CABELOS

Meu cabelo sempre foi volumoso. Em quantidade de fios e espessura dos mesmos. A veia negra da família (minha bisavó era negra) que se manifesta ainda hoje. Nas minhas fotos da infância, sempre o vejo meio encaracolado. Algumas vezes de franja, outras sem. Nas do pré-primário, ele está mais curto. Lembro-me que minha mãe mandou cortar “Joãozinho”, por causa dos piolhos.

Infelizmente, não sou da época do Escabin. Era Neocid mesmo. Minha mãe tem um lenço em tons de amarelo, verde e branco, lindo, que usava quando fazia bobs no cabelo, ao melhor estilo Dona Ermínia. Quando ela vinha com esse lenço pro meu lado, eu já sabia que era dia de veneno na cabeça. A sobrinha da minha madrinha sempre estava com piolhos e, como brincávamos juntas, era certeza que eu voltaria pra casa com os bichinhos.
Depois de um tempo, vejo as fotos com “Maria Chiquinhas”, o cabelo já estava maior. Ainda com franja, já meio atrapalhando os olhos. Depois, junto com algumas espinhas, o cabelo igualado e anelado era o padrão. Tintura? Imagina que a minha mãe deixava! No máximo, uma gelatina sabor morango que eu passava depois do banho, antes de sair à noite, ou um papel crepom colorido na época do Carnaval.
Com a adolescência, veio novamente a franja no melhor estilo Chitãozinho e Xororó. Moda da época, assim como o corte em “V”. Mas, as madeixas nunca deixaram a altura da base da minha lombar.
Meu cabelo nunca foi meu, na verdade. Quem sempre ditou seu corte, seu tamanho, sua cor, foi minha mãe. Ela vivia reclamando do rabo de cavalo, e da marca que o elástico deixava. Contanto que, nos casamentos e eventos sociais, incluindo a missa dominical, eu estivesse com eles soltos e bem arrumados, ela tolerava o rabo. Eu dizia que era prático e que ajudava a não pegar piolhos, e ela concordava. Era o máximo que minha vontade se estabelecia sobre esse assunto.
Na medida em que os anos passaram, um dia, assistindo a uma novela das 7, vi a atriz Natália Lage, com os cabelos na altura do queixo. Não sei se já era minha veia sapatão falando mais alto, ou se, pela primeira vez, eu vi alguém da minha idade com um corte mais interessante, moderno, que me chamou atenção. O fato é que quis profundamente que o meu fosse da mesma forma.
Pensem aqui que, no meio dos anos 1990, não existiam tantas marcas, tipos de produtos capilares, muito menos os famigerados secadores e chapinhas profissionais eram acessíveis a nós, pobres mortais. A minha juba, que estava mais para Gal Costa e Maria Bethânia, nunca ficaria bem naquele estilo de corte, pois a atriz em questão, os tinha lisos, e o caimento era perfeito.
Entender isso não era difícil. O complicado foi me sentar na cadeira da cabeleireira do salão que frequentávamos e escutar: “Olha, não posso cortar seu cabelo. Se eu fizer isso, sua mãe me mata! Ou pior, ela nunca mais entra no meu salão, e ela é a minha melhor cliente.”
Só pra vocês entenderem a situação, minha mãe tem 1,50m de altura, não tem peso para doar sangue (abaixo de 50kg), e na ocasião, tinha um guarda-roupas, cujo “pau” de colocar os cabides era torto de tanta roupa. Ela sempre foi muito bonita e elegante. Um troféu muito amado, que meu pai exibe com orgulho para todos até hoje. A partir desta descrição vocês já imaginam o tamanho da treta.
Inconformada, cheguei em casa e discuti, inocente, o assunto com ela, que riu e disse que a cabeleireira estava certa. Fiquei com muita raiva. Comecei a me dar conta, naquele momento, de que se eu não tomasse alguma atitude, nunca poderia ser eu mesma. Só seria o que meus pais quisessem que eu fosse.
Mais anos vieram, e o cabelo começou enfim a deixar a base da minha lombar, com a desculpa de tirar o “V” do corte. Com o vestibular, a nuca foi raspada, e com a faculdade, o comprimento no meio das costas já era realidade. Com meu casamento, que ela sabia existir e fingia que não, as madeixas chegaram perto dos ombros.
Com um tratamento maluco para emagrecer, cheio de remédios, os cabelos começaram a cair. Creio que nunca os vi tão minguados. Foi quando descobri que existiam vitaminas lipossolúveis e que, sim, a gordura tem sua função nos alimentos e em nosso corpo, desde que na quantidade certa.
Chegando a Portugal, para o intercâmbio, vi muitas mulheres de cortes bem curtos, e lugares que compravam cabelo humano. As tranças afro e apliques já eram tendência.
Uma tarde, passando em frente a um desses lugares, que era um salão, entrei e perguntei se ele compraria o meu. Prontamente, me respondeu que sim, mas apenas se fosse ele que cortasse. Indaguei quanto pagaria pelos fios que estavam um pouco abaixo dos ombros, e não tão volumosos quanto antes. O homem analisou, pegou minhas mechas e disse 300 mil escudos (o equivalente a R$300,00 em 2001), o que me pareceu um bom tanto.
Assenti e me sentei para que o corte fosse feito. Com uma navalha muito afiada nas mãos, ele começou a tirar as madeixas, fazendo um corte rente ao couro cabeludo.
Ao final, me olhei no espelho e um largo sorriso se formou em meus lábios. Peguei meu pagamento e fui ao Maracanã, uma choperia próxima à pensão que morava. Não levantei enquanto não terminei de “beber meu cabelo”.
Saí com a lua já alta e, em passos trôpegos, fui para casa. No dia seguinte, os colegas se surpreenderam com o desbaste, porém acharam, como eu, que me caiu bem.
Como as câmeras digitais ainda não eram realidade, tirei uma foto minha e, quando o filme acabou, mandei revelar. Com o coração aos pulos, postei a carta nos Correios e aguardei o “fumo”.
Cerca de um mês se passou até que em uma das ligações para casa, os xingamentos começaram: “O que você fez com seu cabelo, menina? Você está louca? Pra quê cortar tão curto, ficou horrível, não combina com você! Mulher tem que ter cabelo comprido. Você tem cabelo tão bonito… Blá blá blá…”
Depois de uns cinco minutos escutando essa ladainha, já triste com a reação dela, finalmente me pronunciei: “Mãe, a ligação é tão cara, a gente se fala tão pouco, estamos a um oceano de distância, será que a gente deveria mesmo gastar nosso tempo falando sobre uma coisa tão banal?” Ela se calou e não mais tocou no assunto.
No tempo em Londres, abusei das escolas de cabeleireiros, que ofereciam cortes gratuitos, feitos pelos alunos.
De volta ao Brasil, além de manter os cabelos curtos, os pintei de vermelho. E assim os mantenho até hoje, com exceção da cor, agora num prateado natural. Tive algumas tentativas frustradas de tentar deixá-los crescer, no entanto com o fato de trabalhar na cozinha, sempre foi melhor e mais prático que fossem menores.
E com o tempo, entendi que, na verdade, minha mãe queria ter o meu cabelo. No dela, fino, pouco e liso, nenhum penteado ficava bom.
Por fim, ela se conformou com minha juba e, vez por outra, até elogia algum corte mais ousado. Já se acostumou à minha suposta falta de vaidade (para os seus padrões) e até disse que eu achei a profissão mais adequada ao meu estilo.
O fato é que o cabelo é parte importante da nossa identidade, uma forma até mesmo de expressão. Se queremos ser donos da nossa vida, que comecemos pelo menos pelos cabelos.

