Vontade Ferrenha.

Capítulo 6

Com os assuntos definidos para resolver, Clarice e Layse foram antes de tudo a procura de um contador. Mesmo com a burocracia aporrinhadora para abrir uma empresa, o contador prometeu que daria entrada no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, juntamente com a Inscrição Estadual, o Alvará da Prefeitura, da Vigilância sanitária e o Registro na junta Comercial.

Depois de tudo comprado, os acordos de fornecimentos foram fechados nos pontos comerciais. Antes de ir para casa, Layse passou para conversar com o mecânico mais sério da cidade sobre o conserto da camionete para as futuras entregas das mercadorias.

– Pode deixar! Diga para D. Clarice que vou mandar um empregado buscar a camionete lá amanhã.

– Falo sim, mas ela quer ver o orçamento do conserto antes. Porque se ficar muito caro eu vou olhar em outras oficinas.

– Que isto, Layse? Está me estranhando? Vou fazer um preço bom para D. Clarice.

– Quero só ver. Obrigada! Tchau!

– Você vai ver. Tchau!

                Duas semanas depois, na quinta-feira durante o intervalo das aulas, Layse viu as duas colegas que eram lésbicas comentando alguma coisa que estavam olhando no celular. Aproximou sentando do lado delas. Quando viu a foto que estavam olhando, pediu abalada:

– Deixa só eu ver esta foto aqui.

Soraia entregou o celular comentando:

– Olha que pedaço de mulher que a Valentina se transformou. Eu pegava!

– Pegava sim, sei que pegava! Você acha que uma mulher como a Valentina te daria confiança?

Layse perguntou sem gostar do comentário de Soraia.

– E você acha que ela não me daria confiança e pensa que daria para você? Deixa de ser besta…

– Besta é você! Uma mulher como a Valentina tem bom gosto, fique sabendo!

– Olha as pernas dela. Quando ela vier passear na cidade vou chegar junto.

Mirna falou esfregando as mãos adorando provocar Layse.

– Que palhaçada, em Mirna? Nenhuma das duas tem chances com a Valentina! Ela é uma mulher e vocês são duas pirralhas.

– Você está se achando demais, hein, Layse! Você é o que para falar que somos pirralhas?

– Pirralha é que eu não sou.

– Por que você não tem um celular? Devia ter Facebook, Whatsap, Twitter, Instagram. Ninguém vive sem isto hoje em dia.

Soraia comentou admirada.

– Eu tenho Facebook sim senhora! Quando sobrar dinheiro para comprar um celular eu compro. Agora ainda não dá.

– Pede para aquela velha te dar um. Você a tem na palma da mão.

– Quer levar um murro na cara, Mirna?

– Falei alguma coisa demais?

– Chamou D. Clarice de velha num tom pejorativo. Na minha frente você nem se atreva a repetir uma coisa destas.

– Só falta você negar que ela é lésbica. Está na cara que é! Hahahahahaha…

– Deixa de ser besta! Dobre a língua antes de inventar uma calúnia destas. Deixa de fantasiar coisas de uma pessoa que nem conhece. Que maldade!

Layse ficou mesmo inflamada com aquele comentário maldoso.

– Espera aí Layse, todo mundo estranha D. Clarice te ter em alta conta. Sem contar que você não arreda o pé da casa dela. Só vocês duas lá, sozinhas, não sei não.

– As pessoas estranham porque são um bando de desocupadas! Vão lá cultivar a terra para vocês verem se aguentam aquele batido todos os dias. Pegar na enxada ninguém quer, mas bem que seria bom para acabar com um pouco desta fofocagem. Gente à toa é que tem tempo para falar mal dos outros.

– Deus que me livre! Aposto que as suas mãos são cheias de calo…

– É o seu nariz quê é! Uso luvas, não sou uma mula sem raciocínio como você!

– Ai! Essa doeu! Que horror Layse! Ficou mordida assim só porque falei daquela…

Layse ergueu-se furiosa explodindo com as duas:

– Querem saber de uma coisa? Por hoje já escutei bobagens demais. Não quero mais papo com vocês. Foram ridículas nos seus comentários! Vão procurar serviço!

