Vontade Ferrenha.

Capítulo 9

Salomão entrou em casa à noite encontrando Valentina ao telefone. Estava falando com Paloma. O pai sentou na sala fitando-a e ela despediu-se voltando a sua atenção para ele.

– Oi, pai! Como foi o seu dia?

– Foi muito bem. As consultas de sempre. Tenho uma novidade para você.

– Que novidade?

– Fiz a coleta de sangue hoje para o teste paternidade como você me pediu.

– Jura? Que alívio! Graças a Deus!

– Fui com o Ronan do laboratório na escola da Layse. Ela aceitou na hora tirar o sangue assim que eu expliquei o motivo.

– Ai, que bom! Podiam ter coletado só a saliva.

– Eu sei, mas aqui em Cielo fazem pela coleta de sangue.

– Isto agora não importa, o que importa é que teremos o resultado.

– Você não conversou sobre isto com a Layse?

– Não conversei não.

– Por que não?

– Não sei pai. A Layse não comentou e preferi não ser inconveniente trazendo o assunto à baila.

– Não faz mal.

Naquela madrugada, como um passarinho, Agenor Cardoso faleceu. Ceição só se deu conta que o marido estava morto ao seu lado quando acordou às cinco da manhã para ir ao banheiro. Gritou por Layse caindo aos prantos em cima do corpo gélido do marido. 

Layse ficou inconsolável com a morte do pai. No velório estavam todos os conhecidos da família e vizinhos. D. Clarice amparava a adolescente em seus braços que chorava copiosamente. Depois, em certo momento ela parou de chorar. Estava agora sentada entre Clarice e Isadora Silva, sua amiga. A cada hora era abraçada por uma das duas. Foi quando Layse viu Valentina entrando de braços dados com o pai. Na hora, embora arrasada, Layse sentiu algo ganhando vida em seu ser. Salomão aproximou da mãe e da filha abraçando a ambas. Valentina fez o mesmo. Para surpresa de Layse, Valentina lhe disse baixo:

– Venha comigo. Vou te levar para dar uma volta. Você precisa arejar a cabeça.

Layse fitou a mãe, que inclinou a cabeça sussurrando:

– Vá com a Valentina, Layse. Vai ser bom se ausentar um pouco. Pense no seu pai como ele era, não como está agora.

Layse seguiu ao lado dela entrando no carro. Valentina dirigiu por algumas ruas procurando um lugar para irem. Levá-la até a sua casa nem lhe passou pela cabeça. Acabou parando em um café saltando do carro.

Entraram e Valentina perguntou apontando uma mesa.

– Essa mesa está boa para você?

Layse ergueu os ombros comentando:

– Pode ser.

Acomodaram-se e Valentina pediu dois cafés e dois mistos.

– Obrigada, não quero comer nada.

– Deixa vir o pedido. Ela precisa comer qualquer coisa.

Valentina recomendou para a garçonete que se afastou depois de dar os pêsames para Layse. A cidade tinha crescido e continha agora novos habitantes, entretanto, muitos conheciam a família e a história da adolescente batalhadora que trabalhava de sol a sol.

Layse olhou em volta comentando perdida.

– Nunca pensei que este dia chegaria.

– A morte chega. Não queremos, procuramos não pensar, mas é inútil. Nosso destino também é aprender a lidar com a perda. Quando a minha mãe faleceu pensei que morreria também. Ainda hoje dói muito. Sei o que você está sentindo.

– Acho que você sabe sim.

– Infelizmente eu sei. No hospital, também vejo muitas pessoas morrendo todos os dias.

Layse ficou calada por algum tempo. Valentina observou que ela parecia estar mais calma. Dos olhos não escorriam mais lágrimas.

Então ouviu a voz dela, embora Layse não a fitasse, mirava a janela como se estivesse muito distante, parecia mesmo distraída como se tivesse se transportado para o passado. Talvez não fosse nada daquilo, mas apenas ficou surpresa por ouvir dela, palavras como aquelas.

