CRÔNICAS DO ISOLAMENTO – MEMÓRIA

Por Naty Souza

Revisão: Carolina Bivard e Nefer

Falta de memória, uma doença que é uma maldição. Mas que pode ser entendida como uma benção. Esse esquecimento já existe há muitas décadas, e foi dedicado ao álcool, ao cansaço, ou seja o que mais.

A verdade é que esquecemos, independente da fase da vida ou da doença, aquilo que não nos é conveniente. Ou o nosso subconsciente nos faz esquecer.

Quando a gente bebe muito, por exemplo. Temos a oportunidade de falar que é amnésia alcoólica. Às vezes, nem é. É só vergonha mesmo de assumir aquelas falas ou atos estúpidos. Mas culpamos a bebedeira.

Seria irracional da minha parte falar que uma doença de tal calibre é parte desta infantilidade humana, de não assumir os próprios erros. Nem sou uma pesquisadora para fazer tal afirmação. Mas, que esse esquecimento aparece na hora que a gente chama o outro “na chincha”, ah ele aparece! “Imagina, nunca falei isso!”

Feliz ou infelizmente, fui abençoada ou amaldiçoada com o dom da memória. Essa que ultrapassa a bebedeira, que me faz lembrar de todas as merdas que pensei ou falei, sob o efeito do álcool. E pior, que me faz lembrar do que os outros disseram e fizeram.

Compromissos que eu só faria estando sã. Aliás, que disse que só iria continuar a conversa com todos sóbrios. Por mais que estivesse louca, essa memória estava dentro de mim, gritando que estava tudo errado, que todo mundo estava muito doido, que nada seria assumido no dia seguinte.

Pois é. Continuo bêbada. Após todas as histórias eu sigo a crer que nada do que eu ouvi será consumado. Que foram só palavras ao vento. Eu sou a única a lembrar. E a escutar o pingo da torneira, o tic e tac do relógio, o revirar das colchas na cama, de quem quer estar acordada. Só que não.

Amanhã será um novo dia nesta porra de isolamento, e a única pessoa a se lembrar de tudo isso serei eu. Como sempre. A memória é uma maldição ou uma benção? Depois do pouco que aprendi e vivi isso continua me martelando na cabeça.

Continuo escutando o barulho de alguém que quer ficar acordado, no entanto, não necessariamente. A respiração oscila entre o acordado e o profundo, com algumas fungadas, de quem está tentando se manter de pé. Só que não.

Isso me incomoda. Eu gostaria de estar totalmente só. Gostaria de estar só com meus pensamentos. De ser livre, totalmente livre. De viajar, sem pensar no depois. De me desprender total e profundamente. Queria ter essa capacidade. De não discutir com quem acende a luz e insiste em algo que não lhe pertence. De mergulhar e emergir dentro desta realidade. De fugir e voltar. De sair e vir de novo pra vida real.

O imaginário sempre foi minha fuga, meu lar em momentos difíceis, isso é fato. Contudo, tenho a sensação de que se eu ceder a ele, que se eu criar um universo meu, não sei se serei capaz de sair. Talvez eu saia porque eventualmente ele não será perfeito. Por que ele trará consigo questões minhas desse mundo real. E aí serei obrigada a enfrentar de uma forma ou de outra.

No fim das contas, cada leão sou eu quem mato. Apesar de ser uma metáfora que não aprecio: “sou hipócrita – não mato, mas como”, é como me sinto. Desprendo uma força louca diariamente para chegar ao alvorecer. Muitas vezes, me pergunto o motivo, e não acho nenhum.

Nem mãe, nem pai, nem esposa, nem gatos, alunos, nem a vontade de ter um filho. Nada me chega. Nesse momento eu choro. E eu não sei que força é essa dentro de mim, que me faz acordar e recomeçar. Apesar da loucura, apesar da tristeza. Eu só sinto que preciso continuar. Que tem gente pior do que eu. Que eu posso ajudar alguém. Que minha existência, por mais que seja pequena, é maior e melhor que a de alguém. Que eu preciso honrar isso. Mas, o que é honra mesmo?

FIM!

Meninas, essa tirei do início da primeira onda da Pandemia. Espero que tenham gostado.

Gostaria de agradecer imensamente a quem já fez sua doação para o novo site. Infelizmente, estamos bem distantes da meta, então só nos resta continuar contando com a boa vontade de todas! Abraços e bom fim de semana.

 

 

Imagem da capa: https://br.freepik.com/fotos/pessoas’>Pessoas foto criado por wayhomestudio – br.freepik.com

 

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2 Responses to CRÔNICAS DO ISOLAMENTO – MEMÓRIA

  1. Olá! Tudo bem?

    Então, memória… Para que serve mesmo? Ah, esqueci…
    Pois é, audição, olfato, paladar, tacto e visão… Sabemos que esses sentidos estão relacionados à memória e, a ela, o consciente, o inconsciente, fatos, habilidades, experiência, conceitos e por aí vai. E para que serve tudo isso? Usando, especificamente, esse ”pandemonium” atual como exemplo, a nossa memória não serve para nada. Todos os erros cometidos no ano passado estão cometendo-se de novo, e com maior gravidade. É insano você ouvir que morrem, em média, mais de 1500 pessoas por dia e achar que está tudo bem. Então, para que serve a memória mesmo?
    É isso!

    Post Scriptum:

    ”Os sábios aprendem com os erros dos outros, os tolos com os próprios erros e os idiotas não aprendem nunca.”

    Provérbio Chinês

    • Muito obrigada pelo seu comentário, e ainda mais os provérbios e post scriptum!
      O pandemonium está bem complicado mesmo, insano. Sem mais comentários a respeito.
      Abraços e boa semana!

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