                Depois do almoço Layse foi trabalhar na casa de ração. Quando chegou a casa de D. Clarice, a senhora percebeu de cara que ela estava chateada, e mais, parecia mesmo irritada. A princípio não falou nada. Conhecia Layse e sabia que com algumas horas de trabalho ela se acalmava.

Só quando Layse terminou o trabalho e sentou para lanchar na cozinha que Clarice a abordou. Layse ainda estava calada e cabisbaixa.

– Aconteceu alguma coisa com você? Quer desabafar comigo?

– Carece não senhora.

– Não fique me chamando de senhora, já combinamos para me chamar pelo meu nome.

– Eu sei. Desculpa.

– Não precisa pedir desculpas. Que tromba que é essa? Quem foi que pisou no seu calo?

– Essa coisa de ter que manter a calma o tempo todo é muito complicado.

– Eu sei que a vida não é fácil todos os dias. Há dias que acordamos de ovo virado. Você mesma já presenciou muitos destes dias em que acordo mal humorada e chata.

Layse a fitou dando um sorriso amuado.

– A senhora nunca é chata.

– Sou sim, minha filha. Todo mundo acaba sendo chato de vez em quando. Isto quando não ficamos rabugentas. Essa que é a verdade.

– Pode até ser. A minha mãe às vezes fica rabugenta também.

– Está vendo só? Agora fala o que foi que te deixou deste jeito.

– Ah, Clarice, as minhas colegas lá na escola viram uma foto da Valentina e ficaram falando que queriam ficar com ela. Fiquei uma arara. Só não dei um murro em cada uma delas porque me lembrei da senhora.

– Fez muito bem em não ter dado. Não teria levado a nada e nem anularia o que elas falaram.

– Não anularia mesmo. Estou muito chateada.

– Você contou para elas que gosta da Valentina? Que a ama?

– De jeito nenhum! Eu nunca contei que a amo, mas elas percebem o meu interesse por ela.

– As suas colegas só estavam te provocando justamente porque perceberam que você gosta dela.

– Pode até ser.

– As pessoas são malvadas, Layse. Você tem que aprender a lidar com elas. Lembra quando eu te disse que os livros são melhores do que as pessoas? Era disto que eu estava falando.

– Lembro sim. Cada dia mais eu acho que está coberta de razão sobre isto.

– Onde que elas viram a foto da Valentina?

– No celular, no Facebook. Eu não tenho celular e vejo as coisas no celular delas. Também vejo na Lan house.

– Não tem um celular porque não quer.

– Já olhei os preços, mas são tão caros que eu não tive coragem.

– Se você tiver vontade mesmo compre um que eu pago.

– Quero não. Pedi não.

– Eu sei que não pediu, mas eu acho que é mais do necessário.

– Fico agradecida, mas posso não.

– Não se esqueça de que o telefone está tocando cada dia mais aqui em casa porque está chovendo pedidos. Mal posso assistir à televisão em paz. E o celular é bom para entrar em contato com os clientes. Você pode aproveitar e usá-lo como bem quiser. Hoje em dia a internet é muito importante. Falam tanto isto na televisão que já me cansa.

– Para entrar em contato com os clientes é importante sim. Porque agora todo mundo está usando whatsapp para fazer negócios.

– Exatamente, é o que ando vendo nos jornais. Então vamos comprar um e assunto encerrado. É você que está lidando com os compradores mesmo.

– Se é assim, tudo bem.

– Então foi só isto que te chateou?

– Aquelas sonsas insinuaram uma coisa sobre a senhora.

– Sobre mim? Aposto que é algo ridículo. Nunca dei motivos para falarem nada da minha pessoa. O que insinuaram? Dê-me este desgosto, conte qual é o veneno que soltaram desta vez.

– Perguntaram se a senhora é lésbica porque me tem em alta conta. 

– Entendo. Estava mesmo demorando alguém inventar algo deste tipo. Só quero que você faça “ouvido de mercador.”

– Como assim?

– Ouvido de mercador é fingir que não entende o que as pessoas falam. Se falarem sobre mim, faça isto, porque eu não dou crédito para fofocas. Se eu fosse mais nova, mostrava era a minha bunda para essa gente pobre de espírito.

– Hahahahahaha, gostei disto.

– Pelo amor de Deus, nem pense em fazer isto. Se dermos ouvido a tudo que falam de nós, acabamos por alimentar a maldade dessa gente.