– Eu estava para completar dez anos quando ouvi pela primeira vez a minha mãe falar sobre amor. Meu pai entrou na cozinha e ao vê-la chorando, disse que a amava. Ela então respondeu: “De que nos adianta o amor, Agenor, se mal temos comida para encher os nossos pratos? O amor não passa de uma bestagem, uma ilusão, algo inútil que os poetas inventaram para iludir as pessoas. Foi inventado para alimentar tolas ilusões românticas. De barriga vazia, de que nos vale tanto amor?” Na minha casa tudo girava em torno de comida. A minha mãe estava cansada de passar fome. Não havia comida para todos os dias e quando havia era regrada. Penso que algo pior do que desilusão a dominou naquela época. Amor que sequer enche os pratos. Foi por isto que eu passei a querer entender o que era o amor. Mais do que isto, decidi lutar para matar a fome dos meus pais. Talvez isto fizesse com que o amor passasse a valer mais para a minha mãe.

Valentina não conseguiu abrir a boca. Pensava na revelação íntima sem entender porque Layse estava contando aquilo para ela.

– O meu pai embora estivesse em uma cadeira de rodas conseguia fazer sexo. Por muitas noites a escutei se negando a ele. Sempre fingi que não percebia nada.

– Não sei o que te falar sobre isto. Talvez silenciar-me seja melhor para você.

– Talvez.

Layse respondeu observando-a com mais atenção. Em seguida perguntou séria:

– Por que me trouxe aqui?

– O meu pai me pediu para te distrair um pouco.

– O seu pai? Foi só por ele então?

– Por quem mais seria?

– Poderia estar aqui por mim.

– Não seja ingrata, também estou aqui por você. O que importa é que estou aqui.

– Pode ser, mas você não estaria aqui se o seu pai não tivesse pedido.

Valentina respirou profundamente falando sincera.

– A realidade é que as nossas famílias se conhecem. Nós não somos estranhos, então eu tinha mesmo que estar aqui.

– Bom, nada me machuca mais neste momento do que saber que o meu pai está deitado naquele caixão. A você, mesmo que seja assim, só tenho a te agradecer por estar aqui.

– Agora você está sendo racional.

– Não tenho outra escolha.

– Vamos falar de outras coisas. O que vai fazer daqui para frente?

– Ora, a mesma coisa que sempre fiz. Cuidar da minha mãe, terminar os estudos e trabalhar.

– Você está certa. Tem que seguir com a sua vida.

– É como todo mundo faz.

– É sim.

A garçonete trouxe o pedido delas se afastando. Layse bebeu alguns goles do café, ignorando o misto.

– Coma. Você precisa ficar forte. Não se esqueça de que é arrimo de família.

Valentina era uma mulher clássica. Distinguia-se entre muitas e era atraente ao extremo, não só atraente, era mesmo vistosa. Os cabelos longos, de cor preta, atraiam a atenção. Os olhos do mesmo tom dos cabelos, embora oscilassem na tonalidade, quando ficava excitada, se tornavam negríssimos. Quando estava calma, eles praticamente ficavam castanho escuro. Olhos negros eram raros. Normalmente eram mais comuns nas populações existentes na África e na Ásia. Ela própria tinha pesquisado sobre o assunto porque o preto dos olhos despertava a curiosidade das pessoas que comentavam constantemente o fato. E, embora tenha lido muito sobre afirmações de que olhos pretos não existiam, Valentina não era cega para não enxergar a cor dos próprios olhos quando os pintava diante do espelho.

O corpo esbelto realçava intensamente no vestido de cor vinho que estava usando. Normalmente usava branco por causa da profissão, e tinha sorte pelo branco lhe cair tão bem. Provocava o olhar dos homens, mas se existia uma coisa que não lhe interessava eram os olhares masculinos. Desde novinha percebeu que era lésbica. O pai também percebeu, e da maneira dele, sem falar diretamente, tinha dito que achava melhor que ela fosse viver para a casa da prima dele em São Paulo, onde poderia cursar a faculdade de medicina. Quando completasse dezoito anos poderia morar sozinha. Valentina amou a ideia, ainda mais porque na cidade na época, parecia não ter nenhuma lésbica solteira e ela já sentia ímpetos de namorar. As poucas que conhecia eram amigas que não lhe despertavam nada. Necessitava beijar uma mulher e precisava que fosse o quanto antes. Foi a melhor coisa que aconteceu no sentido da sua sexualidade. Em São Paulo, conheceu mulheres e ficou com algumas. Uma coisa que sabia era aproveitar a vida.

