Vontade Ferrenha.

Capítulo 8

Logo que seguiram no carro retornando para casa, Valentina voltou-se para o pai chamando a atenção dele:

– Pai?

– Oi, filha.

– Posso te fazer uma pergunta?

– Faça.

– O senhor pagava o aluguel deles por que é o pai da Layse?

– Minha filha, você também deu ouvidos para essa conversa absurda?

– Ah, pai! O senhor há de convir que isto é muito estranho. Pagar o aluguel assim por tantos anos? É compreensível que o fato me incomode.

– Eu ajudá-los é estranho? Valentina, eles passaram por tantas dificuldades que fiquei tomado de pena. A Ceição passou os últimos meses de vida da sua mãe fazendo de tudo para ajudá-la. Você acha que eu sou um homem sem coração? Pensa que não reconheço os préstimos de uma pessoa que fez de tudo pela mulher que eu amava? A sua mãe era tudo para mim!

– Disto eu sei.

– Ainda bem que sabe. Não Valentina, eu não sou o pai da Layse. Só tive uma filha e essa filha é você. Layse é apenas a minha afilhada.

– Então por que este boato continua circulando?

– Isto não é um boato, é uma calúnia. A calúnia é coisa de gente despeitada, consumida pela inveja. É coisa de gente de má fé que se diverte destruindo a paz dos outros.

– Que coisa mais triste saber que existem pessoas assim.

– É triste mesmo. Eu me recuso a dar atenção para algo tão baixo e impiedoso.

Salomão fitou Valentina perguntando polido:

– Você acredita em mim ou nas línguas desta cidade?

– Acredito no senhor. Obrigada por me explicar melhor a situação. Isto sempre me incomodou.

– Então não permita que este assunto te incomode mais.

– Está bem, vou tentar ignorar, mas…

– Mas?

– O senhor faria um teste de paternidade?

Salomão deu um sorriso triste respondendo firme:

– Sim, eu faria sim. Depois de pronto posso imprimir e distribuir de casa em casa. O que você acha disto?

– Isto é totalmente desnecessário papai. Não é preciso tanto.

– Faço o teste na hora que for necessário.

– Então faça o mais rápido possível. Basta explicar para a Layse do que se trata. Estou certa que ela também deve detestar este assunto.

Salomão suspirou resignado.

– Tudo bem, eu vou fazer. Se estivesse no seu lugar também não gostaria de ouvir uma história dessas sobre o meu pai.

– Obrigada.

– Não é necessário me agradecer. Agora vamos falar um pouco sobre você.

– Sobre mim? Não há nada para ser falado sobre mim.

Valentina respondeu sorrindo para ele.

– Há sim, afinal não sei nada sobre a sua vida amorosa. Você está namorando?

Valentina sentiu-se mal novamente porque se lembrou dos beijos que trocou com Layse, mas respondeu por que o pai nunca tinha feito uma pergunta direta sobre aquele assunto.

– Tenho alguém sim, pai. Na verdade não namoramos, nós ficamos. O senhor deve saber que hoje em dia é comum ficar.

– Sim, eu sei. E vocês se dão bem?

– Sim, nos damos bem.

– Você a ama?

– Estou apenas envolvida. Nem poderia amar, estamos juntas há dois meses. Com a minha vida corrida nem nos encontramos todos os dias. E há dias que eu confesso que prefiro me enfiar na cama e dormir por umas dez horas.

– Eu te entendo, mas dois meses? Então já estão namorando, só não assumiram o namoro.

– Talvez. Não é assim que os relacionamentos acontecem? Vamos ficando, de outras vezes namoramos. O amor talvez acabe vindo de alguma destas convivências. Eu realmente nunca me apaixonei, mas gostaria de saber como é estar apaixonada.

