam depois que crescem.

– Sei mesmo não. Não sei nem o que vou fazer com essa minha doidice por ela. Talvez ela nem volte nunca mais para Cielo.

– Layse escute aqui uma coisa, Valentina está em São Paulo estudando medicina. Quando se formar vai voltar para Cielo e assumir os pacientes do pai. É o maior sonho dele e ela é uma filha consciente.

– Tomará que sim, mas fico pensando se ela conhecer uma mulher por lá. Nem sei o que vou fazer da minha vida se isto acontecer.

– Ah, bom, isto pode acontecer sim! São Paulo tem milhões de mulheres e com certeza existem muitas lésbicas. Talvez uma conquiste o coração dela. Se isto acontecer você não vai entregar os pontos.

– Ah, D. Clarice…

Clarice viu os olhos dela enchendo-se de lágrimas. Tantas que começaram a escorrer abundantemente pela face.

– Mas o que é isto agora? Aprenda uma coisa.

– O quê?

– Você tem que ser forte! Nunca, mas nunca mesmo sofra por algo que não aconteceu ainda. A vida tem o seu curso natural. Lágrimas? Até elas são especiais para você desperdiçar chorando à toa. Não chore mais.

– Choro mais não.

Layse respondeu fungando enquanto passava as mãos no rosto para secar as lágrimas que ainda saltavam dos olhos.

– Agora controle as suas emoções e nem pense em ter vergonha por ser pobre. Ser pobre é uma condição que pode ser mudada quando a pessoa se esforça para melhorar de vida.

– Tá bem então.

– Vá lavar o seu rosto para assistirmos ao filme.

– Vou só lavar a louça para a senhora antes.

– Hoje é dia de descanso. Não precisa lavar nada. Vou te esperar na sala.

Layse assistia filmes na escola, mas nunca pensou que iria assistir algum dia, um filme como “Amor, Sublime amor.”

Quando terminou o filme, com lágrimas nos olhos, perguntou para Clarice curiosa:

– Será que na biblioteca tem o livro deste filme, D. Clarice?

– Eu tenho este livro. Gostaria de lê-lo?

– A senhora não faz ideia do quanto eu gostaria.

– Quando for embora te empresto. Mas lembre-se, tudo que alguém te emprestar devolva sempre. “Emprestado não é dado.”

– Tá bem, D. Clarice. Vou devolver sim. É uma promessa.

– Ótimo! Os livros são sempre melhores do que as pessoas. Qualquer um que você queira ler ficará muito bem acompanhada.

– Porque a senhora acha que os livros são melhores do que as pessoas?

– É só uma maneira de falar. Quando você crescer e começar a conhecer as pessoas mais a fundo, vai entender o sentido das minhas palavras. Dizem que o “melhor amigo do homem é o cachorro.” Meus grandes amigos são os meus estimáveis livros.

– Vou pensar sobre isto também.

– Pense mesmo. Vamos ver mais um filme?

– Vamos sim!

Depois que viram o segundo filme, “Suplício de uma saudade”, Layse perguntou:

– D. Clarice?

– Oi, Layse.

– Como foi que a senhora percebeu que amava o seu marido?

– Senti o amor correndo no meu ser e a sensação que eu tive foi de que ele já fazia parte de mim. Estava irremediavelmente perdida, porque sem aquele homem, a minha vida não tinha mais graça.

– Entendi não senhora. O amor é como um líquido que entra na gente?

– Ah, minha filha! Se não te conhecesse iria pensar que você é burra.

– Uai, gostei de ouvir isto não. Sou burra não senhora!

– Sei que não é. Foi só um comentário, não fique chateada. Você só pode saber que está amando uma pessoa quando aquele sentimento for intenso. Antes disto vai viver se perguntando o que é o amor.

– Vou nada, eu amo a Valentina. É como a senhora falou, parece que ela vive dentro de mim. No meu sangue, em toda eu, deve até dormir no meu pensamento. Eu gosto é muito de sentir a Valentina. Nem parece que ela tá tão longe.