Sentada ali olhando Layse comer vagarosamente e sem o menor ânimo, aproveitou para avaliá-la melhor enquanto tomava o café e comia o misto. Layse era uma tentação. Sentiu receio por constatar o quanto ela estava bonita e mais, o quanto que estava mexendo com os seus sentidos. Não que estivesse excitada naquele instante, estava fazendo de tudo para não recordar dos beijos, do corpo dela colando-se ao seu, da buceta roçando nas suas nádegas de forma tão atrevida. Do desejo que ela deixou evidente, fato que a fez pensar que Layse a desejava de quatro. Só de pensar naquilo algumas gotas de suor brotaram em sua testa. A ideia assim refletida lhe parecia absurda, mas não mudava a realidade. Layse não foi nada sutil. Talvez até por temer não ter outra oportunidade tenha sido tão direta.

Layse a encarou questionando, roubando-a dos pensamentos íntimos.

– Vai ficar na cidade por muitos dias?

– Ficarei mais três dias. Queria ir para o sítio, mas papai está participando do campeonato de xadrez com os amigos. O jeito vai ser ficar na cidade. Domingo à tarde volto para São Paulo.

– Eu ainda lembro-me daquele final de semana que passamos no sítio.

– Você já me disse isto e eu te respondi que a minha memória é ruim.

– Vai insistir nesta detração?

– Aff, você era uma criança, não me venha com firulas! É melhor deixarmos o passado onde ele deve ficar!

Valentina respondeu olhando pela janela sufocada. Recordava nitidamente do final de semana e nunca esqueceu a conversa que tiveram na varanda. Quando disse a ela que rico não namorava com pobre. Layse tinha falado umas coisas tão engraçadas. Ela era muito novinha, mas também era demasiadamente esperta. Rebateu seu preconceito sem abaixar a cabeça. Tinha tido uma postura realmente preconceituosa a ponto de se envergonhar sempre que se lembrava daquela conversa. Exatamente por isto aquele assunto a incomodava e preferia mantê-lo em uma redoma intocável. Lidar com arrependimentos era algo que a incomodava. Principalmente porque fazia o possível para esconder o quanto era frágil.

– Sua memória é boa, só não quer que eu fale sobre o assunto. Uma médica com memória ruim eu duvido e é muito que exista.

– Por que temos que falar sobre isto, Layse? Nós éramos crianças, falamos coisas bobas, nós nem sabíamos nada da vida naquela época.

– Você continua pensando da mesma forma?

– Meu pai não é mais tão rico. O dinheiro também vai escasseando.

– Não foi o que eu te perguntei.

– Você quer saber se eu ainda tenho o mesmo preconceito que eu tinha aos doze anos? Não sou mais aquela menina. Acho desconfortável você ficar voltando neste assunto. 

Valentina respondeu fugindo dos olhos dela.

– Estou vendo que não é mais aquela menina. Posso te pedir amizade no Facebook?

– Para quê?

Valentina questionou incomodada voltando a encará-la.

– Não precisa ser grossa.

– Não estou sendo grossa, estou fazendo uma pergunta objetiva.

– Porque quero saber de você. As minhas razões são mais do que óbvias. Nós sempre fomos amigas.

– Realmente pude perceber até demais as suas intenções ontem. Está na cara, só que eu não quero alimentar isto que você acha que sente.

– Isto o quê?

– Não se faça de desentendida. Estou falando do desejo que eu senti em você.

– O meu desejo você não precisa alimentar. Eu nunca tive você e ele sempre existiu.

– Aff.