– O respeito, a cumplicidade, a admiração, o cuidado, estes sim vem com a convivência. Entendo que ficar é bom. Estar sozinho não é algo que eu aprecie continuamente. Por isto que às vezes procuro uma companhia. Eu só não quero mais me casar, gosto da minha vida como está. Na minha idade o prazer me interessa mais do que o amor. Amar, eu amei a sua mãe. Tenho certeza que nunca mais sentirei por mulher nenhuma um amor tão grande.

Valentina gostou de ouvir aquela revelação.

– Pelo jeito não acredita que é possível amar mais de uma vez.

– Não foi isto que eu disse, na verdade, quando procuramos apenas por satisfação física nos afastamos e muito de viver uma relação. Hoje em dia as mulheres também procuram por satisfações físicas, posso entender isto muito bem. Se o amor tiver que voltar ao meu coração, vou repensar muito bem a minha posição.

– O amor às vezes me parece tão distante. O meu coração, não sei como explicar, parece que nunca vai vivenciar este sentimento.

– Hahahaha, isto é o que você pensa. O amor sempre nos ronda, nós é que costumamos temê-lo e por isto escapamos. Nem sempre o fazemos conscientemente. Se fosse diferente todas as pessoas deste mundo estariam amando felizinhas da vida. Seria um mundo perfeito, acontece que não existe um mundo tão perfeitinho assim.

– Será mesmo, pai?

– Onde você estiver, olhe à sua volta e irá perceber.

– Perceber o quê?

– As pessoas que amam se destacam porque têm um brilho diferente, no entanto, existem muitas pessoas acompanhadas que parecem estarem sozinhas. E muitas das pessoas sozinhas não estão sempre à procura de sexo. Algumas só querem a atenção de alguém que as ouça; estão carentes de serem vistas, querem compreensão e um ouvido bondoso. O que acabam por encontrar é o sexo casual que não lhes conforta a alma. Não levam nada destas entregas sem futuro. Só cultivam mais seus corações vazios. Se você não ama esta mulher com a qual está ficando, vai acabar por se sentir cada vez mais vazia.

– Eu devo então ficar sozinha à espera que o amor caia do céu ou bata na minha porta?

– De forma alguma, mas se não ama a sua namorada não está construindo nada que vale a pena investir.

Valentina silenciou-se, pois visto pela análise do pai, admitiu que ele pudesse estar certo. Talvez fosse ela que fazia tudo errado apressando os acontecimentos sempre que conhecia uma mulher. Começava relacionamentos que logo naufragavam e isto fazia com que acabasse se sentindo sem chão. Ao mesmo tempo não conseguia ficar sozinha de todo porque gostava de sentir prazer. Jamais negaria o quanto apreciava fazer sexo. Entretanto, não se sentia confortável para falar abertamente sobre suas necessidades sexuais com o pai. Ainda mais que ele estava falando sobre um sentimento que não conhecia, amor.