FIM!

Espero que tenham gostado de mais uma crônica, meninas.

E venho eu, mais uma vez, pedir a ajuda de vocês para as doações do site. Para quem não quer doar sem concorrer a algum benefício, em breve teremos rifas e outras possibilidades, já que nossa meta está bem distante ainda. Pra quem já doou, muito obrigada, de coração!

O que achou deste texto?

2 Responses to CABELOS

  1. Cabelo é um troço complicado mesmo rs… Dizem que no futuro não teremos qualquer tipo de folículo sobre o corpo… tão estranho pensar nisso! Mas como é futuro, quando chegar a gente vai achar tudo “tão bonitinho”!
    Só sei que cabelo está ligado a nossa identidade e a cabeleira, muitas vezes, indica o meu nível de humor. E essa pandemia (“num guento mais ouvir ou falar essa palavrinha!) tem feito meus cabelos, também rebeldes e volumosos à lá Bethânia nos tempos de Carcará, me obedecerem na marra… Lições rs!
    Ótimo texto, Naty.

    • Brigadão, Nefer, pelo comentário! Olha só, somos irmãs de cabelo! Rrrsss…
      Nem consigo imaginar essa história de não ter mais pelo no corpo. Acho que prefiro não estar aqui pra ver todo mundo careca! kkkk…
      Sigamos tentando domar essas feras. Abraços e boa semana!

Leave a reply

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.