– Isto é por quê? É porque não estou à sua altura?

– As coisas que você fala não tem cabimento! Sou seis anos mais velha. Meu Deus, não percebe?

– Eu me sinto muito mulher apesar de ter apenas dezesseis anos.

– Só falei que é muito nova ainda. 

– Entendi muito bem o que você falou. Quer dizer que não tem nada a ver com a nossa diferença social?

– Nós realmente não pertencemos à mesma classe social, mas não é por isto.

– Não é o que parece.

– Não me leve a mal, estou apenas respondendo à sua pergunta. Tenho as minhas razões. 

– Já entendi, você continua desprezando os menos favorecidos.

Valentina bebeu o resto do café sustentando o olhar dela.

– Não desprezo coisa nenhuma! Sabe qual é o seu problema, Layse?

– Se acha que eu tenho um, não me fará mal saber qual é.

– Acho que você tem complexo de inferioridade.

– Está me diagnosticando, Valentina? Muito esperta você.

– Longe de mim, só estou te alertando para você se observar melhor. Complexo de inferioridade vem a ser…

– Sei o que é! Talvez eu tenha sim um certo desalento. 

– Ah, você sabe mesmo! Agora fiquei surpreendida.

– Uma pessoa pobre não é necessariamente burra. Não que tenha te surpreendido para que me admirasse.

– Não precisar exagerar, admirar você? Não é para tanto.

– Então me enganou. Porque ontem por alguns instantes até pensei que me admirava, mas vejo que você continua sendo uma esnobe. Não é um alerta, mas observe o seu jeito com mais atenção, gente esnobe fica logo antipatizada.

Valentina não gostou de ouvir aquilo. 

– Ótimo! Para o seu governo, eu não sou esnobe. Posso ter sido quando era nova e por isto não me pode culpar, porque eu de fato não tive noção do quanto fui preconceituosa com você. Eu era assim, não sou mais! Agora se já terminou de comer, gostaria de voltar para o velório.

– Sim, terminei. Pode deixar que eu vou pagar a conta.

– Claro que não, fui eu que te convidei.

– Claro que sim, não sou tão pobre que não possa pagar um lanche.

– Está bem. Se você prefere levar para este lado, o problema é seu. Só se liga que eu te trouxe aqui para te ajudar. Não precisa ficar fazendo a ofendida o tempo todo.

Layse chamou a garçonete pedindo a conta pagando em seguida. Valentina sentiu-se mal, porque ficou com a sensação de tê-la ofendido de fato, e, ofendeu, é claro.

Seguiu para o carro com ela pensando que deveria ter sido mais perspicaz, poderia ter falado de outra forma e não falou. Aquilo foi uma droga. Não queria ofender, nem magoar, ainda mais naquele momento em que ela estava tão fragilizada, estava mesmo triste, sentindo-se desolada. Percebia só de olhar para ela. Pensou até que as coisas na sua vida nem sempre eram feitas com o jeitinho que gostaria de fazê-las. Mas, Layse esqueceria tudo aquilo. Esqueceria aquela conversa e aquele desejo.

Continua…



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para Capítulo 9

    • Olá, Adri!

      Eu também adoraria passar a minha vida escrevendo e postando um, dois, três, quatro, cinco, seis capítulos por semana. A minha vida seria escrever e nada mais. Não iria fazer nada e muito menos curtir coisa alguma. Não iria ao cinema, nem iria ler nenhum livro. Muito menos iria namorar ou trabalhar. Seria somente eu e a escrita. Ficaria postando para milhares de leitoras silenciosas que leem os capítulos e ficam mudas, silenciosas e só. Mas eu também tenho uma vida para viver, como vocês leitoras também tem uma vida para desfrutar. Somos iguais, somos humanas!
      Só por comentar este capítulos você já fez a diferença como outras que também comentam os capítulos acabam fazendo. Muito obrigada!

  1. ola autora! comecei a ler sua historia hoje e ja devorei todos os capitulos disponiveis. Adorando a historia de vida da layse e ja aguardando uma paixão arrebatadora entre elas.

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