Quando Valentina deitou, a lembrança dos beijos ainda estava bem viva em sua mente. Sentia o corpo queimando, mas o sentimento de culpa a corroía por ter correspondido com tamanho ardor aos beijos de Layse. Sentia-se mal por ter traído Paloma. Mesmo que não a amasse, sabia que não agiu bem. Por isto mesmo, insistiu em pensar que seria melhor evitar Layse. Precisava se resguardar porque se encontrasse Layse novamente, se voltassem a se beijar, tinha a certeza que não resistiria a ela. A Layse que conhecia era uma criança, essa de agora a surpreendeu completamente. Assim que bateu os olhos nela, sentiu seu corpo todo reagindo. O olhar dela, quase penetrando em sua alma, a desconcertou completamente. Mulher nenhuma, nunca a olhou como Layse a tinha olhado. Layse era sem sombra de dúvidas um capítulo importante na sua vida. Por mais que tivesse construído uma vida nova em São Paulo, nunca conseguiu se desvincular inteiramente dela. Primeiro por não esquecer a pergunta se iriam namorar quando crescessem. Segundo porque o pai simplesmente a adorava e contava novidades sobre ela em cada uma das conversas que tinham. O curioso é que adorava quando ele falava sobre ela. Sentia que Layse era uma parte da vida deles. Gostava da forma como o pai cuidava dos pais dela e como se importava com tudo que acontecia no dia a dia de Layse. Ainda assim, existia alguma coisa que a afastava dela. Algo que estava entranhado em seu ser e não compreendia. Era um sentimento que não tinha voz, mas era o responsável por não ter procurado por ela todas as vezes que esteve em Cielo durante aqueles anos. De alguma forma temia reencontrá-la. Depois daqueles beijos percebeu melhor o que temia. Fugia daquela intimidade que sentia que Layse deseja com ela desde criança. Não que tivesse se atrevido a refletir se Layse, já crescida, ainda pensava sobre a possibilidade de virem a namorar. Seria muita pretensão da sua parte pensar sobre aquela questão. Preferiu concluir que ela namorava com alguém justamente para não ter que refletir sobre elas. A conversa do passado tinha ficado guardada a sete chaves. Nunca contou a ninguém. Acreditava que Layse também não tenha contado. Layse jamais faria ideia do quanto precisou se preparar para revê-la. Por isto mesmo disparou a falar sobre assuntos que fugiam de qualquer outro que pressentiu que poderia vir à tona caso a deixasse conduzir a conversa. Tentou escapar de todas as formas de assuntos mais íntimos, muito mais ao perceber a forma como Layse a olhava quase a despindo. Intuiu que foi um erro ir para aquele quarto com ela depois que tudo aconteceu. Layse esteve esperando por aquele momento, já não tinha dúvidas. Por isto mesmo, achava melhor evitá-la a qualquer custo.

Dados da autora: Isto é o que eu quero ver, você evitando a Layse, Valentina.

Em seu quarto, Layse estava com um livro aberto sem conseguir ler. Não conseguia parar de pensar nos beijos que trocou com Valentina. Sentiu muito bem o estado em que a deixou. Se a beijasse novamente tinha certeza que conseguiria fazer amor com ela.

Assim a mãe a encontrou, perdida naqueles pensamentos.

– Algum problema, mãe?

– Oi filha, não. É que o Salomão me contou que te deu uma foto da Valentina para me mostrar. Acho que ocê se esqueceu.

Layse ficou olhando para ela silenciosa.

– Cadê a foto? Eu quero ver.

Passaram-se alguns segundos sem que Layse respondesse. Depois, ela simplesmente ergueu a foto que cobria a página do livro aberto. A mãe pegou a foto admirada. Olhou-a por alguns instantes fitando Layse.

– Ocê não ia me mostrar essa foto? O doutor contou que pediu a foto para me mostrar.

Layse estava imperturbável sustentando o olhar da mãe.

– Não foi o que ocê falou pra ele?

– Sim, mas fiquei com a foto para mim. Agora preciso dormir. Boa noite, mãe! Bença.

– Boa noite! Deus te abençoe!

Ceição devolveu a foto deixando o quarto sem insistir no assunto.

 

                No dia seguinte, quando terminou de lavar a louça para ir trabalhar, Layse parou diante da mãe, que estava na sala bordando um pano de prato. Layse comprava os panos de prato e as linhas para que a mãe bordasse e os vendia para ela em algumas lojas da cidade.

– Mãe?

– Sim, minha filha.

– A senhora precisa saber de uma coisa.

– Preciso saber o quê?

– Eu sou lésbica.

Ceição abriu a boca olhando-a etada.

– Ocê é…

– Sou sim, mãe! Eu não ando por aí a olhar para os rapazes porque eles não me despertam nada.

– Eu… Não sei o que te falar.

– Não precisa falar nada. Sou eu que sustento esta casa. Nunca dei motivo para a senhora ou para o pai terem queixas de mim. Só estou informando que sou lésbica para o caso de terem sonhos de me verem casada ou mesmo para que não chegue aos ouvidos de vocês pela boca dos outros.