– É verdade.

– Se estou te pagando um salário e meio é porque você merece por tudo que tem feito por aqui. Também para que possa pagar o aluguel da casa em que mora. Cansei de ouvir os comentários de que o doutor arcava com o aluguel por ser seu pai. Notei muito bem o quanto isto te machucava.

– Machucava porque é uma mentira esfarrapada.

– É uma das mentiras mais cabeludas que já ouvi na boca desta gente. Mudando de assunto, o Isaque veio aqui essa manhã e eu o contratei. Ele começa a trabalhar na segunda-feira. Foi você que mandou ele aqui, não foi?

– Que notícia boa! Mandei sim. Ele deve estar feliz. Vivia me pedindo para arrumar um trabalho para ele aqui comigo.

– Vê? Agora você já está fazendo o bem também.

– Se fiz o bem não sei, mas espero que as dificuldades dele diminuam.

– Eu também espero. Gosto deste seu lado de se preocupar com aquele rapaz quando todos fazem pouco dele.

– O Isaque deu sorte de não ter nascido excepcional, Clarice. Ainda assim tem deficiências de aprendizagem. Tenho muita pena dele, por isto pedi para empregá-lo. Pode deixar que eu vou ensinar o trabalho todo para ele com toda a paciência do mundo.

– Atendi ao seu pedido porque sei que você o conhece bem. 

– Conheço sim e sei que ele e a família não têm muito para comer. Agora tenho que ir, prometi rezar o terço com a minha mãe.

– Você é mesmo uma filha de ouro.

– Vou confessar só para a senhora que nem gosto de rezar tanto o terço, mas sabe, não é? Pedido de minha mãe é sagrado. Faço de tudo para agradá-la.

– Eu sei e você faz muito bem. Espero que a sua mãe te dê o valor que você merece. Vai com Deus e aproveite bastante o seu feriado.

– Obrigada, a senhora também. Fique com Deus aí!

 Quando chegou, percebeu o carro do doutor parado diante da casa. Logo que entrou viu seu pai, sua mãe, o doutor e para sua surpresa, Valentina estava entre eles. Layse quase desmaiou ao ver a mulher da sua vida. Valentina tinha agora vinte e dois anos. Estava completamente diferente da foto que guardava embaixo do travesseiro. A foto que viu no Facebook também não fazia jus à pessoa dela naquele momento. Admirada, seus olhos percorreram o corpo com atenção. Tamanha beleza impactou-a em cheio. Nunca imaginou que ela poderia ficar ainda mais linda. Observou o ar jovial, o sorriso da boca sensual, a pele de pêssego maravilhosa. Os cabelos estavam maiores e ela os trazia soltos. Usava um vestido de cor vinho e um sapato de salto alto da mesma cor. Estava sentada com as pernas cruzadas, ouvindo com atenção o que Agenor falava. Antes que fosse notada por todos, Layse entrou na sala dando um belo sorriso para Salomão e sua filha. Cumprimentou os pais, sem tirar os olhos de Valentina. Ela se ergueu dando um abraço nela.

– Quanto tempo, Layse! Você está muito bem. Como cresceu! Meu Deus, se desenvolveu mesmo!

– Você também está Valentina! Ficou muito bonita. É muito bom revê-la.

– Obrigada! São os seus olhos. Folgo em reencontrá-la em tão boa forma.

Layse sentou entre eles, mas logo a mãe falou com ela.

– Leva a Valentina no seu quarto para vocês colocarem a prosa em dia, minha filha! Mostra como você é caprichosa com as suas coisas.

Que coisas? Layse se perguntou intimamente consciente de que não tinha nada além da cama e de um guarda-roupa no seu quarto.

– Sim, senhora! Vamos até o meu quarto conversar um pouco, Valentina?

– Vamos sim, claro! Temos tantas coisas para falar. Com licença!

Assim que entraram, Layse apontou a mão mostrando o quarto inteiro com aquele único movimento. O quarto era tão pequeno que não havia muito para mostrar. Depois sentou na cama sem tirar os olhos dela. Valentina admirou a limpeza do quarto, comentando:

– Meu pai te elogia muito e agora vejo que ele tem razão por fazê-lo. Todas as semanas quando conversamos pelo telefone me dá notícias suas. Sua mãe está certa afirmando que você é muito caprichosa. Está tudo tão limpinho. Dá gosto de ver.