Clarice sorriu pensando na pureza de Layse. Ela realmente amava Valentina.

Layse passou a pegar livros emprestados com Clarice. Depois Clarice colocou o nome dela na sua ficha da biblioteca. A partir de então, Layse passou a buscar cada vez mais livros e assim, os seus horizontes foram se ampliando.  

 

        Os meses continuaram passando. Uma tarde Layse foi novamente levar as compras do doutor. Ele entrou pela porta da frente passando com ela pela sala de estar. A menina parou instintivamente olhando a foto pendurada na parede completamente deslumbrada. O doutor voltou da cozinha estranhando que ela ainda não tivesse chegado lá. Parou vendo Layse olhando fixamente o retrato de Valentina.

– Recebi essa foto na semana passada, é a mais recente que a Valentina me enviou. Ela está mais bonita. Você não acha?

– Está é linda demais. Valentina é mais bonita do que a primavera.

– Do que a primavera?

O médico perguntou observando a expressão de Layse com mais atenção. Os olhos dela brilhavam tanto, que o fato o surpreendeu.

– Então não é? O rosto dela tem tanta luz. Sorrindo assim parece uma violeta com a formosura dos ipês. Aqueles que quando florescem, colorem toda a cidade. Chego a pensar que sem o sorriso dela, todas as flores podem até desaparecer deste mundo.

Salomão nunca imaginou que ouviria um elogio como aquele sobre a filha. Layse tinha soltado as sacolas no chão para aproximar da foto e admirar mais atentamente.

– Foi a sua mãe que cuidou da Valentina quando ela era criança.

– Eu sei. A minha mãe me contou.

– Valentina foi um bebê lindo.

Layse continuou admirando a foto e perguntou distraída:

– Essa foto, o senhor tem uma dela menor?

– Tenho sim. Essa aí eu mandei ampliar.

– Pode me dar ela? Para…

Ela se calou pensando numa justificativa para querer a foto.

– Para dar para a minha mãe. Ela vai gostar de ver como a Valentina cresceu.

– Claro que sim. Eu nem tinha pensado sobre isto. A Valentina veio passar o feriado aqui e eu a levei para ver os seus pais. Pena que você não estava lá.

– Tava mesmo não. Tenho muito serviço na casa de D. Clarice.

– Vou buscar a foto no escritório e você coloque as compras na cozinha, por favor!

– Sim, senhor!

O médico saiu e Layse estendeu a mão acariciando o rosto de Valentina. Passou os dedos pelos lábios dela. Então caiu em si, pegou as sacolas, rumando para a cozinha perturbada.

– Aqui está a foto.

– Muito obrigada. Queria avisar para o senhor que não vou mais carregar compras.

– Ah, não? Por quê?

– Por que D. Clarice vai aumentar o meu salário se eu for mais cedo para a casa dela. A horta está cada vez maior e estou fazendo novos canteiros. Também plantei uvas e milho.

– Muito bem, Layse. Parabéns! Se é assim será melhor para você. Ah, Layse? Diga-me porque você nunca me chama de padrinho?

Layse olhou atentamente para o médico dando um sorriso matreiro. Ergueu os ombros respondendo timidamente:

– Sei por que não senhor.

– Tudo bem. Obrigado e até logo!

– De nada. Até logo!

Continua…

Notas da autora: Desejo um 2018 cheio de coisas maravilhosas para vocês! Que no ano novo possamos realizar todos os nossos sonhos. Muita força e fé!

“Algo vem vindo, algo de bom. Se eu souber esperar algo virá. Não sei o que será, mas será demais.”

Amor, Sublime amor.



Notas:



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2 Respostas para Capítulo 4

  1. Obrigada,Astrid,pra ti também!Que 2018 seja repleto de boas emoções!Estou adorando a tua história!
    Bjuss

    • Olá, Vanessa!
      Oba, adorei saber que tá gostando da história.
      Tudo de bom para você em 2018.
      Beijos.

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