– Mas, filha, ocê é tão nova. Isto é coisa da sua idade. Mais tarde ocê vai ver que…

– Não existe esta história de mais tarde. Isto é tudo o que a senhora precisava saber. Sou lésbica! Vou trabalhar agora. Tenha um bom dia! Bença.

– Deus te abençoe.

Ceição resignou-se, abaixando a cabeça para o bordado. Ficou pensando nas palavras da filha por algum tempo. Depois continuou bordando até ver o carro do doutor estacionando diante da casa.

Salomão sentou com Agenor e Ceição explicando que decidiu fazer o teste de paternidade para acabar com o boato de que ele era o pai de Layse.

Agenor deu um sorriso comentando:

– Já não era sem tempo, doutor. Esta história já foi longe demais.

– Tudo bem para você, Ceição?

– Por mim está bom o que o Agenor decidir.

– Eu decido pelo certo, este teste tem de ser feito, Ceição! É muito desagradável para todos nós essa conversa circulando pela cidade. Principalmente para a Layse e a Valentina, elas não merecem isto. Quando é que vai ser feito, doutor?

– Agora mesmo. O pessoal do laboratório vai vir aqui coletar o seu sangue e depois irão à escola da Layse colher o sangue dela. O meu já foi colhido.

– Ótimo! Posso saber por que tomou a decisão de fazer o teste?

– Porque a Valentina me pediu. Ela me disse que este assunto a incomoda, bom, ela nunca tinha falado antes, mas ontem me pediu. Eu não sou homem de deixar as coisas pela metade. Essa situação também me incomoda, por isto decidi colocar uma pedra em cima deste assunto.

– A Valentina fez muito bem em pedir.

Agenor comentou estendendo a mão para Salomão.

– Muito obrigado, eu confesso que vou ficar mais aliviado a partir de agora.

– Eu também, Agenor. Quando o resultado sair eu informarei a vocês.

– Obrigado, doutor!

– Tchau.

                Quando Layse chegou a casa de Clarice, foi logo contando que o doutor tinha ido à escola com o rapaz do laboratório tirar seu sangue. Clarice abriu um largo sorriso comentando:

– Até que enfim.

– O doutor disse que agora vai ficar provado que ele não é o meu pai. Vai ser muito bom, não acha?

– Claro que acho. Vai ficar provado que o seu pai é o Agenor.

– Espero que prove mesmo. Porque assim nunca mais vão ficar cochichando pelas minhas costas, falando que o doutor é o meu pai. Se ele fosse o meu pai seria a pior notícia do mundo. Eu nunca que iria querer ser irmã da Valentina. Ainda mais agora que eu…

– Que você o quê?

– Que eu a beijei.

– Isto é uma bomba, Layse do céu! Até fiquei embasbacada. Beijou mesmo?

Clarice perguntou sentando depressa ao lado dela.

– Beijei sim. Era o meu maior sonho. Provar o sabor dos lábios dela.

– Ela correspondeu?

– Levou foi um baita susto, mas acabou correspondendo. Depois caiu em si e sentou a mão na minha cara.

– É claro que ela levou um assusto. Ainda mais com esta conversa correndo há anos pela cidade de que o doutor é o seu pai, não me admira nada ela ter dado na sua cara. Isto deve ter passado pela cabeça dela.

– Se passou ela não falou foi nada.

– O que ela falou então?

– Que eu só posso ter ficado doida.

– Não, nada disto. Você sabe que não tem nada de doida.

– Tenho mesmo não. Eu vou é pregar o resultado do teste de paternidade no mural da escola, que é para todo mundo ler e morder a língua.

– Acho melhor não.

– Acho melhor sim.

– Isto importa mais para você e para a Valentina.

– Fazer o teste e ficar calada é o mesmo que não fazer, Clarice!

– Você é que sabe.

– Sei sim. Agora vou trabalhar porque o tempo urge.

– Bom trabalho, Layse!

Continua…



Notas:



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2 Respostas para Capítulo 8

  1. Bem, se o médico está nesta disposição pra poder fazer o tal teste, é porque não tem nada a temer…

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