– Minha mãe me ensinou a ser caprichosa. Também D. Clarice sempre me falava quando comecei a trabalhar para ela.

– Elas estão certas. Posso sentar aqui na beirada da sua cama?

– Claro que pode.

Valentina sentou dando um sorriso delicioso.

– Já sei de todos os seus progressos. Principalmente na casa de D. Clarice.

– A verdade é que lá tem trabalho demais e eu gosto muito.

– Gosta de plantar, não é?       

– Gosto é muito. Parece que quando toco as plantas minha mente se apaga. Não consigo pensar em nada mais. É muito bom ficar sem pensar, às vezes, claro que nem sempre.

Valentina observou que Layse estava da sua altura. Notou o corpo bonito e sarado. Avaliou os braços fortes que a camiseta revelava, como também as pernas torneadas que o short quase não disfarçava. Parecia até que ela fazia academia e sabia que era em função do trabalho árduo na plantação que ficou com o corpo tão definido. Ainda reparou nos seios firmes desviando os olhos deles. Mal acreditava na transformação pela qual ela passou. A menina magrinha, de pele completamente branca, dona de um olhar quase melancólico, tinha agora uma cor de pele dourada e um corpo incrível. O olhar adquirira um brilho inigualável. Desviou os olhos, mais por perceber como Layse a fitava fixamente. Pensou nas últimas palavras que ela pronunciou, retornando ao assunto como se não tivesse se perdido naquela analise por alguns segundos.

– Você acha bom ficar sem pensar? Já eu penso até demais.

– Quando não tínhamos o que comer nesta casa eu quase morria de tanto pensar numa solução para ajudar os meus pais.

– Por isto mesmo você encontrou a solução. Começou levando as compras das pessoas, depois foi trabalhar com D. Clarice e ainda faz um bico na casa de rações. Se não tivesse pensado nas probabilidades estaria na mesma.

– Não nasci para ficar parada esperando as coisas caírem do céu. Não queria mais viver da ajuda dos outros.

– Sempre vamos necessitar da ajuda dos outros, não se engane quanto a isto.

– Você necessita da ajuda de alguém?

– Por acaso quando o pneu do meu carro fura preciso sim. Acredita que não consigo trocar um pneu? Só tentei uma vez e quebrei duas unhas, que horror! Tinha ido à manicure pela manhã. Aff… Isto é coisa para homens. Não nasci para certas tarefas.

– Se todas as mulheres fossem depender dos homens para trocar um pneu andariam a pé. Hahahahaha…

– Vai rindo. O dia que tiver um carro você vai ver o trabalho que dá quando o pneu fura.

– Minhas unhas são curtas. Não vou ter este tipo de problema quando tiver um carro. Gosto de aprender a fazer às coisas.

– Ah, sim! As minhas também são curtas. Você gosta desta cor de esmalte que estou usando? Está na última moda.

Layse examinou as mãos que Valentina exibia diante dos seus olhos toda empolgada. Sentiu o corpo mais desperto. A vontade que experimentava era de empurrá-la para a cama, para em seguida deitar-se sobre ela. Aquele pensamento pareceu-lhe um contrassenso, por isto falou para afastar o desejo da mente.

– Não uso esmalte, só base.

– Você deveria usar esmalte, ainda mais porque tem as mãos bonitas. Deixa-me ver as suas mãos.

Valentina pediu pegando as mãos dela. Passou os dedos pelas palmas das mãos comentando surpresa:

– É inacreditável! Suas mãos são macias! Pensei que eram calejadas pelo tipo de trabalho que você faz. A enxada provoca calos, você sabe disto, não é?

– Sei sim, mas uso luvas para proteger as minhas mãos.

– Faz bem. Mãos cheias de calos são terríveis. Nós mulheres temos que nos cuidar. A pele de uma mulher tem que ser sempre macia, suave, bem delicada. Muito bem, conserve suas mãos assim.

Aconselhou soltando as mãos de Layse com um sorriso.

Continua…

“Uma história não deve ser apressada, tem-se de compor devagarinho. É que nem bordado, deve obedecer a um risco.”

Autran Dourado.



Notas:



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